Coronavírus, o adversário invisível chega às quadras do Ibirapuera
O EL PAÍS acompanhou o primeiro dia do novo hospital de campanha de São Paulo, no Complexo Esportivo da zona sul, e revela as expectativas dos profissionais que iniciam a batalha contra a covid-19
A primeira vez que Pietro Sidoti pisou no Complexo Esportivo do Ibirapuera ele tinha por volta de 13 anos. Saía da zona sul de São Paulo para treinar no centro esportivo de vôlei do ginásio. Era o começo dos anos 90 e a quadra valia para os mais jovens tanto ou mais que o campo de futebol: foi ali que a seleção de ouro do vôlei masculino —com Maurício, Marcelo Negrão, Tande e Giovani― conquistou a Liga Mundial com uma vitória espetacular de 3 a 0 sobre a Rússia. Mônica Pinheiro também frequentava o local para assistir os shows de seus artistas favoritos: lá tocaram de Metallica e Cyndi Lauper a Elton John. Já Karina Marques e Evelin Amaral Ramos só conheciam o complexo de longe, como parte da paisagem do Parque Ibirapuera, uma área verde fincada numa das regiões mais ricas da cidade. “Saía de Osasco para ir até lá andar de bicicleta com meus tios da capital”, conta Evelin. O Complexo Esportivo do Ibirapuera é um sessentão acostumado a receber celebridades. Mas hoje, com uma parte transformada em hospital de campanha para atender vítimas da covid-19, se vê ocupado por outros times: o de profissionais com a missão de enfrentar a mais temida crise de saúde em cem anos.
“Você conhece time que entra em quadra achando que vai perder?”, brinca Pietro, que abandonou o sonho de ser jogador de vôlei da seleção e se tornou advogado. Hoje, ele representa a direção do Serviço Social da Construção Civil do Estado de São Paulo (Seconci-SP), organização social de saúde (OSS) responsável pela instalação e administração da unidade de saúde no Ibirapuera. “Quando poderia imaginar que iríamos ter um hospital ao lado das quadras onde treinávamos”, afirmou na sexta-feira, 1 de maio, enquanto supervisionava os últimos ajustes antes de receber os primeiros pacientes.
O hospital de campanha do Ibirapuera é uma iniciativa do Governo do Estado de São Paulo, mas sua gestão é privada, assim como a dos outros dois hospitais de campanha erguidos na capital. O do Pacaembu, também do Governo estadual, é administrado pelo Hospital Albert Einstein; já o do Anhembi, que pertence ao município, está a cargo de duas entidades, o Instituto de Atenção Básica e Avançada à Saúde (Iabas) e a Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM). Um quarto hospital de campanha, que também será gerido pelo Seconci, será erguido na comunidade de Heliópolis pelo Governo do Estado, onde atualmente funciona o Ambulatório Médico de Especialidades Barradas.
Com a área de esportes e lazer fechadas há mais de um mês para por conta da pandemia do novo coronavírus, o Complexo do Ibirapuera abrigará cerca de 800 profissionais, incluindo 213 médicos, 444 profissionais de enfermagem, 33 fisioterapeutas, 14 farmacêuticos, dez assistentes sociais, oito nutricionistas, cinco psicólogos, dois fonoaudiólogos, 52 profissionais de apoio técnico e 19 recepcionistas. Dentre eles, a médica Mônica, responsável técnica pelo hospital, que costumava frequentava o local para ver shows; a enfermeira Evelin, que supervisiona a parte de higienização e lavanderia e também Karina, que coordena o administrativo e recepção, ambas turistas ocasionais do parque vizinho ao complexo.
Juntas, essas profissionais se preparavam, na última sexta-feira, para o maior desafios de suas carreiras. Mas o dia ainda tinha ritmo de espera. Enquanto alguns se ocupavam de funções mais burocráticas, outros apenas aguardavam a chegada dos pacientes que seriam transferidos de outras unidades de atendimento. Mas a expectativa para os próximos dias era grande. O vírus Sars-CoV-2, causador da covid-19, é altamente contagioso. Ainda não tem cura conhecida. E, apesar de sua letalidade não ser tão alta quanto a de outros que causaram epidemias recentes, tem uma enorme capacidade de dispersão, o que acaba por sufocar até mesmo os sistemas de saúde mais organizados. Não à toa, transformou o Estado de São Paulo no epicentro de contágio no Brasil, com 31.772 casos, 2.627 vítimas fatais e 9.100 pacientes internados até este domingo. Um cenário de números grandiosos, a exemplo do que é visto em Madri, Lombardia, Nova York, Wuhan…
O primeiro dia
A fotógrafa do EL PAÍS, Daia Oliver, acompanhou o primeiro dia de operação do local, instalado sobre o campo de futebol, cercado pelas pistas de atletismo, onde ela mesma treinava na adolescência. “A vida dá muitas voltas”, conta a profissional, que clicou o vai e vem de trabalhadores até a chegada do primeiro paciente. Uma corrida num campeonato cujas regras não são claras.
A inauguração, em imagens
O hospital de campanha foi anunciado em 7 de abril. Saiu do papel, todo equipado, 24 dias depois, com 7.500 metros quadrados, 240 leitos de enfermaria e 28 de estabilização (um passo antes da UTI), além de consultórios médicos e aparelho de tomografia. A unidade recebe apenas pacientes encaminhados já para a internação por serviços de pronto atendimento. Custou cerca de 12 milhões de reais e terá um custeio mensal de 10 milhões de reais. Oficialmente, foi inaugurado na quarta-feira passada pelo Governador João Doria, sem pompa, como pede o respeito ao adversário invisível em tempos isolamento.
Na sexta-feira, quando recebeu os primeiros pacientes, contou com a visita do secretário estadual da Saúde, José Henrique Germann Ferreira, que atendeu a nós, jornalistas, com nossos questionamentos sobre previsões, estatísticas, novas medidas, efeitos econômicos, potencial lockdown… Questões que parecem distantes das preocupações mais imediatas dos profissionais do novo hospital. “Neste momento, o nosso foco não é só trabalhar a recuperação respiratória, é fazer com que os pacientes não sejam traumatizados. Temos psicólogos para os pacientes e também para a equipe”, contou Mônica, quando conseguiu um tempo para falar com a reportagem ―às 20h ―, ela havia chegado às 7h e ainda não tinha previsão de quando sairia.
Mas o dia de inauguração não a impediu de conversar com os pacientes que chegaram. “Eu perguntei a todos se estavam sendo bem tratados. Um deles me disse: ‘Parece que estou num spa’”, afirmou, bem humorada. O paciente talvez tenha exagerado um pouco, afinal, um hospital está bem longe de parecer um espaço de relaxamento, mas a liberação do celular e a internet gratuita podem ter ajudado nesta percepção.
É verdade que a organização do local passa uma sensação de tranquilidade e segurança, como observou a fotógrafa do EL PAÍS. “Tudo muito arrumado e limpo, com pouquíssimas coisas a serem terminadas. A equipe toda a postos esperando os primeiros pacientes. O ar-condicionado estava ligado havia algum tempo para deixar a tenda na temperatura adequada”, contou Daia sobre a estrutura de climatização, que realiza 12 trocas de ar por hora para descontaminar o local. Em alguns ambientes, como nos consultórios, houve inclusive a preocupação em decorar com plantas, o que deu um tom mais leve ao espaço. “Procuramos fazer a humanização dos ambientes”, explicou Mônica.
Mas é impossível deixar de notar um contêiner refrigerado do lado de trás da tenda hospitalar, posicionado para servir de necrotério provisório para corpos das possíveis vítimas da covid-19. Neste momento, no entanto, a equipe que começa os trabalhos prefere não pensar na possibilidade de mortes. “Nossa meta é salvar vidas. A única estatística que nos interessa é a de recuperados”, afirma o diretor do Seconci-SP, Pietro.
A primeira ambulância
A primeira ambulância chegou ao hospital de campanha por volta do meio dia da sexta-feira. No sábado, cerca de 30 pessoas já ocupavam os leitos. Mônica afirma que, pela experiência de outros hospitais, a média de permanência pode variar de sete a dez dias. Mas depende de cada caso. “Recebemos um paciente estável e já em processo de alta. Outro que, além da infecção [pelo novo coronavírus] tem outras coisas para tratar, ficará mais tempo”, afirmou. Quanto à crise das UTIs, ativo cada vez mais raro na capital paulista, ela explica que o hospital tem uma estrutura de contingência para atender um paciente que, por ventura, precise de terapia intensiva, até ele ser transferido.
Pouco mais de uma hora depois que a primeira ambulância entrou no hospital, um grupo de manifestantes de direita se reuniu em frente a Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), ao lado do Complexo Esportivo. Com bandeiras, roupas verde amarelas e cartazes, há cerca de um mês o grupo vem fazendo carreatas por São Paulo, protestando contra a decisão do governador João Doria de fechar comércios e decretar uma quarentena no Estado. “Aqui não tem partido envolvido, cada um pede uma coisa: uns querem que o Exército assuma, outros são contra o Governo de São Paulo, já eu quero que este Governo [Bolsonaro] continue e que se expanda nas eleições regionais. Não temos relação com o hospital”, afirmou o empresário Marcos Rogério Moreira, de São Caetano do Sul, que atua no setor de motos e competições. Quanto a quarentena da cidade, ele afirma que todos os manifestantes usam máscaras. “Aqui aperto de mão é só online”.
“Eu quero participar deste momento”
Se a pandemia não assusta os manifestantes, Karina, supervisora administrativa do hospital de campanha, admite que, no começo, teve medo de assumir o desafio de treinar e desenvolver todo o fluxo de recepção de pacientes. Ela trabalha no Hospital Regional de Cotia, também gerido pelo Seconci há seis anos, e mora em Embu das Artes. “Meu maior medo é minha família”, afirma. Separada, ela mora com a mãe, que a ajuda na criação de seus dois filhos. No entanto, quando foi aprendendo sobre o vírus, o temor foi diminuindo. “Percebi, inclusive, que, durante as contratações, as pessoas não falavam de medo. A frase mais comum que ouvi foi: ‘Eu quero participar deste momento, preciso fazer algo’”, conta.
Ela afirma que muitas pessoas que não eram da área da saúde, acabaram desistindo. “Mas quando veio a demanda, eu mesma fiz campanha para participar. Isto é histórico, a moral da equipe está muito alta. Todos sabem que o trabalho é importante. E construir um hospital de campanha é algo novo para todo mundo”, diz, empolgada. A parte mais difícil, admite, é se adaptar à rotina de equipamentos de segurança, algo que não era comum para a pessoal do administrativo: “Temos o ônus de higienizar sempre as mãos, colocar óculos, máscara, gorro, estarmos sempre paramentados”.
Quebrando mitos na hierarquia hospitalar
Um hospital tradicional não é a mesma coisa que um hospital de campanha. Por isso, Evelin, a enfermeira especializada em controle de infecção hospitalar, e que responde por toda a parte de capacitação e supervisão da área de higienização e rouparia, vê oportunidades na iniciativa. Num hospital grande, a função de profissionais desta área acaba ficando invisível. Sempre foram essenciais e, agora, são mais que isso. E todos sabem. Mesmo os mais leigos. “Meu trabalho aqui é lutar contra o mito do ‘não estudou'”, afirma, sobre um preconceito comum no Brasil, que desvaloriza profissionais essenciais, especialmente em áreas consideradas básicas, como a limpeza. No hospital de campanha de uma pandemia, nenhum diploma substitui uma área devidamente higienizada. “Tenho que mostrar que todos são importantes”, afirma.
A profissional, que mora em Osasco e é apaixonada por infectologia, afirma que, no momento que surgiram as primeiras notícias sobre a doença, ela soube que queria ajudar: “E agora, o que vamos fazer?”, ela se perguntava. Então surgiu a oportunidade de atuar no Complexo do Ibirapuera. Mas montar um hospital do zero era algo que só havia visto na aula do MBA em administração de saúde. “É um desafio diferente. No hospital, você já sabe como tudo caminha. No de campanha, não temos paredes, são lonas…Tudo tem que ser muito inovador e eu sabia que queria participar desta história”, diz.
Se tem medo? “Não tenho medo de pegar a doença, mas tenho medo de ser portadora, especialmente se for assintomática”, diz. Apesar de morar sozinha, tanto a mãe quanto o pai de Evelin fazem tratamento contra o câncer e dependem de seu apoio. “Minha preocupação neste momento são eles.” Mas ela sabe que o perigo de se contaminar existe. “Temos que jogar limpo com a equipe. Embora tenhamos todas as medidas de proteção, quando uma pessoa sai de casa e pega o transporte público, já é um risco”, diz Evelin.
Mas nesse primeiro dia, os perigos ainda parecem distantes da grande maioria dos leitos vazios. Uma realidade que deve mudar em breve, já que a epidemia não dá sinais de arrefecer em São Paulo. O dia um terminou, e, por ora, médicos, enfermeiros, profissionais de limpeza, psicólogos, motoristas de ambulância, e tantos outros que fazem parte do hospital de campanha parecem prontos para enfrentar a covid-19. Em uma semana, o EL PAÍS voltará ao ginásio para perguntar como esse enfrentamento se desenvolveu nos dias seguintes.
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