Jacarezinho, vestígios de um Brasil colonial
A chacina nos lembra um país ainda preso num passado remoto, com uma parcela da população excluída dos benefícios do contrato social, para quem o Estado só aparece com o arbítrio e violência desmedida
Resultado da operação policial no Jacarezinho, Zona Norte do Rio: 28 mortos (vários por execução, segundo denúncias), pessoas feridas no metrô, cidade parada, danos materiais e desperdício de recursos públicos. No mundo civilizado, uma tragédia como essa iria gerar comoção nacional, investigação rigorosa por parte da Justiça sobre o uso da força policial, responsabilização dos autores e debate sobre o modelo de polícia e sobre os melhores mecanismos de controle dessa organização pela sociedade civil.
Na província chamada Brasil em algum momento nos perdemos nas esquinas da história e ficamos presos numa longínqua idade média. Aqui, ao contrário, o governador do Rio de Janeiro comemorou o “êxito” da polícia, assim como certo segmento da sociedade que festejou a morte de supostos criminosos. Ao que parece, até o momento, três das vítimas fatais haviam sido denunciadas pelo Ministério Público por tráfico de drogas e eram procurados pela polícia. Sabe-se, contudo, que os mortos eram pobres e negros, “merecendo”, portanto, a execução extrajudicial, num país ainda dominado pelo racismo estrutural e pela violência atávica contra as classes econômicas subalternizadas, que vem desde os tempos coloniais.
A malfadada operação já nasceu ilegal, uma vez que o ministro Edson Fachin do Supremo Tribunal Federal (STF) havia determinado a suspensão de operações policiais em comunidades pobres no Rio de Janeiro no período da pandemia, no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) Nº 635. Apenas aquelas de natureza emergencial estão permitidas, o que claramente não foi o caso, uma vez que o próprio representante da polícia civil afirmou que a ação foi supostamente precedida por um trabalho de inteligência e planejamento.
Além da desastrosa operação policial consistir numa afronta direta ao STF e, portanto, ao próprio Estado Democrático de Direito, é um desserviço à imagem das boas organizações policias ainda existentes no país preocupadas com a segurança pública e com a boa técnica policial.
Apoie a produção de notícias como esta. Assine o EL PAÍS por 30 dias por 1 US$
Clique aquiO objetivo central de qualquer política de segurança pública é preservar vidas e garantir a incolumidade física e material, bem como a tranquilidade dos cidadãos. Para atingir tais objetivos, a principal arma das polícias modernas é a inteligência e o planejamento tático, para permitir que as operações tenham êxito no sentido de prender os criminosos e garantir a vida de todos. Naturalmente, em muitos casos, o policial tem a prerrogativa até de matar o outro, desde que tal ação seja necessária e legítima, conforme normatizado em vários artigos no Código Penal e do Processo Penal, que seguem o Código de Conduta para Encarregados da Aplicação da Lei – CCEAL (ONU, 1979), adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em sua resolução n. 34/169 de 17 de dezembro de 1979. A chacina do Jacarezinho, portanto, foi a negação ao que se entende por política de segurança e por um bom trabalho de polícia. Trouxe apenas morte (inclusive de um policial), medo e insegurança e nenhum benefício para a sociedade.
Com efeito, a política do confronto, ou da guerra contra o tráfico de drogas nos morros cariocas, é praticada desde 1980 e só tem contribuído para o adoecimento das nossas instituições e para o aumento da violência no Estado, em um ciclo insano que lembra o princípio da contraindução, jocosamente definido pelo grande economista Mario Henrique Simonsen. Segundo ele, quando uma política adotada no Brasil dá errado, tratamos de repeti-la indefinidamente para ver se dá certo um dia.
De fato, para além das vidas perdidas, a política do confronto associada à falta de controle do uso da força pelas organizações policiais gera consequências indesejáveis que prejudica a segurança pública de forma persistente ao longo dos anos. Primeiro, a ideologia da guerra promove ódios recíprocos entre polícia e comunidade, que passam a se ver como inimigos. Em segundo lugar, confrontos, balas perdidas e o som da guerra fazem aumentar a sensação de medo não apenas dos próprios moradores das comunidades, mas do entorno e de toda uma cidade, o que compromete a segurança de todos no amanhã. Em terceiro lugar, a política do confronto faz aumentar a demanda por armas de fogo com maior potencial ofensivo, numa verdadeira corrida armamentista entre criminosos e organizações policiais —como exemplo, o uso carnavalesco do AR15 é uma invenção genuinamente carioca. Em quarto lugar, a repetição reiterada da experiência da morte no trabalho do dia-a-dia dos policiais gera sérios problemas de adoecimento mental individual e também institucional. Não é à toa, que a taxa de suicídios entre policiais é quatro vezes maior do que a da população civil. Por fim, o uso indiscriminado e descontrolado da violência pela polícia faz vicejar um próspero mercado de propinas, uma vez que vida e morte passam a ter preço no mercado do arrego.
Jacarezinho nos traz vestígios de um Brasil ainda preso num passado remoto, com uma parcela da população excluída dos benefícios do contrato social, para quem o Estado só aparece com o arbítrio e violência desmedida, onde cidadania é um conceito distante; e onde parcela da população no andar de cima aplaude.
Daniel Cerqueira é conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, coordenador do Atlas da Violência e presidente do Instituto Jones dos Santos Neves.
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