Violência e corrupção: as duas aliadas dos políticos milicianos
A dicotomia entre as duas é perversa porque autoriza a violência, coloca quem está contra como aliado da corrupção, e enganosa porque nada mais próximo da corrupção policial do que a repressão policial
A chacina de Jacarezinho é a maior de todas na cidade do Rio de Janeiro. Mas, infelizmente, não surpreende. Choca, mas não surpreende. O quarto da menina de nove anos sendo limpo porque um policial executou uma pessoa ali não parece ser uma imagem forte o suficiente para reverter cenas que são cotidianas.
E como é possível que a escala, absolutamente única, da violência da polícia fluminense se mantenha de forma tão persistente? Uma das hipóteses seria dizer que a sociedade está assustada com a criminalidade e aceita conviver com uma polícia tão violenta como um custo para que o problema seja resolvido.
Mas o problema está sendo resolvido? A letalidade policial no Rio de Janeiro nunca conseguiu baixar a criminalidade. Ao contrário, a violência da polícia tem sido um elemento de piora da segurança pública no Estado. E os apoiadores dessa violência como solução são —conscientemente ou não— cúmplices da crise de segurança no Rio.
O filme Tropa de Elite prestou um grande desserviço ao debate sobre polícia no Brasil. Não vou discutir se essa foi ou não a intenção do seu diretor. Mas uma leitura corrente do filme, um dos mais vistos da história do cinema nacional, foi a de que duas polícias distintas eram apresentadas. Uma corrupta e outra violenta. Uma má e outra boa. Como quase tudo que é tão maniqueísta, tratava-se de ficção. Há apenas uma polícia. Com corrupção, violência, com gente séria e gente incompetente.
A dicotomia entre corrupção e violência é particularmente perversa. E particularmente enganosa. É perversa porque autoriza a violência, justifica a violência e coloca quem está contra a violência como aliado da corrupção. E é enganosa porque nada mais próximo da corrupção policial do que a violência policial. São fenômenos que se alimentam.
A corrupção necessita da violência. A corrupção policial —e aí falando especificamente do Rio de Janeiro— se constrói em uma rede de extorsão e cumplicidade que setores da polícia montam com a criminalidade. A polícia é violenta em algumas comunidades e isso permite que bandas podres da polícia possam extorquir, participar da venda de armas, ameaçar.
A violência autorizada é, na verdade, um cheque em branco para que a polícia aja fora da lei. Para que as corregedorias não investiguem a relação entre o crime organizado e a polícia. Afinal, investigar a polícia é romper o pacto de impunidade que os agentes da lei criam. Esse pacto se utiliza de um discurso de guerra no qual as leis, a Constituição e seus defensores seriam apenas entraves para que a polícia possa cumprir o papel que a sociedade quer que ela exerça nessa guerra. E é a partir desse pacto de impunidade, de uma certeza de que a polícia não será investigada, que floresce a polícia corrupta. A polícia que se alia à milícia. A polícia que é instrumento de setores políticos que vendem violência e embolsam corrupção.
O segundo filme do Tropa de Elite tenta desenhar um pouco essa relação. O inimigo agora é outro? Mas era tarde demais. A imagem da polícia violenta como honesta era poderosa demais. E útil demais para a máquina política criminosa. É o desenho perfeito. A população tem medo. O medo não pede uma solução de políticas públicas a longo prazo. O medo pede respostas fortes, imediatas. A violência é essa resposta. E a violência policial tem o duplo condão de abrir novos mercados para as bandas criminosas e milicianas dentro do Estado, escolhendo qual facção controlará determinado território, recebendo seu quinhão —via corrupção— no lucro dos mercados ilegais do Rio de Janeiro e, também, de criar o discurso político que entrega sangue para receber votos.
Apoie a produção de notícias como esta. Assine o EL PAÍS por 30 dias por 1 US$
Clique aquiOs políticos que defendem os milicianos, que defendem a violência policial como política, constroem sua base política explorando o medo da população, usando o espetáculo da violência como propaganda política e garantem a impunidade para os setores da polícia que se infiltram, controlam e se aproveitam do domínio de território exercido pelo crime.
Para quem se interessa por essa discussão, é urgente ler A República das Milícias – dos Esquadrões da Morte à Era Bolsonaro, de Bruno Paes Manso. Neste livro fica cristalina essa relação tão forte entre o discurso de apoio à violência policial, o crescimento da polícia corrupta e o grupo político que floresce do poder criminoso e lhe garante impunidade.
É esse ciclo vicioso no qual a violência e a corrupção se alimentam por meio da política que permite compreender como algo que vem dando errado há tanto tempo continua sendo levantado como bandeira para a segurança pública. Há interesses poderosos demais que sobrevivem politicamente desse ciclo.
Mas claro que não é só isso. A relação entre corrupção e violência, abraçadas pelo pacto da impunidade, só pode existir em uma sociedade que aceita a violência contra determinados grupos e em determinadas regiões. O racismo tão forte da nossa sociedade funciona como a grande benção a esse sistema corrupto. As vidas negras nas favelas são descartáveis. Todos são suspeitos. O Estado de Direito não deve existir para negros em favelas. O racismo é tão forte que é possível construir um discurso falso de que a violência traz segurança (mesmo com o fracasso tão retumbante do modelo) e gerar um pacto para proteger milicianos corruptos, assassinos, desde que essa violência recaia exclusivamente sobre negros moradores de favela.
A construção de uma política de segurança efetiva e para todos no Estado do Rio de Janeiro passa, em primeiro lugar, por quebrar esse ciclo vicioso de corrupção, violência, política e racismo. Para isso é necessário ser firme na defesa de um sistema de combate às ilegalidades cometidas pela polícia, no fortalecimento de uma polícia cumpridora da lei e intolerante com abusos de violência e de corrupção. É necessário que se desmascare a política que se constrói a partir da lógica miliciana de valorizar a violência para lucrar a corrupção. E é necessário o enfrentamento cotidiano e incansável ao racismo que é o verdadeiro óleo dessa engrenagem violenta e corrupta.
Pedro Abramovay é diretor para América Latina e Caribe da Open Society Foundations e advogado.
Apoie nosso jornalismo. Assine o EL PAÍS clicando aqui
Inscreva-se aqui para receber a newsletter diária do EL PAÍS Brasil: reportagens, análises, entrevistas exclusivas e as principais informações do dia no seu e-mail, de segunda a sexta. Inscreva-se também para receber nossa newsletter semanal aos sábados, com os destaques da cobertura na semana.
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.