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Comunidades rurais da América Latina enfrentam o avanço do coronavírus

A reabertura de algumas cidades da região coloca o foco na propagação da pandemia pelo interior. Mais da metade dos casos da doença registrados no mundo na última semana estão na América

Moradores de uma comunidade rural de Manaus.
Moradores de uma comunidade rural de Manaus.RAPHAEL ALVES (EFE)

Na América Latina, o coronavírus começou nos centros urbanos e aos poucos se aproxima das comunidades rurais. Em maior ou menor medida, a reação do binômio cidade-campo condiciona o avanço da covid-19 na região, atualmente considerada o epicentro da pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Após quase três meses de fechamento das atividades, alguns países latino-americanos começaram gradualmente a abrir alguns de seus setores econômicos sob a latente ameaça de novos surtos e de expansão do vírus pelas regiões afastadas.

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A Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) advertiu esta semana que a pandemia está num dos momentos mais críticos para o continente americano, e que a reabertura deve ser feita com cautela. “Devemos ser cuidadosos. Não abram rápido demais ou correrão o risco de um ressurgimento da covid-19 que poderia anular a vantagem obtida nos últimos meses. Considerem um enfoque geográfico para o bloqueio e a reabertura baseado na transmissão em entornos locais específicos”, disse Carissa Etienne, diretora da organização.

Mais da metade dos casos de coronavírus no mundo (55%) registrados na última semana estão na América. Os países latino-americanos concentram 1,2 milhão de contagiados e 57.800 mortos pela covid-19, a maioria no Brasil, México, Peru, Equador, Chile e Colômbia. A OPAS afirma que o aumento do número de novos contágios na região nos últimos dias representou mais de um terço do total mundial. “É uma preocupação séria, que deveria servir como advertência para aumentar nossos esforços”, disse Etienne.

A região é diversa, mas as características de suas zonas rurais convergem, principalmente quanto às suas carências. As comunidades afastadas dos centros urbanos costumam sofrer com a escassez de serviços básicos como água potável —que contribui para reduzir a expansão da doença. Além disso, os serviços sanitários não chegam a toda a população e os habitantes das zonas rurais muitas vezes precisam fazer longas viagens às cidades para ter acesso à saúde pública. Cada país latino-americano aborda de maneira diferente a proteção dessas comunidades, onde também moram alguns povos indígenas. Assim se vive a pandemia nas áreas rurais da América Latina.

Peru: autoisolamento para se proteger do vírus

Uma parcela importante da população rural do Peru é formada por trabalhadores temporários em Lima e em cidades intermediárias. Entre janeiro e março, devido à quarentena e à paralisação das atividades econômicas não essenciais, eles perderam seus empregos. O Governo calcula que, até início de maio, mais de 200.000 pessoas tenham se inscrito para solicitar o retorno de forma coordenada para suas regiões, mas só foi possível trasladar 18.000 delas. A grande maioria voltou ao campo caminhando, tanto a comunidades andinas como amazônicas.

O economista José de Echave disse ao EL PAÍS que, após declarada a emergência, muitas comunidades das províncias altas de Cusco, como Chumbivilcas e Espinar, Grau (na região de Apurímac), a região de Puno e comunidades situadas no Governo Autônomo de Wampís, na Amazônia norte, fecharam seus territórios para se protegerem. “O Estado não teve nenhuma iniciativa para evitar o avanço da pandemia em comunidades indígenas. As populações rurais com experiência em controle territorial ainda desempenham um papel importante na contenção do contágio”, afirmou. “A única coisa que unia essas populações com as cidades era a economia. E, em condições como essas, as cidades se tornam mais agressivas.”

A presidenta da Organização Nacional de Mulheres Indígenas Andinas e Amazônicas do Peru (Onamiap), Melania Canales, lamenta que a resposta governamental à pandemia não tenha se adequado aos povos indígenas. “Na comunidade, você não pode ficar em casa, como pede o Governo. Tem que continuar indo à plantação e criando os animais. [As autoridades] não envolvem as comunidades na estratégia”, criticou ela em entrevista ao jornal La República. Agricultores que não receberam subsídios em Carapongo, na zona agrícola de Lima, disseram a uma rádio que não podem se inscrever para solicitá-los porque a plataforma digital exige o código de fornecimento de eletricidade. “Muitos de nós não têm eletricidade nem smartphone”, afirmou uma cidadã.

Uma família em Pamplona Alta, na periferia de Lima (Peru), se prepara para sair com máscaras.
Uma família em Pamplona Alta, na periferia de Lima (Peru), se prepara para sair com máscaras.ERNESTO BENAVIDES (AFP)

Brasil: sistema de saúde frágil e distâncias enormes na Amazônia

O coronavírus avança rumo ao interior dos Estados brasileiros cujas capitais apresentaram os primeiros surtos e aos Estados menos afetados inicialmente, como os do Sul. Uma das cidades mais remotas onde a doença causou estragos é São Gabriel da Cachoeira, às margens do rio Negro, no coração da Amazônia. “A escola fechou em 20 de março, e faz tempo que só chega a balsa que traz alimentos”, explica Odete por telefone dessa cidade, situada a 800 quilômetros da UTI mais próxima. “As pessoas não obedecem muito [a ordem de ficar em casa], mesmo se você disser em sua língua ou em português”, diz essa moradora da cidade mais indígena do Brasil.

Conscientes de sua vulnerabilidade, as autoridades locais logo criaram um comitê de emergência. Mas as primeiras medidas para isolar a cidade, seguidas por um fechamento total em abril, não impediram a chegada da covid-19. O vírus matou 23 dos 45.000 moradores e contagiou mais de 1.800, enquanto se propaga de forma veloz pela descomunal floresta tropical. Os mapas oficiais estão repletos de pontos vermelhos que indicam os municípios com contágios.

São Gabriel da Cachoeira teve uma forte crise sanitária, superada com a chegada de médicos intensivistas de reforço. Agora conta com leitos de semi-UTI com respiradores, explica Vitória Ramos, da organização Médicos Sem Fronteiras, que está a ponto de começar a trabalhar na zona para fortalecer a rede de saúde pública. Ela informa que agora estão sendo feitos muitos testes. “Nossa preocupação são as cidades próximas e as aldeias indígenas. As distâncias são gigantescas, o que dificulta muito o acesso à saúde. Além disso, são populações não contempladas pelas políticas de saúde pública”, afirma essa especialista em questões humanitárias. De fato, as informações sobre casos suspeitos também demoram a ser incluídas nas estatísticas oficiais. A ONU está preocupada com o crescente impacto nos indígenas, especialmente vulneráveis. Dos 7.000 mortos na Amazônia brasileira, 54 eram indígenas.

O Governo estatal duplicou suas UTIs aéreas. Seis aeronaves transportam os pacientes mais graves até Manaus, onde a situação já não é tão ruim quanto em maio, quando as redes sanitária e funerária entraram em colapso. “Agora não há uma disputa por leitos, mas, se houver uma segunda onda de contágios, será um problema”, adverte Ramos, de Manaus. A fragilidade do sistema, somada à recente reabertura do comércio, gera preocupação.

Colômbia: fornecimento de alimentos para as cidades contagia o campo

Os maiores surtos na Colômbia ocorreram em grandes cidades, como Bogotá, Cali e Cartagena. Depois de uma quarentena nacional de mais de dois meses, nesta semana o país entrou numa nova fase do isolamento, com numerosas exceções permitindo que milhões de pessoas voltem às ruas. Nesses três populosos centros urbanos atingidos pela covid-19, no entanto, uma quarentena rigorosa será mantida pelo menos até meados de junho. Entre as medidas ordenadas pelo Governo nacional está a de “intensificar as ações de vigilância em saúde pública” nos principais mercados e centros de abastecimento. Os contágios nesses lugares, que são uma ponte entre os produtores rurais e os moradores das cidades, tornaram-se uma das maiores preocupações das autoridades sanitárias, já que o vírus se propaga dali para as cidades.

Com ao menos 74 casos, Corabastos, a maior central de abastecimento do país, tem sido uma preocupação constante para a Prefeitura de Bogotá e um exemplo ilustrativo. Cerca de 1.000 caminhões de diversas regiões do país chegam todos os dias com aproximadamente 10.000 toneladas de alimentos. Ali confluem produtores rurais, transportadores, compradores e revendedores não só da capital, mas também de Cundinamarca, o departamento que a rodeia. “Pelo menos 20 municípios de Cundinamarca têm casos de covid-19 originados em Corabastos, pois muitos camponeses vêm descarregar o produto e se contagiam. Essa central é de responsabilidade de todos”, afirmou a prefeita Claudia López. Além disso, Corabastos fica na parte ocidental de Bogotá, na localidade de Kennedy, que está sob um confinamento rigoroso devido à alta concentração de casos. A prefeita descartou a possibilidade de fechar o mercado completamente, pois isso geraria desabastecimento de alimentos, mas ordenou que opere com 35% de sua capacidade e atenda apenas os atacadistas para evitar aglomerações. As medidas —que incluem o fechamento preventivo de alguns postos— provocaram protestos dos comerciantes.

A mais de 1.000 quilômetros dali se encontra outro grande foco de contágios e preocupação: Leticia e o departamento de Amazonas, no extremo sul do país, que com apenas 79.000 habitantes já registra cerca de 2.000 casos e 65 mortos. É a maior quantidade de positivos por milhão de habitantes da Colômbia. Esse vasto território, que compartilha uma vaga Tríplice Fronteira com o Peru e o Brasil, tem uma população dispersa e majoritariamente indígena que carece de uma adequada rede hospitalar. Pacientes que apresentam complicações costumam ser levados de avião para Bogotá, uma operação que se torna de difícil em momentos em que o espaço aéreo está fechado pela crise sanitária. Amazonas é um reflexo da vulnerabilidade das comunidades indígenas, algumas das quais optaram por se isolar em suas reservas, longe das cidades, ante o temor de contágio.

Produtores agrícolas que chegam a Corabastos, em Bogotá, têm a temperatura medida.
Produtores agrícolas que chegam a Corabastos, em Bogotá, têm a temperatura medida. JUAN BARRETO (AFP)

México: dos “municípios da esperança” à normalidade

A vida continua nas zonas rurais do México apesar do fechamento das grandes cidades. Em maio, o Governo do país designou 323 localidades como “municípios da esperança”, já que neles não foram registrados casos de covid-19. Mas o México tem sido muito questionado por essa decisão, pois algumas dessas cidades nem sequer aplicaram testes entre seus moradores. São municípios em sua maioria rurais, distantes dos centros urbanos e com população predominantemente indígena. Estados como Chiapas, Yucatán, Chihuahua e Guerrero concentram alguns desses municípios, que até semanas atrás se mantiveram alheios à pandemia.

“As zonas rurais não geram preocupação. Os padrões de distribuição da pandemia mostram que ela está relativamente concentrada nas zonas urbanas. Em algum momento, essa barreira se perderá, e as pessoas que menos têm serão afetadas com maior intensidade”, explicou o subsecretário de Saúde, Hugo López-Gatell, em entrevista coletiva. Algumas dessas localidades implementaram o bloqueio à entrada de forasteiros, aproveitando estruturas de vigilância e segurança comunitárias organizadas nos últimos anos devido ao aumento da violência.

A maioria dessas comunidades está localizada em zonas montanhosas e de difícil acesso. Há pouca prestação de cuidados de saúde, e os hospitais que atendem pacientes com covid-19 em geral ficam nos centros urbanos. Embora haja risco de que a infecção avance rumo às áreas rurais, o Governo já começou a implantar o regresso escalonado às atividades econômicas em algumas cidades. Paradoxalmente, as autoridades sanitárias reconhecem que todo o país apresenta um nível elevado de contágios e delegaram aos Governos dos Estados a responsabilidade pela abertura.

Argentina: poucos casos nas províncias e salvo-condutos

A covid-19 atingiu sobretudo as grandes cidades argentinas e deixou quase intocáveis as zonas rurais, onde vive apenas 8% da população. No epicentro estão Buenos Aires e sua área metropolitana, com quase 13 milhões de pessoas, equivalentes a 32% de todos os habitantes da Argentina. Nesse conglomerado foram registrados 16.400 casos positivos até sexta-feira, contra 2.876 infectados espalhados em 2,8 milhões de quilômetros quadrados de território quase desabitado. Na última cifra, divulgada na quinta-feira, 16 das 23 províncias argentinas registraram um caso ou nenhum. As demais, salvo Buenos Aires, menos de 10.

As autoridades não esperam que a covid-19 venha a ser um problema no interior da Argentina, que hoje concentra 15% de todos os contagiados do país. Há províncias que não registram casos positivos, como Formosa (norte) e Catamarca (centro-oeste). Em outros distritos, como La Pampa, Salta, San Juan, San Luis, Chubut e Jujuy, o vírus afetou menos de 20 pessoas em cada. Embora seja cedo para fazer balanços, pois a Argentina ainda não atingiu o pico da epidemia, as autoridades de saúde afirmam que o confinamento vigente desde 20 de março em todo o país impediu a propagação do vírus nas áreas pouco povoadas. Hoje, mais de 90% dos novos casos ocorrem na região metropolitana de Buenos Aires.

A quarentena já é menos rigorosa no interior, mas as províncias ainda mantêm duras restrições à circulação para outras regiões. Houve casos extremos de isolamento, com barreiras que bloqueiam as estradas nas fronteiras internas. O rigor isolacionista criou algumas situações dramáticas, como a morte de um homem de 42 anos atropelado pelo próprio carro quando tentava atravessar uma barreira colocada na divisa entre San Luis e Córdoba. O homem tentou cruzar para o lado de Córdoba a fim de levar alimentos para seus filhos, mas seu veículo atolou no monte de terra. Ele então saiu do carro para tentar empurrá-lo, mas acabou sendo atropelado. Os moradores de ambos os lados, enfurecidos, entraram em confronto com a polícia e derrubaram o muro. As autoridades de San Luis então se comprometeram a realizar um censo das pessoas que têm familiares dos dois lados da divisa, que em épocas normais se limita a um cartaz indicador na rodovia, sem maiores controles. Agora, todos precisarão de um salvo-conduto para ir de um lado para o outro dessa linha imaginária.

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