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As razões do recorde de mortes por covid-19 no Peru

Sistema de saúde precário, falta de atenção primária, escassez de unidades de terapia intensiva e superlotação dificultam o combate à pandemia

Enterro de uma mulher que morreu de covid em um cemitério em Lima, Peru, em 25 de agosto.
Enterro de uma mulher que morreu de covid em um cemitério em Lima, Peru, em 25 de agosto.Rodrigo Abd (AP)

O Peru é o país com a maior mortalidade por habitante da América Latina por coronavírus. Para entender essa excepcionalidade, várias causas devem ser consideradas: a autoridade sanitária e os especialistas concordam que a alta incidência da pandemia se deve principalmente à falta de acesso aos serviços de saúde, a um sistema de saúde debilitado, ao fechamento do nível primário de atenção à saúde e à “impossibilidade de confinar adequadamente”, indica o epidemiologista César Cárcamo. As áreas com maior número de mortes, em relação aos três anos anteriores, são o litoral urbano e algumas regiões da Amazônia, combinando efetivamente fatores populacionais, de densidade e tamanho, mas também de acesso a cuidados adequados.

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“Na Espanha, a quarentena é declarada e cada um vai para o seu apartamento para fazer teletrabalho e continua ganhando seu salário. Aqui, a pessoa vai com o resto da família para aquele quarto que alugou numa casa que divide com outras famílias e cada dia que não sai para trabalhar é dia que não têm o que comer. Ficar em casa não significa nenhuma proteção: a informalidade (no trabalho) e a superlotação contribuem para tornar a quarentena menos factível e menos eficaz no Peru”, explica Cárcamo, pesquisador da Universidade Cayetano Heredia e membro do Grupo Prospectiva, que assessora o Ministério da Saúde nas medidas para enfrentar a pandemia. Antes da chegada do vírus ao Peru, em março, 70% do emprego era informal, segundo dados oficiais.

Lima tem um terço da população do país e seu bairro mais populoso e com maior déficit habitacional é San Juan de Lurigancho, onde foi registrado o maior excesso de mortes na capital entre março e agosto. No final de julho, um estudo de prevalência do novo coronavírus em Lima e Callao determinou que 18% dos habitantes estavam infectados: uma proporção maior de infectados eram pessoas em condição de pobreza e que vivem em moradias superlotadas. Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística e Informática (INEI) anteriores à pandemia, em San Juan de Lurigancho a pobreza monetária afeta de 15% a 20% da população.

Até esta quarta-feira, o Ministério da Saúde registrou 29.259 mortes por covid-19, contabilizadas depois da realização de um teste rápido ou molecular. No início de agosto, a ministra disse que as mortes pela doença chegariam a cerca de 47.000, considerando os dados do Sistema Nacional de Óbitos (Sinadef), uma plataforma de registro mais veloz do que aquela que contabiliza os dados da pandemia. Cárcamo aponta que se fosse considerado o número de óbitos registrados pelo Sinadef por médicos que anotaram covid-19 no atestado de óbito, o número de mortos subiria a 60.000.

Levando em consideração os números do Sinadef, o EL PAÍS calcula que entre março e agosto de 2020 houve um excesso de 74.000 óbitos em relação à média desses meses nos três anos anteriores. São mortes por todas as causas, durante uma pandemia que tem outros efeitos no acesso à saúde e aos cuidados (por exemplo, reduzindo o acesso de quem sofre de outras doenças), e não necessariamente devido a infecções. De qualquer forma, Cárcamo destaca que o elevado número de mortes no Peru pela ou durante a epidemia “corresponde à realidade, mas não é necessariamente comparável com países que têm outra forma de registrar os óbitos, como o Brasil ou o Chile”. E, de fato, a plataforma do Sinadef é particularmente atualizada e transparente, oferecendo um registro de cada morte ocorrida no país para a qual há dados disponíveis até o final de agosto.

Falta de acesso

Quando o Peru determinou o confinamento obrigatório em meados de março, fechou os consultórios dos hospitais e o pessoal de saúde atendia apenas emergências, partos e pacientes com covid-19. Desde então, o presidente Martín Vizcarra reiterou que pelo fato de ter poucos leitos de UTI foi aumentada sua quantidade; entretanto, o ponto de partida foi muito baixo.

“Uma desvantagem para o Peru em termos de mortalidade é a falta de acesso aos serviços de saúde. Em comparação com outros países, quando a pandemia começou havia muito poucos leitos de UTI, o que fez com que muitas pessoas morressem sem possibilidade de atendimento”, comenta Cárcamo. “A contagem ia de 125 a 250 leitos de UTI no país; em abril o Governo aumentou e agora são mais de 1.200, mas nunca foram suficientes: chegamos ao pico da pandemia e as pessoas iam ao hospital e não podiam entrar na UTI”, acrescenta o pesquisador.

Um segundo aspecto que determina o grave saldo de mortes no Peru é a falta de pessoal médico. “Um leito de UTI pode ser implantado de um dia para o outro, mas um profissional, não. Na ausência disso, anestesistas ou emergencistas que não são especialistas em terapia intensiva, mas sabem como manusear um ventilador mecânico, e residentes ou médicos de outras especialidades atendiam os pacientes (de covid-19), mas o manejo nessas condições não é o mesmo. A pandemia atingiu o país com um sistema de saúde debilitado”, diz Cárcamo.

O Colégio Médico do Peru e suas seções regionais exigiram desde junho que o Governo aplicasse o rastreamento de contatos dos infectados, o cerco epidemiológico e a abertura do nível de atenção primária à saúde, mas pouco disso aconteceu. A ministra da Saúde, Pilar Mazzetti, calcula que apenas 35% a 40% do pessoal está trabalhando.

“A certa altura se viu que só se deixaria o essencial: os serviços de urgência. Na prática não ofereceram atenção primária porque os médicos que atendiam ali já tinham passado da idade de risco de covid-19, e aqueles que estavam ativos foram levados para hospitais de atenção secundária ou terciária. A atenção primária ficou sem pessoal porque se infectou ou era de alto risco”, diz o epidemiologista.

Sem cerco nem rastreamento

Em uma entrevista à imprensa estrangeira, a ministra da Saúde afirmou há algumas semanas que diante da dificuldade de fazer cercos epidemiológicos –ou o isolamento dos infectados– “foram feitas quarentenas localizadas para reduzir a mobilidade das pessoas”. Na sexta-feira passada o Governo prorrogou novamente por um mês o estado de emergência, o toque de recolher, a proibição de sair aos domingos e estabeleceu uma quarentena total em quatro regiões e uma localizada em 45 províncias de 14 regiões.

Perguntado sobre a falta de rastreamento de contato dos positivos, Cárcamo respondeu que “o sistema da rede nacional de epidemiologia ficou saturado. A equipe não conseguia seguir os contatos, mais pessoas se inscreviam e não deu conta. A pandemia sempre esteve à frente da capacidade de resposta”, o que se reflete na alta taxa de positividade sobre o total de exames realizados no país.

Um suspeito de covid-19 consultado por este jornal, que não teve acesso a um teste molecular e deu negativo no teste rápido, mas apresentava todos os sintomas, ligou várias vezes para o número de emergência 113 no início de agosto e o atendimento foi deficiente. “Não admira que as pessoas morram, tive de consultar dois outros médicos”, descreveu.

O Peru fez mais de 3.200.000 diagnósticos, mas 82% deles eram testes rápidos (75% do total de positivos), que apresentam grande margem de erro. De fato, esse tipo de teste (tecnicamente chamado de “sorológico” porque detecta a presença de anticorpos gerados por uma infecção anterior) costuma ser utilizado não como método de diagnóstico, mas para verificar a soroprevalência agregada, ou seja, porcentagens de pessoas afetadas no passado sobre o total de populações inteiras. Seu uso maciço é talvez o exemplo mais claro da saturação das capacidades do sistema peruano diante da pandemia.

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