_
_
_
_

Franco Berardi: “A pandemia reativou o futuro. Há condições para reformatar a mente social”

Filósofo italiano, autor do recém-lançado no Brasil ‘Asfixia’, reflete sobre a vida após o coronavírus

O filósofo Franco Berardi.
O filósofo Franco Berardi.Editora UBU
LUISA DUARTE VICTOR GORGULHO
São Paulo -
Mais informações
Un oficial de policía vigila ante un cartel el pasado 23 de enero en Pekín.
O coronavírus de hoje e o mundo de amanhã, segundo o filósofo Byung-Chul Han
Carolin Emcke, Alemann writer, Torino, Italy, 7th September 2017. (Photo by Leonardo Cendamo/Getty Images)
Carolin Emcke: “A pandemia é uma tentação autoritária que convida à repressão”
Jürgen Habermas reads in the living room of his home in Starnberg, near Munich.
Assim argumenta Habermas, 90

Desde o início da pandemia do novo coronavírus, inúmeras vozes da filosofia têm compartilhado, em textos e diários virtuais, seus diagnósticos acerca das mudanças impostas pela covid-19 em todos os âmbitos da vida social. Entre elas, uma de destaque certamente é a do italiano Franco “Bifo” Berardi, 70 anos. Veterano de Maio de 1968 e importante figura do movimento operário italiano da década de 1970, o italiano é o autor de títulos como Depois do futuro e Asfixia, ambos publicados no Brasil pela editora Ubu.

Questões exploradas há décadas na pesquisa do filósofo —as mudanças de paradigma em nossa capacidade de imaginar o futuro, a automação da linguagem frente a hiperconectividade e a virtualização das relações e do corpo— parecem, agora, mais urgentes do que nunca. Em Asfixia, estão dois de seus ensaios recentes mais importantes, Inssurreição (2011) e Respiração (2018). O segundo toma como mote para reflexão a frase “não consigo respirar” (“I can’t breathe”), repetida oito vezes pelo norte-americano Eric Garner antes de morrer, em 2014, vítima de violência policial em Nova York. Em uma brutal repetição do episódio, há poucos dias, George Floyd, outro cidadão negro norte-americano, foi morto por asfixia após abordagem policial no Estado de Minnesota. Suas últimas palavras foram precisamente as mesmas de Garner, o que despertou levantes e protestos em diversas regiões dos Estados Unidos e no mundo.

Para Berardi, a dificuldade contemporânea em respirar é tanto literal quanto alegórica. É, a um só tempo, fruto do curto-circuito de uma época que combina a precarização da vida, a bancarrota dos regimes neoliberais e a complexidade atrelada a pandemia de um vírus que atua como um “recodificador” de nossas vidas.

Pergunta. Você fala em um “psicovírus”. Está posta aqui a ideia do vírus como um agente de mutação “biológica, cultural e linguística”, “criaturas” que se proliferam coletivamente. É possível aferirmos uma leitura alegórica da relação entre a dificuldade contemporânea de respirar, a tal “asfixia”, e o fato do vírus atacar não só, mas principalmente, o sistema respiratório do corpo humano?

Resposta. Antes de mais nada, ao nível do biovírus, podemos tirar uma conclusão: que a poluição do meio ambiente e o consequente enfraquecimento do corpo respiratório, particularmente os pulmões das pessoas que vivem nas áreas metropolitanas, abrem caminho para novas infecções. Portanto, seria idiota retornarmos à aceleração e à poluição geradas pela energia fóssil. Mas também estou interessado no lado metafórico da respiração: a harmonia na relação entre os organismos respiratórios e a felicidade que se baseia no compartilhamento comum das vibrações respiratórias entre os corpos. Penso que o efeito psicológico do bloqueio e, acima de tudo, a internalização erótica da dimensão contagiosa do corpo —os lábios, os fluidos corporais― será um grande problema para a geração jovem e para todos nós, de uma maneira ou de outra.

P. Em seus diários escritos durante a quarentena você afirma: “O imprevisto que esperávamos: a implosão. O organismo superexcitado do gênero humano, depois de décadas de aceleração e de frenesi, depois de alguns meses de convulsões gritantes sem perspectivas, fechado em um túnel cheio de raiva, de gritos e de fumo, finalmente se vê afetado pelo colapso”. Podemos tentar usar a implosão causada pela pandemia como uma chance para uma reformatação da mente de outra natureza?

R. Nada é certo, é claro, e não escrevo sobre qual será o próximo cenário. Não haverá apenas um cenário, mas sim muitos, contraditórios e até conflitantes. De repente, a pandemia reativou o futuro como um espaço de possibilidade, pois os automatismos —tecnológicos e financeiros— que desativaram a subjetividade política nestas últimas décadas de neoliberalismo foram quebrados. O cenário econômico e social que iremos descobrir quando sairmos da quarentena é difícil de ser imaginado. Não se parecerá com as recessões passadas porque será simultaneamente uma crise da oferta e da demanda, e também porque o colapso está expondo a perspectiva de estagnação que já era visível nos últimos dez anos, apesar dos esforços de revitalização econômica. Ao longo das últimas décadas, o crescimento diminuiu a ponto de se tornar uma espécie de utopia ruim. A desaceleração econômica não foi o efeito de uma crise provisória, mas sim fruto da exaustão dos recursos físicos do planeta e do aumento tecnológico da produtividade. Paradoxalmente, não conseguimos ver a possibilidade de reduzir o tempo de trabalho porque estávamos obcecados com a ideia de cultivar produtos nacionais, o que não é uma maneira de medir a quantidade de coisas úteis que estávamos produzindo mas sim uma medida da acumulação de valor monetário. Agora este feitiço está quebrado. Obviamente, a queda que a pandemia provocará exigirá um esforço de reconstrução, mas estamos na condição de decidir o que queremos reconstruir e o que queremos esquecer. Podemos abandonar o modelo extrativista, a extração poluidora de petróleo e adotar tecnologias não poluentes.

E o mais importante: podemos abandonar um modelo em que o consumo é determinado pela oferta e em que a frugalidade toma o lugar do consumismo. Uma coisa agora é clara: a principal causa da angústia atual é a primazia do lucro privado sobre o interesse social. Os destruidores neoliberais do sistema de saúde são responsáveis ​​pelo pesadelo europeu dos dias de hoje. O regime autoritário neoliberal cortou um quinto das unidades de terapia intensiva. Um terço dos clínicos gerais. As clínicas privadas investiram em terapias caras para os ricos, enquanto o empobrecido sistema público abandonou a produção de máscaras sanitárias. Nove por cento dos médicos italianos foram infectados porque foram obrigados a trabalhar em condições impossíveis. Portanto, vejo as condições para uma reformatação igualitária e transidentitária da mente social, mas sei que esse processo será ambíguo, incerto e, por vezes, contraditório.

O efeito psicológico do bloqueio e, acima de tudo, a internalização erótica da dimensão contagiosa do corpo —os lábios, os fluidos corporais― será um grande problema

P. O que podemos esperar de uma imaginação coletiva capaz de forjar outros futuros —ou “futurabilidades”, como você coloca— em meio a esse momento de aberturas e fechamentos, medos e possibilidades que a pandemia instaura? Como esperar mais da imaginação se uma das causas de sua atrofia está na hiperconectividade, e talvez nunca tenhamos estado tão conectados nas redes como agora, em quarentena?

R. O vírus atua como um “recodificador”: antes de mais nada, o biovírus recodifica o sistema imunológico dos indivíduos e depois das populações. Mas o vírus opera traduções da esfera biológica para a psicosfera, o efeito do medo, do distanciamento. O vírus transforma a reatividade de um corpo em relação a outro, reformulando o inconsciente sexual. Já vimos esse processo nos anos da síndrome da imunodeficiência que afetou profundamente a disponibilidade erótica e a solidariedade afetiva entre as pessoas. Em segundo lugar, temos uma disseminação do vírus na mídia: as informações são saturadas pelas epidemias, a atenção do público é polarizada. Mas, simultaneamente, uma nova sensibilidade pode surgir: o passado é percebido de uma maneira diferente e o futuro é revertido. O passado da conexão perpétua aparecerá na memória como um sintoma de solidão e ansiedade, e a dimensão online será inconscientemente internalizada como algo ligado a doença. Para elaborarmos o efeito do psicovírus de uma maneira consciente e não dolorosa, precisamos de uma elaboração coletiva, utilizando-nos de sinais, gestos linguísticos, sugestões subliminares, convergências subconscientes. E isso se dá propriamente no espaço da poesia, uma vez que ela é o campo em que novas disposições de sensibilidade podem ser moldadas.

P. Ao longo das últimas décadas assistimos a uma contínua desaparição do corpo vivo, analógico, enquanto ganhava protagonismo o que você chama de um corpo digital zumbi. Em alguma medida a pandemia provoca um retorno do corpo, somos lembrados novamente que temos um. Entretanto, esse retorno acontece mobilizando o medo da morte e o temor quanto a proximidade do outro, potencial agente de contaminação. Como você vislumbra o lugar do corpo no futuro pós pandemia?

R. Os efeitos estéticos e eróticos da “conectivização” (ou virtualização da comunicação) embaçaram e, às vezes, colocaram em risco a esfera da sensualidade e também a esfera da interação social em geral. Esse tem sido o tema principal do meu trabalho nos últimos vinte anos: a mutação do modo conjuntivo para o modo conectivo de comunicação, e também da percepção estético-erótica. Agora vejo uma espécie de divisor de águas, uma espécie de salto em uma nova dimensão que é simultaneamente perigosa e desafiadora, mas também reveladora. Literalmente apocalíptica. O isolamento está relacionado à inevitável expansão da atividade online, da experiência online. Ficaremos assustados com a proximidade, ficaremos incapazes de beijar os lábios de uma pessoa que deseja ser beijada? Ou, ao contrário, estaremos cansados ​​das trocas online e desejosos de ternura, sensualidade e solidariedade social? Não tenho respostas para essa pergunta, é claro. Mas a resposta não pode ser determinística. As transformações técnicas deste período de passagem serão importantes, mas não serão determinadas em nenhum sentido. Depende de um trabalho político essencialmente psicanalítico e também estético.

Tenho a impressão de que uma explosão poética está ocorrendo de maneira fragmentada, esporádica, disseminadora e rizomática por todos os circuitos da rede

P. A ideia de uma “batalha final entre humanos e transumanos como o grande jogo geopolítico do século” parece um cenário verossímil e ao mesmo tempo a sinopse de um filme de ficção científica. A ficção especulativa está cada vez mais próxima da realidade ou é o noticiário que nos parece beirar mais e mais a ficção?

R. Nos anos 80, li muita ficção científica, particularmente esse tipo de ficção científica mentalista, na fronteira com o cyberpunk, que estava particularmente interessado em assuntos que hoje se tornaram realidade. Eu li muitos escritos de William Burroughs e Philip K. Dick. Dois escritores prolíficos, apesar de caóticos, que eram principalmente fascinados por um tipo de realidade alternativa que era de alguma forma distópica e conceitualmente densa. Em 1979, Burroughs publicou um pequeno romance intitulado Blade Runner (Ridley Scott usou esse título para o filme que é, na verdade, extraído do romance de Dick, Androides sonham com ovelhas elétricas?). O mote da narrativa de Burroughs é a epidemia de um câncer contagioso que, ao mesmo tempo que é fatal para a pessoa afetada, dá a ela uma enorme energia sexual. As instituições médicas proíbem, então, a difusão do câncer que é transmitido pela cidade pelos blade runners, espécies de mensageiros que comercializam drogas e outros antídotos. Um texto totalmente delirante, publicado em Berkeley em 1979, mas quase desconhecido do grande público. Nesse delírio, no entanto, existe uma intuição que é proposta novamente pelo autor em Ah Pook is here!, também publicado em 1979: a infecção viral como metáfora da mutação cultural. Ah Pook termina com uma visão apocalíptica: “o ovo mortal maia libera o Vírus-23, que emerge do distante mar do tempo morto e se espelha pelas cidades do mundo como incêndios em florestas”. Para entender o ponto filosófico que emerge dos textos de Burroughs, devemos ler também as páginas de Playback from Eden e The Electronic Revolution, onde o autor explica, com sua lucidez alucinógena, que a linguagem humana é apenas um vírus que se estabilizou no organismo do animal humano, o atravessando e o transformando no que ele é agora. Burroughs imagina uma metrópole distópica de doença e toxicidade, onde os blade runners incessantemente circulam com drogas pelas ruas e pelos canais de mídia, mantendo o sistema nervoso em permanente estado de excitação e medo, uma adrenalina eletrônica.

A medicalização de cada fragmento do sistema econômico, a falência dos institutos financeiros e da instituição política: esse pesadelo burroughsiano é o contorno do planeta após o fim do bloqueio do coronavírus. Não o retorno ao mundo normal, mas um salto em uma dimensão em que o perigo da pandemia —e, mais amplamente, o perigo da extinção— se torna a motivação fundamental, o alfa e o ômega de toda troca, de toda produção. Será a extinção o novo horizonte do ser humano?

Franco Berardi durante visita a Barcelona, em 2019.
Franco Berardi durante visita a Barcelona, em 2019.ALBERT GARCIA

P. “A sensibilidade, a capacidade de entender o que não pode ser verbalizado, tem sido uma das vítimas da fractalização do tempo. Para que possamos reativá-la, a arte, a terapia e a ação política terão que unir forças.” Você pode nos falar sobre como essa trinca pode vir a atuar para um retorno da sensibilidade entre nós?

R. Tenho a impressão de que uma explosão poética está ocorrendo de maneira fragmentada, esporádica, disseminadora e rizomática por todos os circuitos da rede. A Internet, que temos criticado com frequência nos últimos anos, também mostra nesta ocasião sua potência de solidariedade e libertação. A partir das postagens que tenho lido no Facebook e de mensagens que leio em e-mails, está surgindo uma forma refinada de minério. É óbvio, as pessoas têm mais tempo e não podem ir ao café conversar com os amigos, portanto ficam na frente do computador e digitam. Quero dizer: elas não digitam, elas escrevem. E isso é interessante. Elas podem estar pensando na maneira de contar um evento microscópico que acontece em sua vizinhança ou podem estar tentando elaborar um fato enorme que assistiram na TV. O fato é que milhões de pessoas estão gravando fragmentos de seu tempo neste “limbo”, fazendo pequenos filmes, usando imagens e palavras para expressarem suas próprias experiências. Eles estão tecendo o tecido do cosmos que pode se tornar reconhecível para além deste limbo, do cosmos que está divergindo “cismogeneticamente” da armadilha caótica das regras que mantinham o mundo unido pela destruição. Em uma enorme escala, uma pesquisa coletiva está em andamento, uma pesquisa que é simultaneamente psicanalítica, política e estética. Na extrema laceração do tecido do significado, estamos passando por uma máquina de escrever que tenta reativar a sensibilidade mesmo dentro da esfera de sensibilização da conexão. Um imenso poema “cismogenético” está sob composição; a intenção deste poema é produzir a forma harmônica da mutação.

Informações sobre o coronavírus:

- Clique para seguir a cobertura em tempo real, minuto a minuto, da crise da Covid-19;

- O mapa do coronavírus no Brasil e no mundo: assim crescem os casos dia a dia, país por país;

- O que fazer para se proteger? Perguntas e respostas sobre o coronavírus;

- Guia para viver com uma pessoa infectada pelo coronavírus;

- Clique para assinar a newsletter e seguir a cobertura diária.

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo

¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?

Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.

¿Por qué estás viendo esto?

Flecha

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.

Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.

En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.

Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_