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Crise nos emergentes, o ângulo cego da pandemia do coronavírus

Países em desenvolvimento sofrerão em 2020 seu primeiro ano negativo em pelo menos seis décadas e milhões de pessoas voltarão à pobreza

Lixão na periferia da Cidade do México.
Lixão na periferia da Cidade do México.CARLOS JASSO (REUTERS)
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São tantos os recordes deixados por essa crise relâmpago que, talvez, deveríamos pensar em parar no meio do caminho, tomar distância e olhar em perspectiva as estatísticas ― todas pavorosas ― que o dia a dia nos deixa. Até agora, as que continuam caindo, já não a conta-gotas e sim em avalanche, deixam uma enxurrada de más notícias impossíveis de se imaginar meses atrás. Os confinamentos levarão a economia global ao seu pior ano desde o crash de 1929, esse que só conhecemos através do cinema e dos livros de história econômica. A dívida pública baterá máximos históricos em boa parte do Ocidente e o emprego, a variável macro mais estreitamente ligada à economia real, reverterá boa parte dos ganhos registrados nos últimos anos, quando o golpe da crise financeira de 2008-2009 começava a ficar para trás na memória.

Há, entretanto, um ângulo cego que torna esta crise diferente das anteriores: o bloco de países em via de desenvolvimento, que não parou de ganhar peso no coquetel da economia mundial, fechará em 2020 seu primeiro exercício no negativo desde que existem dados. O que nenhuma das crises estritamente emergentes do último meio século conseguiu será feito por um minúsculo vírus de 0,000125 milímetros. Os números do Fundo Monetário Internacional (FMI) vão até quatro décadas atrás e o pior registro havia sido um crescimento de 1,2% de 1983. Nos dados do Banco Mundial, que vão até o começo dos anos sessenta, o pior exercício fechou com um aumento do PIB de 0,7% que hoje soa a anseios de tempos melhores: neste ano as nações em vias de desenvolvimento sofrerão um retrocesso de 1%, o que oferece uma imagem sem precedentes, com os países da OCDE e os de renda média e baixa sob o manto da recessão e a economia mundial à deriva.

“Nós nos centramos nos países ricos, mas deveríamos nos preocupar, até mais, com os emergentes”, frisa Ana Revenga, do think tank Brookings, que vê “otimistas demais” as previsões econômicas publicadas até agora sobre o bloco. “A desaceleração econômica na China [líder de fato do bloco] é algo muito novo e tanto a América Latina como aqueles que estão mais integrados à economia global são os que mais irão sofrer. Há pouco em que se agarrar nesse momento”. Em plena tempestade global, as economias avançadas têm mais razões do que nunca para se preocupar por esse vendaval que atinge o casco de países emergentes que superaram há tempos a barreira de 50% do PIB global. “Ao contrário da crise de dez anos atrás, que a China aproveitou como plataforma para sair ao exterior, agora estamos em um salve-se quem puder. Mas é cego, porque ou saímos todos [da crise] ou caímos todos”, alerta Lourdes Casanova, chefa do Instituto de Mercados Emergentes da Universidade Cornell. “O contágio econômico de segunda rodada às economias avançadas pode ser por via dos emergentes”.

Uma vez que sofre uma sacudida e meia por década, o bloco emergente nunca soube realmente o que é viver sem pressão. Nos anos oitenta foi a crise da dívida latino-americana. No meio dos noventa, quando seus membros começavam a ter acesso aos mercados internacionais, chegou o tequilazo [a forte crise econômica mexicana de 1994, que abalou o cone sul]. E, logo depois, a onda financeira dos tigres asiáticos. Em 2008 conseguiram sair quase incólumes: a explosão da mãe de todas as recessões no Ocidente, a Grande Recessão, só os atingiu de raspão graças ao sustento de matérias-primas que voavam alto. Mas dessa vez... “isso é diferente”, como escreveu recentemente a economista Carmen Reinhart. “Estão sob um choque múltiplo, e o mais preocupante: que coincida no mesmo momento tanto o golpe interno como o externo, uma vez que ambos são envergadura histórica”, diz Enrique Mendoza, diretor do Penn Institute for Economic Research e professor da Universidade da Pennsylvania.

Primeiro sinal, quantitativo: o estouro do mercado de capitais. Como sempre, chega de uma forma desordenada, com uma norma não escrita, mas que se cumpre à risca crise após crise. A primeira coisa que os grandes fundos de investimento fazem ―antes até de pensar em onde irão investir novamente― é recolher as velas nos países vistos considerados de maior risco: os emergentes, que são, por sua vez, os que mais precisam de investimentos e créditos para crescer. Esperando os dados de abril ―e já adiantando: não serão muito melhores―, em março saíram mais de 50 bilhões de dólares (274 bilhões de reais) das Bolsas emergentes e 31 bilhões (170 bilhões de reais) dos mercados de dívida, de acordo com os dados do Instituto de Finanças Internacionais, a patronal mundial do setor financeiro.

Segundo sinal, qualitativo: Bill Rhodes, um dos banqueiros que vivenciou mais de perto o plano Brady, de reestruturação da dívida de países emergente ―mais especificamente, da latino-americana― no final dos anos noventa, já alertou de que essa crise no mundo emergente é a pior que seus olhos viram: “Será difícil”. E o terceiro sinal, também qualitativo: a Fidelity, uma das maiores gestoras de ativos do planeta, das que realmente movimentam os mercados, alertou sobre o que está por vir nas economias em desenvolvimento. “Estou realmente preocupada por esses mercados”, disse nessa semana a chefa de estratégia global do conglomerado, Anna Stupnytska. A regra é um “protejam-se” total. Mas são tantos os canais de contágio possíveis de golpe, que se proteger hoje não é mais do que uma ilusão.

Nada escapa do incêndio. A começar pelos países manufatureiros ―asiáticos e o México, principalmente―, por sua dependência das economias avançadas ―Europa e EUA―, que são o destino natural de suas exportações, e por sua ligação com as cadeias globais de valor para as quais uma pandemia global é pura dinamite. Os dependentes do caminho das matérias-primas e do petróleo ―especialmente a América do Sul, mas não só ela―, porque o menor apetite da indústria e consumidores finais provocou um severo corte sobre volumes e preços. Os turísticos ―a Tailândia, ilhas do Caribe e um bom número de destinos africanos―, porque viram reduzidas a zero uma fonte de renda e divisas essencial para sua manutenção. E os dependentes das remessas de dinheiro ―sudeste e leste asiático, América Central e, novamente, o México (dessa vez os golpes atingem o país norte-americano por todos os lados)― porque o desabamento dos mercados de trabalho no Ocidente exaurirão a capacidade dos imigrantes de enviar dinheiro aos seus: de acordo com os cálculos do Banco Mundial, a queda nesse título ―que já é a principal fonte de divisa aos emergentes em seu conjunto― se aproximará de 20% anual.

Como combater um golpe dessa magnitude? Enquanto vários países da Ásia emergente lançaram planos fiscais ambiciosos, o bloco latino-americano ―com algumas exceções, como o Peru e o Chile, também os países que têm mais margem― optou por uma aproximação mais tímida. “É o momento da ação”, diz o número dois do Banco Mundial, Axel van Trotsenburg. “Os órgãos multilaterais e os Governos não podem especular. Sabemos que a crise é profunda, muito profunda, mas não podemos perder tempo falando sobre quanto: é preciso agir de maneira rápida, maciça e decisiva”. O chefe de operações do órgão reconhece que a margem de ação dos emergentes é menor ―“não têm a infraestrutura dos países da OCDE e não podem colocar sobre a mesa planos de estímulo do tamanho dos feitos pelos EUA e Europa”―, mas alerta quanto ao risco de um grande aumento da pobreza e da pobreza extrema.

Ainda que o buraco da informalidade faça dos mercados de trabalho emergentes algo parecido a um queijo de Gruyère, as redes de proteção social desses países estão mais desenvolvidas do que em crises anteriores. “Mas estão planejadas contra a pobreza, e essa crise atingirá especialmente um grupo que está desprotegido: a classe média-baixa”, diz Revenga, do Brookings. “É preciso mudar o enfoque e ampliar o conceito de rede de proteção social. Talvez saiamos com uma visão mais ampla e mais heterodoxa, com programas de renda básica nos países que possam tê-los: custam caro, mas ajudam muito”.

Com menos músculo do que as economias avançadas para colocar em andamento planos de choque, a resposta dos emergentes se parece mais à oferecida pela Europa na Grande Crise de 2008 que a feita hoje pelo Velho Continente: mais monetária do que fiscal; menos contundente do que as circunstâncias exigem. Os cortes no preço de dinheiro se generalizaram, do Brasil à África do Sul, das Filipinas à Rússia; também as injeções de liquidez por parte dos bancos centrais. Mas tudo é muito incerto com um horizonte a curto e médio prazo tão carregado de nuvens. “As condições creditícias continuam se deteriorando”, avisou nessa semana a Standard & Poor’s. E as avaliadoras, como mostra a história mais recente, são especialistas em ratificar após a oportunidade passar o que os mercados descontaram antes. É a rubrica de que, por fim, as coisas ficaram feias.

Maior custo de financiamento

A pressão dos mercados é o elemento determinante na equação. O rumor sobre potenciais calotes se estendeu muito mais além dos suspeitos habituais, e países que até agora tinham sua dívida externa sob controle podem começar a sofrer para devolver o emprestado: o aumento do custo puro de financiamento ―sair hoje ao mercado financeiro com o rótulo de emergente é muito mais difícil (caro) do que há um par de meses― se soma à forte desvalorização de muitas moedas do bloco, o que por sua vez aumenta o custo de devolução da ―ainda grande― dívida referenciada em moedas fortes (dólar, euro, iene).

Uma centena de nações já bateu na porta do FMI à procura de algum tipo de ajuda financeira, de facilidades de liquidez (Colômbia) a linhas de crédito para fazer frente à emergência sanitária (Irã). “Os emergentes estão entre a cruz e a espada. Precisarão queimar reservas e acho que pensar que não ocorrerão defaults [calotes] é muito otimista”, diz Mendoza, da Universidade da Pennsylvania. Crítico com as medidas tomadas até agora pelo Fundo Monetário e o Banco Mundial ―“foram escassas”―, acha que no pior cenário ―já não tão distante― “será preciso um plano liderado pelo G7 e a China, como credores, que postergue os pagamentos e dê um certo alívio” ao bloco.

A luz no final do túnel sanitário hoje se vê mais próxima. O ritmo de contágios se deteve em vários países da Europa e Ásia; assim como as internações em UTIs e mortes. O debate já gira em torno dos calendários para levantar pouco a pouco ―e muito a muito, como na Alemanha― as medidas de confinamento e não sobre o colapso hospitalar e a falta de preparação para uma pandemia. “Mas o mundo que veremos quando sairmos totalmente será bem diferente”, finaliza Kaushik Basu, presidente da International Economic Association. “Existirão vencedores e perdedores, e os países que não souberem lidar com a situação perderão espaço nos mercados internacionais”. Um aviso aos navegantes que ecoa especialmente no bloco emergente, onde a pandemia tem algumas semanas de defasagem. As políticas ―sanitárias, econômicas e sociais― que se aplicarem hoje determinará o amanhã.

Os bancos centrais dão um passo à frente com compras de dívida

A Grande Recessão de 208, que obrigou as economias avançadas a utilizar imaginação monetária para sair do buraco, passou quase desapercebida nos emergentes. A China e a Índia continuaram com passo firme, e a Rússia, América Latina e África se apoiaram no aumento de matérias-primas cotizadas em níveis de preços razoavelmente altos. Alguns países de renda média fizeram uso das políticas fiscais moderadamente contracíclicas para retomar o crescimento, mas a necessidade de espremer os bancos centrais com um arsenal anticrise foi em linhas gerais mínima.

Hoje, uma década depois, as coisas são bem diferentes. O espaço fiscal é muito menor, após vários anos de preços cambaleantes dos produtos básicos e baixo crescimento, onde a margem para baixar os juros tem um limite claro: o que é marcado pela desvalorização, já bem considerável, das moedas. De modo que vários órgãos emissores emergentes empreenderam um caminho desconhecido: o dos programas de expansão quantitativa (mais conhecidos como QE, 'quantitative easing', no jargão econômico), que consistem na compra de dívida pública para diminuir o custo de financiamento dos Governos e tentar liberar dinheiro à economia real e aos investimentos produtivos. Sem inflação à vista – justamente o contrário: tudo leva a crer que o vírus pressionará, provavelmente, os preços para baixo –, o caminho parece mais livre do que nunca à introdução de uma dose de criatividade – e de imitação – em uma política monetária até agora apertada. Longe de ser incursões pontuais, desde o começo de fevereiro 13 bancos centrais de países emergentes já começaram a colocar em andamento esses tipos de planos (Colômbia, Chile, Polônia, Turquia, África do Sul e Filipinas, de acordo com a contagem do Bank of America) e já os têm preparados também Tailândia e Coreia do Sul. E alguns, como a Indonésia, deram um passo à frente, empreendendo o caminho da monetização direta de dívida: o banco central compra diretamente das mãos do Governo, sem passar pelo mercado secundário. Um movimento, nesse caso, que ligou os alarmes nos analistas mais ortodoxos, que temem uma monetização do déficit que retroage aos anos mais difíceis de algumas economias latinoamericanas.

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