Procurar o ar, uma grandiosa tarefa no ‘front’ de um hospital de campanha contra o coronavírus
Entre o bip de monitores e respiradores, mensagens fixadas nas paredes de um hospital construído sobre uma quadra de vôlei de Santo André tentam manter o otimismo dos pacientes e cuidadores, enquanto Brasil vive escalada de mortes pela covid-19
Quando José Geraldo Souza entrou numa ambulância pela primeira vez, sentiu como se embarcasse em uma aeronave prestes a cair. Era madrugada de terça-feira, 26 de maio, e fazia mais de uma semana que ele observava o próprio corpo sucumbir ao realizar pequenos esforços. Primeiro notou que precisava “procurar o ar” cada vez que levantava. Depois, viu o fôlego desaparecer repentinamente a cada dois ou três passos dados dentro de casa, onde cumpria quarentena. “Era uma sensação horrível, procurando ar. Levantava e ficava todo suado”, conta, agarrando com as mãos uma coberta marrom em um dos 180 leitos do hospital de campanha de Santo André, na grande São Paulo, instalado sobre o brilhante piso amadeirado da quadra de vôlei do Complexo Esportivo Pedro Dell’Antonia.
Como não havia sentido febre nos últimos dias, Souza não achou que estivesse infectado pelo novo coronavírus, mas a dificuldade para respirar o levou a procurar o Hospital do Quarteirão em Diadema, cidade onde se aposentou como metalúrgico e que até hoje lhe serve de referência mesmo morando na capital paulista. Chegou lá na manhã de segunda-feira (25) e horas depois se viu pela primeira vez dentro de uma ambulância, com uma máscara de oxigênio no rosto, a caminho do hospital provisório da cidade vizinha. O diagnóstico clínico da covid-19 veio com um medo arrebatador da doença.
“Foi como se tivesse morrido antes na minha mente e sentisse que não voltava mais”, lembra. Souza tem 55 anos e mantém um olhar forte ainda quando paira sob seus olhos pequenas olheiras. No terceiro dia de internação, parece cansado. Repousa o corpo robusto no leito 11, levemente inclinado sobre seu braço esquerdo. Está na única ala com estrutura de terapia intensiva, para onde vão os pacientes mais graves com o novo coronavírus. O hospital de campanha tem ainda outras três alas. Os quatro setores se acomodam no centro de uma arquibancada azul esvaziada, divididos por paredes de plástico que lembram tradicionais divisórias de repartições públicas.
Souza tenta cochilar, mas o descanso é facilmente interrompido pela rotina frenética que acontece ao seu redor, não importa se é dia ou madrugada. Bip, bip, bip, sonam os monitores pelos quais médicos e enfermeiros acompanham constantemente os sinais vitais de cada paciente. Intercalados pelos ruídos dos aerossóis e respiradores, eles se somam aos pequenos cochichos e aos passos apressados de dezenas de profissionais que caminham entre os leitos e um amplo corredor, onde anotam prontuários, avaliam exames e preparam materiais para medicar os pacientes. Ninguém parece parar ali.
Do leito de Souza, é difícil ter noção do tempo que corre do lado de fora. A forte luz dos refletores do ginásio permanece acesa o tempo todo porque o hospital provisório funciona 24 horas e a covid-19 impõe quadros tão instáveis que cada paciente precisa estar sob vigilância constante. Ainda que a equipe tente concentrar a rotina de exames e procedimentos durante o dia para reduzir o movimento à noite, descansar ali demanda certo esforço. Assim como permanecer acordado e vencer as horas que se arrastam quando não há quase nada para se distrair. Nenhum paciente pode levar consigo livros nem aparelhos celulares porque qualquer objeto pessoal poderia virar um vetor de contaminação.
Souza vez por outra gira o rosto e tenta, de seu ponto de visão limitado, observar alguns dos outros seis pacientes que dividiam com ele, na última quinta-feira (28 de maio), a ala de estabilização. Não consegue conversar com os vizinhos nem conhecê-los, mas é testemunha do esforço que todos eles fazem para puxar o ar diariamente. “Desde que cheguei, vi um óbito e foi horrível. Vejo as pessoas passando mal, sem conseguir respirar”, conta. As cenas ainda estão na sua mente, mas já não alimentam àquela primeira sensação da chegada, como se estar com a covid-19 fosse tão fatal quanto perceber-se à bordo de um avião em queda. "Quando cheguei, achei que daqui ia só piorar. Mas foi o contrário. O pessoal aqui não me trata só com medicamento, mas também com palavras”, ele diz.
Palavras, de fato, estão espalhadas por todo o hospital. Estão na voz de fisioterapeutas, psicólogos, médicos, enfermeiros e técnicos que, mesmo no trabalho intenso de um hospital que está com 75% de sua capacidade ocupada, tentam confortar pacientes solitários com rápidos diálogos na beira do leito. Estão também nas várias mensagens fixadas nas paredes e nos insumos do hospital. Uma narrativa criada por lembretes que podem até parecer desconexos, mas que tentam fazer pacientes e profissionais abraçarem o exercício de olhar para o futuro em meio à dor e ao medo do front da pandemia. “Tudo vai ficar bem”, anima a etiqueta das refeições que aguardam para serem distribuídas sobre um carrinho no corredor. “Seja a mudança que você quer ver no mundo”, diz outro cartaz pendurado na parede. “Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos”, diz um cartaz em papel ofício com o trecho do livro O Pequeno Príncipe.
“Mamãe, estou respirando sozinha!”
Próxima a um desses cartazes, em uma ala predominantemente feminina que concentra pacientes menos graves, está a estudante Bárbara dos Santos Raizza, de 20 anos. Sentada na cama com as pernas cruzadas, come um pedaço de pão e toma um copo de café com leite. Tem o corpo coberto por uma camisola branca com pequenos detalhes escuros que recebeu do hospital. Já não sente o cansaço e a dor no peito que tinha quando precisou ficar internada sozinha, há três dias. A psicóloga Marina se aproxima dela com um tablet e oferece uma videochamada com a família. Raizza larga a comida em uma pequena mesinha de ferro ao lado da cama para falar com a mãe, Raquel Santos, de 55 anos. “Oiee. Tirei o respirador. Mamãe, estou respirando sozinha!”, comemora. A mãe quer saber se a falta de ar passou. Raizza conta que o cansaço diminuiu e reclama do cabelo que cai desalinhado sobre seus ombros. “Quando chegar aqui, a mãe penteia pra você”, escuta. E sorri.
A conversa amena daquela tarde está longe da tensão que foi o primeiro contato, quando ambas estavam preocupadas com a saúde da outra. Bárbara começou a ter sintomas da covid-19 após ir ao enterro do avô, sepultado em um caixão lacrado após duas horas de velório mesmo sem ter sido infectado pelo coronavírus. Os poucos familiares presentes usaram máscaras na despedida. Mesmo assim, Raquel teve sintomas leves e Bárbara precisou procurar uma UPA e depois ser transferida para o hospital de campanha. Havia estado ali uma única vez, para uma aula de vôlei, e agora retornava assustada ao ver tantas camas e médicos no ginásio. “Eu senti muito medo, mas eu fui muito bem tratada aqui. Depois passou”, ela diz.
Num hospital de campanha, a tensão que toma os pacientes recém-chegados perdura dia após dia na rotina dos profissionais de saúde. Ter de enfrentar situações extremas e lidar com o sofrimento que impõe uma doença nova como a covid-19 faz parte do ofício deles. Passam 12 horas do seu dia, às vezes mais, ajustando máquinas e tentando trazer algum conforto àqueles que tentam puxar o ar. Uma paciente com aspecto cansado pede ajuda à reportagem, enquanto passeamos entre os leitos. Mais adiante, no corredor, um enfermeiro com o rosto coberto pela máscara de proteção explica: “Alguns se queixam da falta de ar, mas o que tinha pra fazer já fizemos. É o desconforto da doença”.
O trabalho da fisioterapeuta Magda de Oliveira, de 46 anos, é justamente ajudar os pacientes a conseguirem respirar sozinhos. Auxilia na entubação, cuida da ventilação mecânica e ajusta o oxigênio. Tenta, com máquinas e exercícios, dar conforto respiratório a eles tanto na fase aguda da doença e também quando começam a melhorar. Há 24 anos trabalha com isso, mas nunca tinha lidado com tantos pacientes graves ao mesmo tempo. “O paciente com a covid-19 em duas ou três horas pode precisar ser entubado. Essa instabilidade eu nunca tinha visto antes. Assusta muito a equipe”, conta.
3h para estabilizar uma paciente: “Eu tinha câimbras na perna de tanto estar em pé”
Oliveira trabalha há um mês no hospital de campanha. Fica a maior parte do tempo na ala de terapia intensiva, onde estão os casos mais graves. Houve um dia que precisou ficar horas na beira do leito de uma mesma paciente. Posicionava a mulher, mudava o modo da ventilação mecânica, mas a saturação ―o nível de oxigênio no sangue― não subia. Voltava a ajustar os níveis de oxigênio, refazia exames. Nada. Foram quase três horas até conseguir, enfim, estabilizá-la. “Eu tinha câimbras na perna de tanto estar em pé. Há duas ou três semanas estávamos assim”, conta.
No dia em que a reportagem visitou o hospital, o ambiente era tranquilo. Havia 141 pessoas internadas, nenhuma delas entubada. Ocupavam 75% das vagas do hospital, que começou a receber um número expressivo de pacientes nas primeiras semanas, em abril, e levou a Prefeitura de Santo André a inaugurar um segundo hospital de campanha, do outro lado da rua, construído no gramado de um estádio de futebol. Por enquanto, 10% dos 120 leitos dessa segunda unidade estão ocupados.
Santo André, a quarta maior cidade do Estado de São Paulo, tem mais de 2.700 casos confirmados da doença. O número pode parecer pequeno quando o Brasil já soma mais de meio milhão de infectados. Mas Santo André viu a quantidade de pessoas com sintomas gripais procurando unidades de saúde aumentar em 20 vezes nos últimos dois meses. A cidade também recebe pacientes de cidades vizinhas. No hospital de campanha, médicos e enfermeiros não se arriscam em dizer se sentem a demanda aumentar ou diminuir enquanto São Paulo já inicia o relaxamento do isolamento com a abertura de algumas atividades econômicas. O número de pacientes varia muito de um dia para outro, e a sensação é que a aparente calmaria que tomava aquela UTI na quinta-feira pode mudar de uma hora pra outra.
Há dias em que o estresse é tanto e a imagem de pacientes jovens com quadros de saúde grave é tão dolorosa que a fisioterapeuta Magda precisa parar tudo e procurar seu próprio ar, do lado de fora. “Quando vejo que não estou dando conta e que não está dando mais, eu saio, tiro a máscara. Vou respirar lá fora”, diz. Tira o capote (um tipo de macacão azul que redobra a proteção de profissionais na ala de terapia intensiva) e só depois volta, sempre atenta ao que vem mudando dentro dela diante da crise sanitária mais grave do século. “Eu agora tento dar valor às pequenas coisas. Tenho tentado pisar no freio. Depois disso, não quero mais viver ligada no 220v o tempo todo”, diz.
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