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Hannah Arendt continua pensando

Filósofa refletiu sobre temas que seguem preocupando: o perigo das emoções na política, a confusão entre fatos e opiniões, a crise da cultura e o totalitarismo. Sua obra vive um autêntico ‘boom’ editorial

Hannah Arendt, na Universidade de Chicago em 1966.
Hannah Arendt, na Universidade de Chicago em 1966.© Art Resource / Hannah Arendt Bluecher Literary Trust

Isak Dinesen dizia que é possível suportar toda a dor se a transformarmos em uma história. Algo parecido poderia se afirmar de Hannah Arendt e sua fecunda relação com a teoria política, um campo do saber que reivindicou com afinco e que lhe serviu para enfrentar todas as crises políticas e pessoais dos amargos tempos em que viveu. Hoje, como à época, o vocabulário que utilizou para pensar e narrar o mundo, suas reflexões e essa escrita tão bela, tão sua, nos ajudam a interpretar o que nos acontece, ainda que seja somente como simples anões olhando o mundo no ombro de gigantes. Ela, evidentemente, o foi, e é sempre uma maravilhosa surpresa descobrir que, por trás de uma obra brilhante, também há uma vida que irradia luz. Foi assim, curiosamente, como ela mesma descreveu a seus referentes em Homens em Tempos Sombrios: Isak Dinesen, a apaixonada autora de A Fazenda Africana, para quem relatar histórias era “deixar que se fossem” e encorajava a “repetir a vida na imaginação”; Walter Benjamin, aquele “homenzinho corcunda” de poético pensamento; e seu mestre Karl Jaspers, cuja vida dedicada à Humanität fez com que a luz do público terminasse por “modelar toda sua pessoa”.

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Foi assim que Arendt olhou e descreveu seus contemporâneos, com a mesma empatia e honestidade intelectual com as que tentou contemplar e analisar as turbulências políticas do século XX. Quem quiser encontrar nela um pensamento sistemático, um corpus teórico ordenado e coerente, é melhor que não leia seus escritos. A originalidade de Arendt está justamente em que seus livros escapam a qualquer classificação. Cada um obedece a um propósito e um assunto diferentes, e neles disseca conceitos com a precisão de um cirurgião e a beleza de quem sabe que a linguagem é um precioso tesouro, escapando de qualquer tentação de trancar seu pensamento em um sistema, incluindo de oferecer uma linha argumentativa que sirva de “parapeito” e “corrimão”, como ela mesma dizia, para construirmos um refúgio tranquilizador onde tudo nos encaixa. Muito pelo contrário, descreveu a atividade de pensar como entendeu sua própria vida, como um risco e a partir de uma inspiração profundamente socrática, compreendida como um exercício que sacode e expulsa rotinas, que nos obriga a coser e descoser nossos pensamentos.

Arendt encarou os assuntos mais complexos com a coragem e a prudência do pensador que os observa de frente e os analisa da distância e com o filtro da reflexão. Em suas obras, ressaltou a importância do julgamento político como essa forma concreta que adota o pensar no mundo da política, e também falou de nossa responsabilidade, da radicalidade do mal e sua banalização, do totalitarismo como argamassa homogeneizadora de sujeitos atomizados, da atividade do pensar e a artificialidade e evanescência da esfera pública, e dessa “brilhante luz da presença constante dos outros”. Não se encolheu diante de nenhum tema: a verdade e a mentira na política, o poder como ação acordada e seu oposto, a atração pela violência. São somente alguns exemplos de tudo o que Arendt se atreveu a pensar de maneira genuína, controversa e incisiva, sempre com voz própria: a única maneira de pensar. Por isso não é casual que hoje suas palavras nos interpelem com tanta força. Seu poder está em sua peculiar forma de abordar os grandes temas, de iluminar seus muitos e paradoxais aspectos, de enlaçar sutilmente conceitos e se atrever a fazer todas as perguntas.

Durante os últimos anos, nos vimos obrigados a voltar o olhar ao livro As Origens do Totalitarismo, onde disseca os pontos fundamentais que explicam essa estranha lealdade consubstancial aos movimentos de massas que os populistas de toda espécie buscam. O exemplo paradigmático é, evidentemente, Trump, e aquelas aterrorizantes palavras que pronunciou em Iowa na campanha de 2016: “Poderia estar em plena Quinta Avenida e atirar em alguém, e não perderia eleitores”. Essa forma acrítica de ser partidário estava relacionada com essa ideia que ele soube ativar em seus eleitores e que Arendt descreveu em sua obra-prima: faziam parte de algo maior do que uma força política convencional; integravam um movimento. Muitos dos fenômenos que descrevem essa era da pós-verdade foram explicados e desenvolvidos por Arendt ao nos falar da adesão inquebrantável aos novos demagogos de seu tempo. Sobrevivente de uma época mais atribulada do que a atual, Arendt soube ver como tais movimentos sempre apresentam sistemas de significado alternativos perfeitamente coerentes, onde o que convence seus integrantes não são os fatos (“nem mesmo os fatos inventados”, nos diz) e sim a consistência aparente daquilo a que nos sentimos pertencer. Já aparece aqui a insuportável carga emocional com a que hoje nos ligamos a nossa tribo.

A autora de Verdade e Política também nos ajudou a diferenciar entre verdades factuais e opiniões, nos alertando que “a liberdade de opinião é uma farsa se não se garantir a informação objetiva e os próprios fatos não forem aceitos”. Dessas observações se destila a imensa importância que Arendt concedeu à esfera pública, esse espaço que permite a existência de um “mundo comum” e sua inevitável conexão com a pluralidade de opiniões e a liberdade humana. Porque somente com a discussão “humanizamos aquilo que está acontecendo no mundo e em nós mesmos, pelo mero fato de falar sobre isso; e à medida que o fazemos, aprendemos a ser humanos”. Arendt nos alertava do risco de preencher esse espaço de uma única verdade, pois qualquer verdade “termina necessariamente o movimento do pensamento”. Assim, pluralidade e liberdade estão sempre juntas com ela, conectadas à esfera pública a partir de seu republicanismo, nesse espaço de aparição que possibilita a autonomia pessoal e política exatamente ali onde convivem vozes dissidentes, levando adiante uma discussão autêntica, capaz de gerar um “mundo comum”. Mas é a informação objetiva que garante que possamos nos pronunciar sobre algo com uma ancoragem no real, fugindo de realidades paralelas e da tentação de levar ao público meras inquietudes privadas. As opiniões só podem se formar com a condição de que existam essa informação objetiva e uma discussão autenticamente plural e aberta; do contrário, ocorrerão “estados de ânimo, mas não de opiniões”. É inevitável pensar na atual quebra do espaço público derivada do absurdo poder das redes, de sua potestade para expulsar as vozes dissidentes e preencher o debate de mera emocionalidade.

A reivindicação do puramente fatual não a fez evitar as perguntas políticas sobre como os fatos do passado afetavam o presente, mas também o futuro. Sua motivação, seu impulso político estiveram caracterizados pelo que ela mesma denominou “amor do mundo”, por nossa responsabilidade para com seu cuidado. Por isso precisamos de Arendt, porque constrói a partir da esperança, transformando-a em categoria política. Hoje, quando parece que todos os males residem no futuro, Arendt nos lembra que, enquanto existirem novas vidas, sempre existirá a possibilidade de “um novo começo”, porque “cada recém-chegado” tem a capacidade de “fazer algo novo”, a faculdade de fazer e manter novas promessas que permitam construir “ilhas de segurança”. Tais promessas são os pactos sobre os quais se edificam as instituições, o marco de referência que permitem desenvolver o jogo de nossa vida em comum. Sem elas, não há jogo e estabilidade possíveis, mas também não, curiosamente, pluralidade, ação e movimento. A ausência de certezas não nos libera da responsabilidade de cuidar do mundo que compartilhamos. Esse é o legado de Hannah Arendt. Talvez não seja um ponto de vista ruim.

LEITURAS

Hannah Arendt. Por Amor ao Mundo. Elisabeth Young-Bruehl. Relume-Dumará.

Nos Passos de Hannah Arendt. Laure Adler. Record.

Eichmann Em Jerusalém. Hannah Arendt. Companhia das Letras.

Origens do Totalitarismo. Hannah Arendt. Companhia de Bolso.

A Condição Humana. Hannah Arendt. Grupo GEN.

A Vida do Espírito. Hannah Arendt. Civilização Brasileira.

Da Revolução. Hannah Arendt. Penguin Books.

Entre o Passado e o Futuro. Oito Exercícios Sobre a Reflexão Política. Hannah Arendt. Perspectiva.

Compreender: formação, exílio e totalitarismo; ensaios (1930-1954). Hannah Arendt. Companhia das Letras.

Crises da República. Hannah Arendt. Perspectiva.

Tiempos presentes. Hannah Arendt. Gedisa.

Homens em Tempos Sombrios. Hannah Arendt. Companhia de Bolso.

Diario Filosófico. Hannah Arendt. Herder.

Poemas. Hannah Arendt. Herder.

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