A rotina sob pressão dentro de uma ambulância que carrega pacientes com covid-19
Socorristas do Samu acostumados a lidar com traumas veem mudança no perfil de pacientes durante a pandemia, que já deixou mais de meio milhão de infectados até este domingo
São duas horas da tarde de terça-feira, 26 de maio. A tranquilidade que tomava a base central do Samu de Santo André ―a quarta maior cidade de São Paulo― é quebrada por um chamado no rádio. “É covid”, grita um profissional que conversava com os companheiros na garagem. O enfermeiro Haroldo Guireli e o condutor Ricardo Vieira Lopes correm para se paramentar. Colocam máscara, gorro, luva e avental e logo seguem em uma ambulância básica para encontrar uma paciente de 37 anos que estava em uma clínica na qual costuma fazer hemodiálise, um tratamento para filtrar o sangue quando os rins não funcionam bem. A gravidade repassada pelo rádio não indicava necessidade de usar a estrutura mais sofisticada, com UTI móvel. Guireli e Vieira encontram a paciente cerca de meia hora depois do chamado no rádio, com um cateter de oxigênio e aparência cansada. Saturava a 87% quando o normal é acima de 95%. Eles entram na unidade de saúde com pressa, a envolvem numa estrutura que parece alumínio e a conectam em um pequeno cilindro de oxigênio para ajudá-la a respirar no trajeto. Logo depois a levam até a ambulância, onde voltam a avaliá-la. Observam a saturação, a temperatura e só então conseguem iniciar uma conversa difícil, entrecortada pelo cansaço dela e pelas barreiras impostas pela máscara especial, que protege os profissionais mas torna suas vozes pouco audíveis.
Aos poucos, eles vão descobrindo que a mulher havia ido à clínica sozinha, como costumava fazer rotineiramente. Não chegou sequer a fazer a sessão de hemodiálise, quando profissionais da saúde observavam que ela apresentava sintomas que poderiam ser da covid-19 e, diante de sua dificuldade para respirar, chamaram o Samu. Há dias, a paciente sentia febre e tosse seca, que vinha controlando com um antitérmico. Havia perdido paladar e olfato. “Está mais para positivo do que para negativo. Acho que é a covid-19”, diz o enfermeiro Guireli, de 51 anos, logo após deixá-la na unidade de pronto-atendimento onde faria novos exames para definir para qual hospital ela deveria ser encaminhada. Guireli atua no socorro há 22 anos. Começou como condutor no Resgate Voluntário de São Paulo, se formou enfermeiro e está na linha de frente da enfermagem do Samu há 10 anos. Acostumado a acompanhar principalmente casos de traumas, viu o perfil de seus pacientes mudar desde março ―quando a pandemia ganhou força no país. Santo André conta 2.330 casos confirmados e 130 mortes pela covid-19, uma pequena parte do que se vê no país, que neste domingo ultrapassou o meio milhão de casos, com 29.314 óbitos. Mas o município da Grande São Paulo viu aumentar em 20 vezes a busca de pacientes com sintomas gripais nos postos de saúde e nas unidades de pronto-atendimento nos últimos dois meses.
O reflexo dessa demanda é sentido também no Samu, onde os profissionais precisaram adaptar o seu ofício diário a uma nova nova realidade. Equipamentos de proteção, assim como a função de desinfectar a ambulância a cada retorno de uma ocorrência, foram adicionados à rotina. “A gente já passou pela H1N1, pela dengue, mas essa doença agora é diferente. Acho que entrou na cabeça de todo mundo que luva, máscara e avental é obrigatório. Não tem mais jeito de trabalhar sem”, diz Guireli.
O enfermeiro também precisou mudar o olhar sobre cada paciente em um exercício diário de tentar identificar uma doença ainda pouco conhecida e bastante agressiva em sua manifestação mais grave. Desde que novo coronavírus começou a se disseminar com velocidade pelo país, Guireli redobra a escuta e o olhar para identificar se há quaisquer sintomas de desconforto respiratório mesmo quando os chamados não envolvem diretamente a suspeita de covid-19. Isso faz parte de um processo de triagem que, para os profissionais do Samu, começa na rua para evitar que pacientes que possam estar infectados tenham qualquer contato com pessoas com outras doenças que procuram as unidades de saúde. “A gente passa a ter um ouvido mais afinado, a prestar mais atenção em detalhes clínicos que te norteiam, como a respiração e a temperatura”, conta o enfermeiro. Aprender a decifrar a doença nova ainda é um desafio na ponta, quando pacientes apresentam sintomas diversos, vários deles comuns também em outras síndromes gripais. “A gente vai se especializando naquilo lá”, diz Guireli, já na base, enquanto se prepara para desinfectar a ambulância.
É ele próprio quem faz a primeira limpeza, com a ajuda do condutor Ricardo Vieira, de 42 anos. Depois de desinfectado, o veículo passa por uma nova higienização pela equipe de limpeza. Há dois anos na linha de frente do Samu, Vieira conta que, nos últimos meses, viu os chamados duplicarem. Se antes trabalhava apenas com o fardamento básico, agora precisa ser muito mais metódico para colocar e, principalmente, para retirar cada equipamento de proteção depois das ocorrências. É ainda na rua, após encaminhar o paciente, que a equipe borrifa álcool nas botas e em parte dos equipamentos após cada atendimento. Uma proteção necessária tanto para evitar afastamentos em uma importante força de trabalho no combate à pandemia quanto para proteger a própria família em meio ao risco de levar um vírus tão contagioso para dentro de casa.
“Até a minha vida em casa mudou bastante. Chego em casa e vejo a minha mulher e o meu filho preocupados”, conta. Sempre que retorna do plantão que já não tem hora certa pra sair, Vieira precisa tirar parte do uniforme antes de entrar em casa. A roupa vai direto para a máquina de lavar. No trabalho, os colegas estão o tempo todo pesquisando técnicas e novos aparatos para tentar se proteger o máximo possível. Em uma emergência sanitária como esta, a ordem é tentar. Foi assim que os socorristas do Samu de Santo André desenvolveram com canos e plásticos uma espécie de cápsula para tentar trazer mais segurança aos profissionais ao entubarem pacientes graves. Ou adotaram pequenas soluções como o uso de plásticos nos compartimentos das ambulâncias para facilitar a desinfecção de cada insumo guardado ali dentro.
A preocupação consigo e com os familiares é constante em quem está na linha de frente, mas medo é uma palavra que não cabe no cotidiano deles, especialmente quando se veem em situações de urgência e casos graves da covid-19. “Medo a gente não tem. A gente escolheu isso, treinou. A gente estuda o tempo todo”, explica o enfermeiro Guireli. Assim como não cabe se envolver com os pacientes para não atrapalhar a tecnicidade que demanda a assistência deles, ainda que algumas histórias teimem em voltar à mente. Guireli lembra que perdeu um paciente de 47 anos, homem, que fazia exercícios físicos e parecia ter uma vida saudável. Relutante em procurar hospital, chamou o Samu quando já apresentava insuficiência respiratória. Chegou na unidade de saúde com vida, mas já não havia muito o que fazer. Morreu no mesmo dia em que foi socorrido. “Ele me chamou muita atenção porque era saudável”, diz o enfermeiro. “Essa doença é agressiva. E os pacientes apresentam sintomas diferentes dependendo da idade”, acrescenta.
Antes da pandemia, o Samu de Santo André costumava receber uma média de 200 chamados por dia. No início de março, a histórica demanda por acidentes e traumas se arrefeceu com o distanciamento social, mas não demorou para que os 250 profissionais que atuam nessas ambulâncias em santo André voltassem a ver a demanda se intensificar outra vez e voltar ao patamar anterior à crise com um novo perfil: a dificuldade respiratória imposta pela covid-19. “Os casos de suspeita de covid-19 e pedidos de transferência de pacientes vêm aumentando. Mudou o nosso perfil, porque agora temos menos traumas”, diz a médica reguladora Renata Rigo. Ela é uma das três profissionais que ficam em uma central monitorando tanto as características dos pacientes quanto os hospitais com vagas para saber para onde encaminhá-los. “Com base nisso a gente decide qual a ambulância que vai e se precisa que vá um médico ou só a enfermagem”, explica.
Se antes os profissionais do Samu conseguiam acompanhar a história dos pacientes que atendem e entender a sua capacidade de recuperação rapidamente, as longas internações dos casos graves do novo coronavírus agora deixaram os finais das histórias das quais participam fragmentadas. É difícil acompanhar o desfecho de cada ocorrência em meio à grave crise sanitária. Acostumados a lidar com altas situações de estresse e treinados para serem ágeis diante da urgência, os socorristas dizem que chama a atenção a gravidade da covid-19 e a dificuldade de reanimar os pacientes que não procuram atenção médica antes de apresentarem um quadro grave.
“Olha só como caiu o número de PCR (pacientes com parada cardiorrespiratória) que a gente consegue reverter”, diz o coordenador do Samu de Santo André, Renan Tomas, enquanto aponta para um gráfico com estatísticas fixado em um painel na parede. Desde janeiro, ele contabiliza ali o número de ocorrências em que os socorristas encontram o paciente em parada e quantos deles foram revertidos. “Em janeiro, revertemos 19 de 92. Em abril, de 121, a gente reverteu 4″, conta. “Está morrendo mais gente. O paciente com covid-19 não volta [da parada] de jeito nenhum. A gravidade aumentou”, diz.
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