“Tive que carregar uns 10 corpos para dentro do caveirão”: os relatos de tortura no Jacarezinho
Em depoimentos na audiência de custódia, quatro presos relatam as agressões que sofreram da polícia civil ao serem detidos. “ [Eles queriam] pegar minha cara e tacar na tripa do moleque que tava pra fora”, diz um deles

— Em algum momento você teve que carregar corpo? Pode contar um pouco como é que foi isso?
— Tinha vários corpos no beco e ele [o policial] falou “você vai ser obrigado a levar esses corpos aqui”. Eu falei “que isso, vai complicar levar esses corpos”. Já comecei a chorar, e eles “chora não!”, já querendo pegar minha cara e tacar na tripa do moleque que tava pra fora. Falei “não vou levar esse aí não”, aí ele começou a me bater, falando que eu era obrigado a levar. E eu falei “não vou levar, não vou levar, não vou meter a mão nisso daí, não”. “Bora, mete a mão logo!”. Aí começou várias porradas pra gente meter a mão. Mais de 10 corpos ele fez isso comigo.
O relato acima consta no depoimento, dado em audiência de custódia, de um dos seis presos na operação da favela do Jacarezinho, na zona norte do Rio de Janeiro, no dia 6 de maio. A ação, a mais letal da história do Estado, deixou um saldo de 28 mortes, um rastro de terror e muitos esclarecimentos a serem dados pela Polícia Civil e pelo Ministério Público do Rio. Imagens da chacina e relatos dos moradores, que denunciaram execuções extrajudiciais e manipulação indevida dos corpos, levados por agentes até os blindados da corporação, desmentem a versão oficial de que a ação se baseou no princípio da legítima defesa. Os relatos dos detidos reforçam o entendimento de que houve uma violação dos direitos humanos naquela quinta-feira.
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Os vídeos de quatro depoimentos foram divulgados primeiramente pelo portal UOL e acessados posteriormente pelo EL PAÍS e outros veículos de comunicação através do Sistema Eletrônico de Informações (SEI) do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ). Neles, os presos relatam terem sofrido uma série de agressões quando já estavam sob a custódia da polícia. Um deles, o que afirmou acima ter sido torturado e obrigado a levar os corpos de pessoas mortas pelos agentes, detalhou as agressões sofridas: “Na minha cabeça, me deu vários chutes aqui, me botou de costas e deu socos nas minhas costas”, explicou durante o interrogatório da audiência de custódia, procedimento no qual pessoas detidas em flagrante são levadas em até 24 horas diante um juiz, que deve decidir sobre sua prisão. É também um espaço no qual os detidos podem relatar, com segurança, eventuais abusos policiais: “Minha cabeça tá até aberta aqui, pode colocar a mão pra ver”, acrescentou o detido.
Outro detido chegou a afirmar ter medo de contar o que havia acontecido. Mas, depois de convencido pela autoridade que não havia o que temer, relatou ter sido espancado “com fuzil na cabeça, nos braços e nas costas”. Ele descreveu o agente como sendo “branco, olhos claros e alto”, e assegura que poderia identificá-lo.
Um terceiro detido contou ter sido agredido “vários pontos”, com “bambuzada, chute, tudo”, por diversos policiais. “Eram mais de 10, 15. Toda hora sobe dois, três e me dá um chute na cara”, detalhou. Ainda relatou que, no exame de corpo de delito, foram tiradas fotografias de seu rosto inchado. Questionado se havia dado a mesma versão após levado à delegacia, respondeu: “Não. Como que relata? O cara lá dentro quase matando nós.“
Outro dos presos relatou ainda ter recebido “chute, só chute”. Assim como outro detido, também contou ter sido obrigado a carregar os corpos de quem morreu. “Tive que carregar uns 10 corpos para dentro do caveirão”, relatou. Entre as várias imagens divulgadas durante a operação, também é possível ver agentes da Polícia Civil carregando os corpos, inviabilizando as perícias que, em tese, devem ser realizadas depois de uma operação policial.

O material deve ser levado em conta pelo Ministério Público, que, pressionado pela opinião pública e por entidades dos direitos humanos, formou uma força-tarefa para apurar o massacre. O organismo, que tem como atribuição constitucional fazer o controle externo das atividades policiais, quer investigar ao longo de pelo menos quatro meses as denúncias de execuções e abuso policial, a morte do agente André Frias e a tentativa de homicídio contra outros cinco policiais, duas tentativas de homicídio a passageiros do metrô e uma eventual irregularidade na remoção dos corpos.
Mas o momento posterior à operação vem sendo marcado por uma série de afrontas da Polícia Civil ao Supremo Tribunal Federal, acusado por um agente de fazer “ativismo judicial”, e também à transparência. A corporação impôs um sigilo de cinco anos aos documentos relacionados à chacina do Jacarezinho e estendeu o segredo a todos os papéis relacionados a operações policiais durante a pandemia, a partir de 5 de junho de 2020. Nesse dia, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, concedeu uma liminar —posteriormente respaldada pelos demais ministros— que restringe as ações durante a crise sanitária, determinando que elas sejam feitas em casos excepcionais e depois de uma justificativa ao Ministério Público do Rio.
Entidades de direitos humanos, como a Human Rights Watch e a Anistia Internacional, vem acusando a Polícia Civil de querer ocultar as informações daquele dia. Com a divulgação dos depoimentos dos presos, fica cada vez mais difícil manter os abusos policiais cometidos naquele 6 de maio nas sombras.
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