António Guterres: “Relação disfuncional entre EUA, China e Rússia impede resposta comum à pandemia”
Secretário-geral da ONU defende a gestão da OMS na crise do coronavírus e atribui à UE um papel vital para evitar uma ordem mundial dominada por Washington e Pequim
Passaram-se 75 anos desde a fundação das Nações Unidas e o mundo de 1945, liderado por um grupo de potências desejando se entender, não é o de hoje. Mas António Guterres, nascido em Lisboa há 71 anos, está convencido de que a maior organização internacional ainda funciona e tem um futuro pela frente. O nono secretário-geral da ONU afirma em entrevista ao EL PAÍS, Die Welt e La Tribune de Genève, que fazem parte da Aliança de Jornais Líderes na Europa (LENA, na sigla em inglês), que agora o mundo precisa, mais do que nunca, de uma liderança forte: “Precisamos de uma liderança global, senão não podemos responder de forma eficaz a desafios como os de uma pandemia. No entanto, infelizmente, onde há poder, não há liderança, e onde há liderança, falta poder”.
Desde que assumiu seu cargo, em janeiro de 2017, as coisas não têm sido fáceis para Guterres. Pouco depois, Donald Trump anunciava que os Estados Unidos estavam se retirando do Acordo de Paris ― a luta contra a mudança climática é uma das grandes prioridades da ONU ― e o país parava de exercer o papel de polícia do mundo, adotado desde o pós-guerra, para se entregar ao lema “America First” (“EUA em primeiro lugar”) do inquilino da Casa Branca. O confronto entre EUA e China não parou de se agravar, os pactos de controle de armas estão desmoronando, a situação em relação ao Irã e à Coreia do Norte é imprevisível, o mundo vive uma grave crise de refugiados e a pandemia causada pelo coronavírus deixou quase meio milhão de mortos no mundo.
A entrevista foi feita quarta-feira passada por videoconferência e Guterres, que é formado em engenharia elétrica e foi primeiro-ministro socialista de Portugal (1995-2002) e alto comissário das Nações Unidas para os Refugiados (2005-2015), conectou-se pontualmente de Nova York.
Pergunta. Qual o impacto da pandemia e como será o mundo depois?
Resposta. Ainda não sabemos como a pandemia vai evoluir. Há um cenário otimista, no qual os países desenvolvidos coordenam suas respostas e conseguem conter o vírus para evitar uma segunda onda de contágios. Os países em desenvolvimento se salvariam pelo menos da catástrofe. As coisas voltariam à normalidade em dois ou três anos. Mas também há um cenário pessimista, originado pela falta de uma resposta coordenada, que seria um desastre para o hemisfério sul e geraria uma significativa segunda onda no norte, com consequências econômicas terríveis e uma depressão global de cinco a sete anos. Mas é muito cedo para prever como será o mundo na era pós-pandemia. Espero que esta crise seja um alerta. Ela nos ensina que temos de enfrentar juntos os desafios globais. As divisões são reais e temos de mudar esta situação. Imagine um futuro vírus que se espalhe tão rápido como o coronavírus e seja tão letal como o ebola. Precisamos encontrar a forma de trabalhar juntos.
P. Donald Trump anunciou o rompimento da relação dos EUA com a Organização Mundial da Saúde, alegando que a OMS se tornou um fantoche da China. A OMS foi muito permissiva com Pequim nos primeiros dias da pandemia?
R. Em algum momento, teremos de investigar a origem da pandemia, como ela pôde se espalhar tão rápido e como a OMS, os países e outras entidades reagiram. É claro que essa análise terá de ser feita. Mas o que posso dizer é que conheço as pessoas da OMS e elas não são controladas por nenhum país. Sempre agem de boa fé e para obter a melhor cooperação possível dos Estados membros. Erros podem ter sido cometidos, mas não acredito que a OMS tenha tentado ajudar a China a esconder a realidade. Acredito que a organização queria ter uma boa relação com a China no início da pandemia. Queria garantir que a China cooperasse.
P. Mas parecia haver uma relação muito boa entre o chefe da OMS e o Governo chinês.
R. Lembro que o chefe da OMS disse, não muito tempo atrás, que os Estados Unidos estavam fazendo um grande trabalho na luta contra a pandemia e que seus esforços deveriam ser reconhecidos. Assim, não acredito que ele esteja do lado de nenhum país em particular...
P. A ONU é criticada com frequência por ser uma organização muito burocrática, lenta e cara. Como esses problemas podem ser resolvidos?
R. É verdade que há problemas burocráticos na ONU, assim como em outras organizações internacionais e Governos nacionais. Por isso, um de meus objetivos-chave é tornar nossa organização mais ágil e mais eficiente para responder melhor às preocupações, ansiedades e esperanças das pessoas de que nos ocupamos. Mas muitas reformas exigem o consenso dos Estados membros. Isso faz com que o processo seja muito mais lento do que gostaríamos. De qualquer forma, a ONU fez um progresso considerável nos últimos anos. Por exemplo, um dos temas principais da reforma é a paridade de gênero. E agora temos igualdade entre os 180 cargos de direção que existem na organização.
P. Nestes 75 anos, o mundo mudou. A ONU se adaptou?
R. Muitos órgãos da ONU ainda trabalham da mesma forma que quando foram criados há 75 anos, mas o mundo mudou. O Conselho de Segurança, por exemplo, reflete o equilibro de poderes posterior à Segunda Guerra Mundial. É uma desconexão clara em relação às necessidades da atualidade. Às vezes, temos grandes dificuldades para que o Conselho de Segurança tome as decisões necessárias sobre as crises que enfrentamos hoje. Mas seria injusto ver a ONU apenas como um monstro burocrático. Metade da ajuda humanitária no mundo é canalizada através da ONU. Agora mesmo, durante a pandemia causada pelo coronavírus, estamos ajudando 110 milhões de pessoas em 64 países. Nossa organização forneceu 250 milhões de equipamentos de proteção individual (EPIs) aos países em desenvolvimento. Apenas nas últimas seis semanas, a rede logística da ONU forneceu 69.000 metros cúbicos de suprimentos médicos. Fizemos isso de forma rápida e eficaz. No ano passado, demos alimentos a 87 milhões de pessoas, e metade das vacinas do mundo só está disponível através da ONU.
P. Os conflitos continuam.
R. Desde que a Carta da ONU foi aprovada em 1945, o mundo vive o período mais longo de uma paz essencial. Não houve grandes confrontos entre as grandes potências nos últimos 75 anos. Isso é algo. Certamente não é mérito apenas das Nações Unidas, mas é inquestionável que a organização tem contribuído significativamente para evitar uma grande guerra.
P. Em um mundo com menos cooperação, qual pode ser o papel da União Europeia (UE), que se apresenta como defensora do multilateralismo?
R. A UE tem um papel vital a desempenhar. Acredito firmemente que precisamos de um mundo multipolar com mecanismos de governança multilateral. A UE deve evitar que se consolide um G2, ou seja, uma ordem global com apenas duas superpotências, EUA e China. Por exemplo, quanto à mudança climática, a UE está liderando uma iniciativa para reduzir suas emissões até 2030. E tenho a esperança de que assim incentive outros atores a fazer o mesmo.
P. O Conselho de Segurança costuma ficar paralisado, a Assembleia Geral está cheia de regimes autocráticos e na Comissão de Direitos humanos há Estados que não parecem ser muito escrupulosos em relação aos direitos humanos. Como cumprir assim a missão de promover a liberdade e a democracia?
R. A ONU não é uma federação de democracias. É uma organização em que todos os países do mundo estão representados. Essas organizações intergovernamentais têm contradições inevitáveis com as quais precisamos trabalhar. O que constitui um grande desafio é que as relações entre as potências mais importantes, EUA, China e Rússia, estão mais disfuncionais do que nunca. Isso faz com que seja muito difícil para a ONU agir em algumas questões-chave e encontrar um consenso para mobilizar a comunidade internacional.
P. Por exemplo?
R. A comunidade internacional é incapaz de encontrar uma resposta comum para a pandemia. As estratégias variam muito entre países. A principal razão é essa relação disfuncional entre as grandes potências. Precisamos de uma liderança global, senão não podemos responder de forma eficaz a desafios como os de uma pandemia. No entanto, infelizmente, onde há poder, não há liderança, e onde há liderança, falta poder. Além disso, quando olhamos para as instituições multilaterais, temos de reconhecer que elas não têm dentes. Ou, quando têm, não têm muito apetite. Não querem morder. Esse parece ser o caso do Conselho de Segurança.
P. Além da pandemia, há questões muito urgentes, como a mudança climática e os refugiados, que já são 1% da população mundial.
R. A luta contra o vírus é nossa principal preocupação atualmente, mas acreditamos que a questão que marcará nosso tempo continua sendo a mudança climática. As gerações futuras nos julgarão pelo que formos capazes de fazer para conter o aquecimento global. O caminho é claro. Precisamos limitar o aumento das temperaturas a 1,5 grau e reduzir as emissões em 45% durante esta década, mas estamos longe desses objetivos. Por isso é necessário mobilizar à comunidade internacional.
P. A mudança climática está relacionada à migração.
R. É uma das razões pelas quais as pessoas abandonam suas casas. Precisamos garantir que os refugiados encontrem proteção. E nessa área a Europa fracassou nos últimos anos. A Europa deveria ter distribuído os refugiados de uma forma mais justa entre os países. Mas devo dizer que a chanceler [chefa de Governo] da Alemanha, Angela Merkel, fez um excelente trabalho e a Europa deve estar agradecida.
P. A ONU pediu um cessar-fogo durante a pandemia. Quase ninguém ouviu. Por quê?
R. Muitos conflitos estão abertos há muito tempo, são complexos e difíceis de resolver. No entanto, meu apelo para um cessar-fogo teve amplo apoio dos Estados membros, de outras organizações e até de algumas partes em conflito. Alguns o aceitaram, como os movimentos rebeldes em Camarões, Tailândia e Filipinas. Faremos tudo que for possível para transformar esses gestos em tréguas mais permanentes. Vimos progressos em alguns países, como Iêmen, Afeganistão e Sudão. Em outros, é mais difícil. A maior frustração é a Líbia, onde as resoluções do Conselho de Segurança são violadas constantemente.
P. O que acontecerá se Israel anexar parte de Cisjordânia, como planeja, em julho?
R. Estamos decididos a dizer a todo mundo e a todo momento que uma anexação é uma violação grave do direito internacional e, neste caso, uma ameaça à estabilidade global e regional. Isso tornará impossível a solução de dois Estados, que continua sendo nosso principal objetivo e, em minha opinião, a única forma de sair da situação atual. Tentamos criar as condições para uma reunião do Quarteto [de mediadores] com Israel e os palestinos, sem condições prévias. Uma reunião que permita que as partes falem entre si.
P. A pandemia nos confina em casa. A diplomacia internacional pode funcionar via Zoom e Skype?
R. A diplomacia global pode ser feita através do Zoom ou do Skype, mas é muito mais difícil. Estamos tendo muitas videoconferências com representantes do Iêmen. Mas acredito que as conversações seriam muito mais fáceis se pudéssemos nos encontrar pessoalmente. Acredito que a diplomacia precisa do contato humano.
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