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Em afronta ao STF, polícia do Rio impõe sigilo a operação do Jacarezinho e outras ações na pandemia por cinco anos

Documentos são classificados como “reservados”. Corporação negou ao portal ‘UOL’ o acesso ao comunicado que justifica a operação e ao relatório final da ação, que resultou em 28 mortes e foi a mais letal da história do Estado. Entidades de direitos humanos reagem

Moradores do Jacarezinho observam agentes da Polícia Civil que participavam da operação que terminou com a morte de 28 pessoas, no dia 6 de maio.
Moradores do Jacarezinho observam agentes da Polícia Civil que participavam da operação que terminou com a morte de 28 pessoas, no dia 6 de maio.André Coelho (EFE)
Felipe Betim

Os detalhes sobre a chacina do Jacarezinho permanecerão no escuro. A Polícia Civil do Rio de Janeiro decretou o sigilo de cinco anos sobre os documentos relacionados à operação policial mais letal da história do Estado. Realizada no dia 6 de maio, uma quinta-feira, a ação resultou na morte de ao menos 28 pessoas. Mas a falta de transparência não parou por aí. A corporação estendeu o sigilo para todos os documentos referentes a operações policiais durante a pandemia, a partir de 5 de junho de 2020. Nesse dia, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, concedeu uma liminar —posteriormente respaldada pelos demais ministros— que restringe as ações durante a crise sanitária, determinando que elas sejam feitas em casos excepcionais e depois de uma justificativa ao Ministério Público do Rio. Ou seja, com o movimento, a polícia confronta o STF.

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Police conduct an operation against alleged drug traffickers in the Jacarezinho favela of Rio de Janeiro, Brazil, Thursday, May 6, 2021. (AP Photo/Silvia Izquierdo)
“Não vai embora, vão me matar!”: a radiografia da operação que terminou em chacina no Jacarezinho
Relatives pray and mourn during a Mass for the victims of a deadly police raid, outside the Nossa Senhora Auxiliadora church in the Jacarezinho favela of Rio de Janeiro, Brazil, Wednesday, May 12, 2021. A bloody, hours-long gun battle last Thursday, left authorities saying the police mission killed two dozen criminals while residents and activists claimed human rights abuses. (AP Photo/Silvia Izquierdo)
Editorial | Violência policial no Brasil
The wall of a house with a large mark of shots fired during a police operation in the Jacarezinho favela, city of Rio de Janeiro, Brazil. The house is located in Beco dos Caboclos, according to residents' reports this was one of the places where two bodies allegedly murdered by the police were found.
Numa mochila ensanguentada no Jacarezinho, a aula de Brasil contemporâneo

O sigilo foi descoberto pelo portal UOL, que havia solicitado à Polícia Civil por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) o acesso a dois documentos relacionados à chacina do Jacarezinho: o comunicado enviado pela corporação ao Ministério Público justificado a excepcionalidade da ação, tal e como determina o Supremo; e o relatório final da ação descrevendo todos os atos ocorridos durante aquele dia. Em resposta, a Polícia Civil classificou os documentos como “reservados” e com “restrição de acesso” por cinco anos. “O conteúdo da documentação solicitada é instruído com informações de caráter sigiloso, inerentes a planos e operações estratégicas da Segurança Pública”, justifica a corporação, que ainda acrescenta: “A difusão desse conteúdo pode comprometer e por em risco outras atividades de investigação e fiscalização”.

O ofício foi assinado pelo delegado Rodrigo de Oliveira, que atualmente é subsecretário de Planejamento e Integração Operacional. Foi ele quem, logo depois da operação no Jacarezinho, afirmou em coletiva de imprensa que o “ativismo judicial” —em clara referência ao Supremo— atrapalha as ações policiais no Rio de Janeiro. “Impedir que a polícia cumpra o seu papel não é estar do lado de bem da sociedade. O ativismo perpassa uma série de entidades e grupos ideológicos que jogam contra o que a Polícia Civil pensa. E a polícia está do lado da sociedade”, afirmou na ocasião.

Porém, o sigilo não se restringe à operação do Jacarezinho. Em resposta a outra solicitação, dessa vez para o canal GloboNews, a Polícia Civil respondeu que o sigilo vale para todas as operações realizadas desde 5 de junho, quando começou a valer as restrições impostas por Fachin. Desde essa data foram realizadas mais de 500 operações pelas polícias Militar e Civil. Na última sexta-feira, Fachin se disse contrário a protocolos policiais. “Não há justificativa para que os protocolos de atuação das polícias, que constituem os verdadeiros parâmetros de controle da legalidade de sua atuação, sejam mantidos em sigilo, impedindo o controle externo da atividade policial e o próprio controle cidadão da atividade policial e dos membros do Ministério Público”, escreveu.

A justificativa dada por Oliveira se baseia no decreto estadual 46.475/2018. Assinado pelo então governador Luiz Fernando Pezão (MDB), a medida adapta a LAI para o Estado do Rio e determina quais documentos estaduais devem permanecer em sigilo —por exemplo, aqueles que representam um risco à vida e a operações de organismos estaduais, e também comprometem atividades de inteligência. Não está claro, porém, se esse sigilo deve valer para operações já finalizadas.

Entidades reagem

Entidades de diretos humanos reagiram ao sigilo decretado pela Polícia Civil. Em nota, a Human Rights Watch afirmou que o sigilo deve ser revisto por autoridade independente. Para a ONG, “sem uma explicação detalhada” que justifique a decisão, “a classificação mais parece uma tentativa de ocultar informação de interesse público”. A organização destaca que o direito internacional determina que, quando há suspeita de violação dos direitos humanos, “a regra é de maior transparência no acesso à informação, e o sigilo deve ser a exceção”.

Lembra também que há relatos de moradores e fortes evidências de execuções extrajudiciais durante a operação no Jacarezinho, além de abusos contra pessoas detidas e destruição de provas —corpos foram removidos do lugar dos tiroteios. “Existe um claro conflito de interesse quando a Polícia Civil, que investiga se os próprios agentes violaram a lei, agora decide decretar sigilo de informações sobre a operação”, afirma a ONG. “É difícil acreditar que a motivação para decretar o sigilo é verdadeiramente proteger uma investigação cuja conclusão eles já anteciparam”.

Já a diretora-executiva da Anistia Internacional, Jurema Werneck, afirmou em nota que “é fundamental que toda informação relativa às graves violações dos direitos humanos que a gente observou na operação da Polícia Civil do Rio de Janeiro na comunidade do Jacarezinho estejam garantidas sob o manto da transparência”. Também destacou que “a sociedade brasileira, a sociedade do Rio de Janeiro e a comunidade têm o direito de saber o que é que determinou aquelas ações”. E concluiu: “Todas as informações a respeito do que aconteceu precisam estar expostas. É preciso que a gente saiba para que as coisas não se repitam. É preciso que as autoridades do Rio de Janeiro e do Brasil deem uma resposta veemente para que esse tipo de violação não mais aconteça.”

A Associação Brasileira de Imprensa (ABI) também protestou “de forma veemente” contra a decisão. “Está claro que o objetivo de tornar sigilosas as informações é impedir uma investigação isenta”, afirmou em nota o presidente da entidade, Paulo Jeronimo. “A ABI informa, ainda, que está estudando medidas jurídicas para derrubar o sigilo estabelecido pelo Governo do Estado”.

Em entrevista a Folha de S. Paulo, o presidente da comissão de direitos humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ) declarou que “tornar sigilosa toda a investigação é esconder o que de fato aconteceu” e “viola inclusive tratados de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário”. “O STF tem que se posicionar mais uma vez e tornar público tudo que aconteceu durante a operação do Jacarezinho, quem autorizou aquela operação e quais os motivos reais que levaram à operação que vitimou quase três dezenas de pessoas.”

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