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Explosão do garimpo ilegal na Amazônia despeja 100 toneladas de mercúrio na região

Metal encontrado em 2019 e 2020 na região de terras indígenas contamina água, solo e ar. Estudo achou altas concentrações em quatro a cada 10 crianças menores de cinco anos nas regiões Yanomami

Homem pesca no rio Tapajós, no Pará. Terra indígena da etnia Munduruku é a mais explorada pelo garimpo, segundo o Observatório do Mercúrio.
Homem pesca no rio Tapajós, no Pará. Terra indígena da etnia Munduruku é a mais explorada pelo garimpo, segundo o Observatório do Mercúrio.Andre Penner (AP)
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O incentivo ao garimpo ilegal promovido pelo Governo brasileiro nos últimos dois anos provocou uma enxurrada de mercúrio nas águas amazônicas. Um volume estimado em 100 toneladas do metal neurotóxico foi utilizado em 2019 e 2020 para extrair ouro ilegalmente da região, de acordo com estimativas feitas com base em um levantamento oficial. Esse ouro foi exportado pelo Brasil para países como Canadá, Reino Unido e Suíça.

Em levantamento produzido em conjunto com a Universidade Federal de Minas Gerais, o Ministério Público Federal (MPF) detectou uma quantidade de 49 toneladas de ouro lavado (extraído ilegalmente, mas documentado para parecer legalizado) com agentes comerciais que atuam na Amazônia obtido em colaboração com facções criminosas que invadem áreas protegidas em busca do metal precioso. A falsificação é feita com base em declarações fraudulentas de origem.

Dessas 49 toneladas, 17 foram lavadas no Pará —especialmente na região do médio Tapajós, área onde vivem os indígenas da etnia Munduruku. O prejuízo socioambiental da região, segundo o MPF, chegou a 9,8 bilhões de reais. E o cálculo é de que a extração desse ouro foi responsável pelo desmatamento de 21.000 hectares de floresta —derrubada para a procura do metal.

“Pela sua omissão na implementação de controles de certificação de origem e de rastreabilidade na cadeia de produção e circulação de ouro de garimpo, o Estado Brasileiro promove e é ele próprio responsável direto pelas ameaças e violências praticadas contra os povos indígenas, em especial o povo Munduruku”, ressalta o MPF, que recomendou uma série de medidas aos órgãos legais de controle, como a adoção pela Agência Nacional e Mineração de um sistema de certificação e rastreabilidade do ouro brasileiro.

O mercúrio é um metal neurotóxico presente na natureza, mas o desmatamento, as queimadas e, principalmente, o garimpo liberam e aumentam sua concentração na atmosfera. Seus danos costumam ser graves e permanentes. Ele pode causar alterações diretas no sistema nervoso central, gerando problemas de ordem cognitiva e motora, perda de visão, além de implicações renais, cardíacas e no sistema reprodutor.

Largamente usado no garimpo para separar o ouro de outros sedimentos não há controle oficial sobre a quantidade usada no Brasil, mas ambientalistas estimam que para cada grama de ouro extraído, 1,3 a 1,5 grama de mercúrio são usados. Existem no país ao menos 2.500 lavras ilegais, a maioria delas em terras indígenas. No vizinho Peru, que também compartilha a Amazônia, a quantidade usada do metal chega a 185 toneladas por ano, segundo dados fornecidos pelo WWF-Brasil.

Usado e descartado sem controle, o metal acaba por contaminar rios, peixes e quem se alimenta deles. Segundo dados do Inventário Nacional de Emissões e Liberações de Mercúrio, publicado em 2018 pelo Ministério da Tecnologia, Ciência, Inovações e Comunicações, 70% do mercúrio usado no garimpo é emitido para a atmosfera e 30% para solos, água e rejeitos. A concentração de mercúrio costuma ser maior nos peixes em rios mais próximos a regiões de garimpo, mas também pode ser encontrada em maior ou menor grau em locais mais distantes.

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“Existe muito chute em relação à quantidade de mercúrio. Não sabemos com exatidão, mas podemos dizer, com certeza, que é muito”, aponta a bióloga Sandra Hacon, especialista em saúde pública da Fiocruz. “Mesmo que um garimpo seja desativado hoje, por ação policial ou de fiscalização, o mercúrio usado ali vai continuar contaminando. Ele não tem cheio nem cor. Não tem como mitigar isso”, explica Hacon.

A partir desta semana, em parceria com a WWF-Brasil e o Centro de Innovación Científica Amazónica (CINCIA), a Fiocruz lança uma plataforma georreferenciada capaz de localizar lavras de garimpo, contaminação da fauna e presença do mercúrio em terras indígenas. O Observatório do Mercúrio também traz uma revisão sistemática da literatura científica sobre o tema de 1980 a 2021, com cerca de 200 artigos e pesquisas listadas.

Mesmo em regiões sem mineração, como na bacia do rio Negro, no Amazonas, há incidência acima do normal. Pelo Observatório do Mercúrio, é possível perceber que se trata de um fenômeno integrado: as extensas lavras ilegais do Peru, da Bolívia e do Equador afetam diretamente regiões sem garimpo no Brasil. “Quanto menor a nanopartícula de mercúrio, maior a capacidade de transporte. Seja pelos rios, seja pela atmosfera, seja pela chuva”, completa a bióloga.

Em muitas comunidades indígenas ou ribeirinhas de regiões amazônicas com garimpo, as concentrações em humanos já superam o limite estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) —de dois microgramas de mercúrio para cada grama de cabelo. A agência ambiental norte-americana, por sua vez, usa como parâmetro aceitável apenas um micrograma. A Fiocruz identificou comunidades indígenas Yanomami com medianas entre 3,2 e 15,5. “São concentrações alarmantes, diretamente ligadas à presença do garimpo”, explica Paulo Basta, pesquisador da Fiocruz e autor do estudo.

Segundo o especialista em conservação do WWF-Brasil Marcelo Oliveira há uma relação direta entre os níveis crescentes de mercúrio na região e o avanço do garimpo e das queimadas em terras indígenas. “Tirar da invisibilidade os danos causados pelo mercúrio é essencial para aumentar a pressão social sobre medidas legais que interrompam esse ciclo”, diz.

O problema, no entanto, não é exclusivo dos municípios do Norte do país. Segundo apontam os estudos reunidos na plataforma, a contaminação por mercúrio se espalha pela Amazônia Legal e atinge não só os rios amazônicos, mas também os rios Cuiabá e Paraguai, já na região norte do Pantanal.

Segundo Oliveira, o grande benefício da plataforma é combinar 13 níveis diferentes de informação que, sobrepostos, permitem visualizar com precisão o problema causado pelo metal. Há desde georreferenciamento de rios e terras indígenas passando por informações sobre lavras registradas e ilegais em áreas protegidas, até as ações ajuizadas pelo Ministério Público Federal contra garimpeiros irregulares.

É possível visualizar, nos mapas disponíveis pela plataforma, extensas áreas de exploração mineral onde a demarcação da terra indígena é ignorada pelos garimpeiros. A terra indígena mais afetada é da etnia Munduruku, no médio Tapajós (PA), onde o Observatório do Mercúrio identificou 600 registros de garimpo legalizado ou com pedido de autorização de lavra na Agência Nacional de Mineração.

Estão identificadas áreas contínuas de exploração em vários afluentes do Tapajós, como os rio das Tropas, Pacu, Kabitutu, Cadariri, Kaioruá e outras dezenas de igarapés. Ali, comunidades indígenas tentam preservar seus territórios da invasão e permanecer imunes à contaminação pelo mercúrio. Outra terra indígena bastante afetada pelo mercúrio é da etnia c, na fronteira do Amazonas com a Venezuela.

Perigo silencioso

A plataforma permite cruzar os dados geográficos do garimpo com estudos científicos que revelam o impacto do mercúrio nas populações e na fauna local, especialmente nos peixes usados como alimentação pelos indígenas e ribeirinhos. Os ícones de acesso aos artigos com a contaminação em humanos e animais são classificados por cores: quanto mais escuros, maior o nível de concentração de mercúrio nos organismos.

A exploração das TIs é exclusiva das populações originárias, mas os projetos de lei 191 e 490, em tramitação no Congresso, pretendem liberar a exploração de ouro em territórios demarcados, alterar os critérios de demarcação e permitir a passagem de estradas, entre outras medidas —a iniciativa é defendida publicamente pelo presidente Jair Bolsonaro, que frequentemente diz que manter os índios isolados em suas terras é tratá-los como animais em zoológicos. Diante do discurso permissivo do próprio Governo federal, a estratégia dos garimpeiros, segundo o especialista do WWF-Brasil, tem sido pedir permissão de lavra garimpeira (PLG) antes mesmo da aprovação da lei, como forma de pressionar pela mudança.

O usufruto das terras indígenas demarcadas é garantido pelo Estatuto do Índio a 66 territórios que abrigam cerca de 70.000 pessoas em toda a Amazônia. O PL 490 foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados no final de junho, numa votação marcada por agressões às manifestações contrárias ao projeto do lado de fora do Congresso. Com a liberação da CCJ, o PL já pode ser votado nem Plenário.

“A questão se agrava com o acúmulo desse metal ao longo dos anos por quem se alimenta frequentemente dos peixes com algum teor de contaminação, ainda que baixa. O organismo humano, pela frequência da ingestão, não tem tempo suficiente para eliminar o metal, como acontece com quem ingere peixe com algum teor de mercúrio apenas de vez em quando”, explica Paulo Basta. Outro item da pesquisa de Basta encontrou altas concentrações de mercúrio em quatro a cada 10 crianças menores de cinco anos nas regiões Yanomami. Segundo estudos, indígenas da etnia consomem, em média, cerca de 70 gramas de peixe por dia. O pescado é a principal proteína animal consumida por eles.

Ainda que seja difícil mensurar os danos causados pelo mercúrio no corpo humano, há evidências de seu potencial tóxico. “O mercúrio, ao ser absorvido, afeta diretamente o sistema nervoso central. E, nas crianças menores de cinco anos, isso é particularmente mais preocupante porque o cérebro ainda está em desenvolvimento”, explica Basta.

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