_
_
_
_
_

Acusado de crime contra a humanidade na CPI receitou dose inédita de proxalutamida a paciente com covid-19

Flávio Cadegiani é o médico responsável por estudo com a mesma droga que pode ter levado à morte de 200 pessoas. Caso correu em Brasília, na clínica particular do endocrinologista, onde ele fez tratamento com um remédio em fase de testes sem respaldo ético e científico necessário

Prontuário médico de paciente em Itacoatiara-AM com a receita de proxalutamida.
Prontuário médico de paciente em Itacoatiara-AM com a receita de proxalutamida.michael dantas

Nos primeiros meses deste ano, um homem de 28 anos infectado pelo novo coronavírus procurou a clínica particular Instituto Corpometria, em Brasília, para tratamento com o endocrinologista Flávio Adsuara Cadegiani. Segundo relatório publicado sobre o caso na revista britânica British Medical Journal (BMJ) em 15 de fevereiro, o paciente fazia uso diário de um anabólico esteroide que agravou seu diagnóstico, com piora dos sintomas da covid-19 quatro dias antes da consulta. Em seu tratamento, o homem recebeu uma dose de 600mg de proxalutamida, seguida de 200mg diários pelos sete dias seguintes. O fármaco não possui registro no Brasil e foi utilizado pelo médico sem a autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), numa dose jamais aplicada oficialmente em um ser humano. Cadegiani é também o médico responsável por um estudo clínico com o mesmo medicamento em três Estados que virou alvo de denúncias da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) pela possibilidade de ter levado à morte 200 pessoas.

O endocrinologista foi inserido entre as 68 sugestões de indiciamento no relatório da CPI da Pandemia, que chegou à reta final nesta semana, por crime contra a humanidade. “Há fortes indícios de violação de direitos humanos dos participantes desse estudo pelo Dr. Flávio Adsuara Cadegiani, com a indevida utilização de proxalutamida, fármaco cujo uso também era defendido pelo Presidente Bolsonaro”, diz o relatório do senador Renan Calheiros (MDB-AL), submetido nesta quarta aos membros da CPI da Pandemia. Para o relator da CPI, as pesquisas com proxalutamida, “fraudulentas e não autorizadas”, indicam “que seres humanos foram utilizados como cobaias”.

Cadegiani se une a um grupo de médicos que se destacou nos últimos meses por propor ou defender tratamentos alternativos (sem validade comprovada contra o vírus) durante a pandemia, como a toxicologista e oncologista Nise Yamaguchi, o toxicologista e pediatra Anthony Wong (que morreu de covid-19) e o microbiologista francês Didier Raoult, o defensor original da cloroquina. As propostas desses doutores —nenhum deles infectologista— para combater o coronavírus foram se provando ineficazes com o tempo, mas até hoje as pesquisas divulgadas por eles são usadas como argumento por defensores do famigerado tratamento precoce. As teorias se alimentraram da ansiedade mundial por uma solução para a pandemia, que confundiu até as publicações científicas mais renomadas. “Uma situação de pandemia abre portas para uma interpretação mais flexível dos princípios éticos que regem a ciência”, analisa o oncologista e professor de Bioética da Universidade de Brasília (UnB) Marco Antônio dos Santos. “No entanto, é preciso existir um respaldo científico e uma plausibilidade muito maior do que a vista nesses casos”, diz.

Aviso aos leitores: o EL PAÍS mantém abertas as informações essenciais sobre o coronavírus durante a crise. Se você quer apoiar nosso jornalismo, clique aqui para assinar.

A proxalutamida é uma droga experimental estudada para aplicação em pacientes com alguns tipos de câncer, como de próstata ou mama, pois bloqueia a ação de hormônios masculinos. Segundo a farmacêutica chinesa Kintor Pharma, responsável pelo desenvolvimento do medicamento, ele chegou à fase 3 de testes no mês de setembro. O fármaco não possui registros em nenhum país do mundo e tampouco pode ser comercializado, por ainda estar na etapa de pesquisa. No Brasil, só é possível adquirir um remédio sem registro da Anvisa com o propósito de estudo clínico aprovado pela CONEP ou através de solicitação de uso compassivo, para tratar pacientes portadores de doenças debilitantes e graves para as quais não exista medicação.

O grupo de pesquisa responsável pela publicação do caso na BMJ admitiu à reportagem do EL PAÍS que o paciente de 28 anos que recebeu o tratamento em Brasília não fazia parte de nenhum estudo clínico. Já a Anvisa confirmou que “não houve solicitação de uso compassivo do medicamento proxalutamida. A regulamentação define que o acesso a medicamentos por meio de uso compassivo ou acesso expandido devem ser previamente autorizados”. O caso também não tinha aprovação da CONEP.

Ademais, a dose à qual o paciente foi exposto é maior do que qualquer outra divulgada por publicações da área. Pesquisas feitas nos dois sites mais relevantes para consulta de estudos científicos, Clinical Trials e Pub Med, mostram que as doses máximas de proxalutomida testadas em pessoas com câncer ao redor do mundo são de até 500mg, enquanto o paciente com covid-19 recebeu 600mg na clínica de Cadegiani. A própria farmacêutica responsável pelo medicamento indica que os testes para covid-19 sejam realizados com doses de até 300mg.

Segundo o relatório publicado na BMJ, o paciente melhorou dos sintomas 24 horas após a ingestão da primeira dose do remédio. O grupo afirma que o estado do homem ao chegar no consultório era “grave”, apesar de não constar que ele foi internado. Não são divulgadas informações a respeito da identidade da pessoa e nem do seu estado de saúde a longo prazo. O grupo alega apenas que o tratamento considerado como experimental foi gratuito e consentido entre paciente e doutor.

O professor de Bioética da UnB Marcos Antônio dos Santos afirma que o uso experimental da proxalutomida no combate à covid-19 é uma “loucura do ponto de vista ético e científico”. “Dois princípios básicos regem a ética em pesquisa desde o século passado: a capacidade do paciente de consentir com o tratamento, algo que é prejudicado em uma situação de vulnerabilidade como a de alguém com covid-19; e a equipoise, palavra em francês que representa a dúvida genuína por parte do médico responsável a respeito da eficácia do medicamento”, explica. “Não tem cabimento pensar que a proxalutomida poderia ter qualquer eficácia no combate à covid-19.″

Segundo Santos, o uso compassivo demandaria ao menos evidências sólidas da eficácia da medicação. “Definitivamente não é o caso da proxalutamida. A covid-19 tem uma mortalidade pequena se comparada a outras doenças, como o câncer. Quando você dá uma medicação ao paciente e ele melhora, do ponto de vista estatístico, é improvável que tenha sido por conta do remédio”, completa. O professor destaca a importância de saber o que estava escrito no termo de consentimento assinado pelo paciente. “O consentimento é um processo, não um papel. É ainda mais grave numa situação de pandemia, quando você tem medo de morrer e alguém te oferece uma esperança que você não tem condição de avaliar”, esclarece. “Se o termo esconde informações às quais o paciente tem direito, isso caracterizaria dolo do pesquisador. Seria tão grave que os últimos a fazerem algo parecido na medicina foram os nazistas”, conclui.

Cadegiani garante que “o paciente foi informado de absolutamente todos os riscos, direitos etc” no termo em questão, mas não divulgou o documento. O termo de consentimento foi um dos fatores mais criticados pela CONEP no estudo clínico conduzido por Cadegiani em hospitais do Amazonas, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, que registrou 200 óbitos entre os envolvidos. Em nota, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) diz que o termo utilizado “destoa profundamente do modelo originalmente aprovado (...) havendo subtração de trechos que garantiam os direitos dos participantes de pesquisa”. O CNS ainda reforça que a pesquisa foi feita em lugares não autorizados e com um número de cobaias não permitido. Também diz que o excesso de mortes levanta a hipótese de que os pacientes que deveriam tomar placebo para efeito de controle na pesquisa “tenham recebido inadvertidamente fármaco com potencial tóxico e que explicaria a elevada frequência de falência renal e hepática neste grupo”. “Em toda a história do Conselho Nacional de Saúde, nunca se testemunhou no país tamanho desrespeito às normas de ética e aos participantes de pesquisa”, conclui o texto.

O endocrinologista Flávio Adsuara Cadegiani.
O endocrinologista Flávio Adsuara Cadegiani.Reprodução/Instagram

Pesquisadores se defendem

O EL PAÍS entrou em contato com os autores do caso publicado na BMJ através do email disponibilizado pelos próprios no site da revista. Além de Cadegiani, participaram do relatório Carlos Gustavo Wambier, dermatologista e professor da Universidade Brown, nos Estados Unidos; Erica Lin, estudante de medicina na Universidade Brown; e Andy Goren, dermatologista e diretor médico da Applied Biology (parceira norte-americana da Kintor). Deles, apenas Cadegiani e Wambier responderam às tentativas de contato.

Cadegiani argumenta que o tratamento com a proxalutomida foi feito por uso compassivo sem a necessidade de autorização da Anvisa, e cita um trecho de uma resolução da CONEP: “A decisão do uso compassivo de medicamentos é uma decisão médica, não cabendo a apresentação de protocolo para apreciação”. No entanto, o documento referido pelo médico tem o título de “Orientações para a proposição de ensaios clínicos no cenário da covid-19″. Cadegiani e Wambier admitem que o paciente de Brasília “não foi incluído em nenhum estudo clínico” e dizem que, portanto, as regras do documento apresentado não se aplicariam. Ao mesmo tempo, Wambier diz que “esta medicação [a proxalutamida] estava sendo usada pelo doutor Cadegiani unicamente para estudos”, contradizendo o colega.

A Anvisa comunicou que a proxalutomida importada para o Brasil tinha como destino apenas estudos clínicos relacionados à eficácia da droga, e que portanto não poderia ter sido usada em tratamentos particulares. A Agência suspendeu a importação no dia 2 de setembro, após denúncia do CONEP, e informou que “identificou discrepâncias nos processo de importação e adotou algumas medidas de investigação que estão em curso”.

Cadegiani alega que o medicamento é oriundo da China e que não tem conhecimento de outro tratamento similar realizado com a proxalutomida no Brasil. Ele defende a dose de 600mg como “dose de ataque”, termo utilizado na medicina para um tratamento com uma dosagem inicial maior seguida de um padrão menor, dizendo que é “segura para o caso de emergência”. O médico diz que essa segurança se baseia em “vários estudos, incluindo os anteriores de fases 1 e 2 em câncer de próstata”.

Wambier confessa, da sua parte, que “ainda são necessários estudos duplo-cego, controlados com placebo com uma dose de 600mg”. “Este estudo ainda não foi realizado para sabermos o real benefício. Porém, pelo que se sabe da farmacologia da medicação que segue a da maioria das medicações disponíveis, esta posologia é provavelmente a ideal”, completa. O dermatologista diz que “a proxalutamida já estava sendo usada em um estudo fase 2-3 aprovado pelo CONEP no momento do uso para este paciente específico” e que “o doutor Flávio Cadegiani realizou os primeiros estudos fase 3 da proxalutamida para covid-19″.

No entanto, nota da Anvisa de 30 de agosto afirma que os estudos clínicos da fase 3 autorizados com o medicamento no Brasil datam de março de 2021. O caso do paciente em Brasília foi publicado na BMJ em 15 de fevereiro de 2021, o que indica que o tratamento é anterior a essa data. E o nome de Cadegiani não consta entre os responsáveis pelos estudos aprovados. O site de busca Clinical Trials aponta um estudo de fase 3 do medicamento sendo conduzido no Hospital Santa Paula, em São Paulo, cuja investigadora principal é a infectologista Cristhieni Rodrigues.

Por fim, Wambier argumenta a favor do uso compassivo do fármaco sem registro e sem aprovação da Anvisa contra o coronavírus, ao compará-lo a “um fio de nylon não estéril”, como “única solução disponível para suturar uma laceração cutânea enorme e salvar a vida”.

Print do documento da CONEP que Flávio Cadegiani usa para justificar o uso da proxalutamida em sua clínica, no ponto 4.6. No entanto, o título esclarece que o documento se refere apenas a "ensaios clínicos", o que não era o caso do paciente de Brasília.
Print do documento da CONEP que Flávio Cadegiani usa para justificar o uso da proxalutamida em sua clínica, no ponto 4.6. No entanto, o título esclarece que o documento se refere apenas a "ensaios clínicos", o que não era o caso do paciente de Brasília.CONEP

Sugestão de indiciamento na CPI

Flávio Adsuara Cadegiani é o 66º nome entre as 68 sugestões de indiciamento no relatório final da CPI da Pandemia. Segundo o documento, o endocrinologista é acusado por crime contra a humanidade de acordo com o artigo 7 do Tratado de Roma (Decreto 4.388, de 2002). Em sua defesa, Cadegiani assegura que as denúncias “são desprovidas de qualquer fundamento fático ou jurídico, sendo certo que não foi infringida nenhuma norma ética e nem procedimental na condução das citadas pesquisas”. Sobre o estudo que registrou 200 óbitos, ele se abriga em um parecer da CONEP que aprovou a pesquisa em janeiro de 2021, mas “não especificou em quais hospitais seriam realizados os estudos, assim como não trouxe nenhuma condicionante, nem qualquer exigência de registro”. Também afirma que “nenhum dos óbitos foi suspeito de ter ocorrido em decorrência de medicação, mas sim em decorrência da covid-19″. Por fim, acusa a CONEP e a CNS de divulgar informações sigilosas das pesquisas.

A British Medical Journal, revista que publicou o relatório sobre a aplicação dos 600mg de proxalutamida no paciente de Cadegiane, respondeu às tentativas de contato dizendo que “seguindo as preocupações levantadas ao BMJ, estamos investigando o uso do medicamento relatado neste caso (proxalutamida) e as circunstâncias em torno de sua disponibilidade e licença para uso”.

Inscreva-se aqui para receber a newsletter diária do EL PAÍS Brasil: reportagens, análises, entrevistas exclusivas e as principais informações do dia no seu e-mail, de segunda a sexta. Inscreva-se também para receber nossa newsletter semanal aos sábados, com os destaques da cobertura na semana.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_