A teia bolsonarista nos porões da internet
Ministério Público do Tribunal de Contas da União pede ao Supremo compartilhamento do inquérito que levanta a engrenagem nas redes para financiar os atos antidemocráticos. Tentáculos passam pelos endereços da primeira-dama e assessores dos filhos do presidente Bolsonaro
A pandemia do novo coronavírus já havia fechado fronteiras de diferentes países e ganhava corpo no Brasil em maio do ano passado. O país contabilizava, à época, 100.000 casos e 7.000 mortes pela covid-19, e seguia numa progressão que já se mostrava descontrolada, sobretudo pelo descompasso das ações do Governo ao que até hoje é preconizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Na manhã do dia 3 daquele mês, um domingo ensolarado, o presidente Jair Bolsonaro devotou-se a apoiar manifestantes em frente ao Palácio do Planalto. Não usava máscara, tampouco seguia a orientação de autoridades médicas e científicas para evitar ―ou ajudar a formar― aglomeração. Diante de fiéis seguidores, disse que havia chegado ao seu limite, e que pedia a Deus para não ter problemas.
Cercado de seguranças, gravou um vídeo para a equipe responsável pelas suas redes sociais. Nele, minimizava os primeiros efeitos da pandemia, a qual, mais de um ano depois, colocaria o Brasil na lista dos países com um dos mais altos índices de mortalidade em decorrência da covid-19: “Sabemos o efeito do vírus, infelizmente muitos serão infectados e perderão suas vidas, mas é uma realidade.” O indisfarçável desdém em relação à doença, no entanto, tinha um outro propósito naquele dia.
O colérico convescote à porta da sede do Governo reunia uma trupe de homens e mulheres de camisas e faixas verde e amarela, alguns enrolados em bandeira do Brasil, não para exigir medidas sanitárias que pudessem conter o avanço da doença, mas aguerridos em campanha pela reedição do Ato Institucional 5 (AI-5) e por intervenção militar, processo inconstitucional dada a apologia contra a democracia.
Os principais alvos eram o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso Nacional, após medidas contrárias ao pensamento bolsonarista. “Queremos a independência verdadeira dos três Poderes, não apenas uma letra da Constituição. Não vamos mais admitir interferência”, disse Bolsonaro, em tom peremptório se comparado à preocupação com as vítimas do coronavírus desde àquela ocasião.
Dias antes, um dos ministros do STF, Alexandre de Moraes, havia barrado o nome de Alexandre Ramagem para a diretoria-geral da Polícia Federal, sob o argumento de que a nomeação representava um desvio de finalidade do Governo para interferir politicamente na PF. Ramagem é amigo dos filhos do presidente, e a tentativa de acomodá-lo no cargo levou à crise do Planalto com o ex-juiz Sergio Moro, que abandonou o barco quando percebeu que não tinha carta branca para, como ministro da Justiça, indicar sequer alguém para o maior posto da PF.
Considerados antidemocráticos, os atos realizados pelo país àquela altura eram apenas a face visível de um trabalho estrategicamente elaborado desde a campanha presidencial nos porões da internet, com ajuda de apoiadores da chamada linha de pensamento conservador que ganhou brado com a chegada de Bolsonaro ao poder. Para investigar as denúncias de mau uso das redes por parte do Governo a fim de insuflar uma faixa do eleitorado contra os Poderes constituídos, a polícia então instaurou em abril do ano passado um inquérito com a finalidade de investigar quem são os responsáveis pela atuação nas redes, quem financia e qual a relação de cada um deles com o comando do Governo federal. Revelou-se, a partir daí, uma ação coordenada entre os mais diferentes agentes, de parlamentares a empresários, passando por influenciadores digitais e donos de sites colocados sob suspeita pela PF.
Com a popularidade por vezes em xeque, o Governo era apontado como um incentivador de perfis dominados por robôs, que, com nomes e apelidos diferentes, repetiam à exaustão uma mesma crítica (muitas vezes com igual erro de português) ao STF ou a algum parlamentar na mira dos bolsonaristas. Com 1.023 páginas, o inquérito montado em oito meses de investigação revela a estreita relação de agentes públicos e apoiadores também com os filhos do presidente. Segundo o relatório, aliados ao clã Bolsonaro formavam o que foi batizado de gabinete do ódio, o que já se sabia há tempos, mas agora desvelado nas investigações com detalhes até então resguardados pela privacidade das redes sociais. Trecho do documento diz que o grupo incitava “parcela da população à subversão da ordem política ou social e à animosidade das Forças Armadas contra o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional”. Eduardo e Carlos Bolsonaro foram intimados na condição de testemunha para falar sobre os atos antidemocráticos. Assíduos nas redes sociais, eles fazem críticas costumeiras às medidas adotadas pelo STF e pelo Congresso contra o Governo do pai.
Nunca antes um inquérito da PF havia vasculhado tamanho volume de indícios que colocam o governante do país em situação tão desconfortável quando o assunto é a destituição do Judiciário ou do Legislativo.
As investigações se concentraram por um tempo numa figura de zerada expressão pública, mas com trânsito aparentemente livre entre Bolsonaro e seus familiares. Tido como um dos participantes do gabinete do ódio, Tercio Arnaud Tomaz é lotado como assessor no gabinete de vereador de Carlos Bolsonaro, no Rio, mas dava expediente no Palácio do Planalto numa sala contígua a do gabinete presidencial, no terceiro andar. Ao lado de outros assessores, Arnauld opera ou administra, segundo a polícia, perfis disseminadores de falsas informações. Há cerca de dois anos, ele foi chamado para “impulsionar” as redes bolsonaristas.
O foco das investigações em torno de Arnauld ganhou tinta quando a polícia descobriu ―e o STF decidiu divulgar ao liberar o sigilo do inquérito― que a atuação dele não se restringia aos corredores palacianos. Ex-recepcionista de hotel alçado à condição de mentor intelectual do grupo que produziria fake news, além de memes e piadas para atacar moralmente os adversários do presidente, Arnaud teve suas redes devassadas. Foram encontradas 31 pessoas vinculadas a contas operadas ou administradas por ele.
Mas foi ao quebrar o sigilo dos perfis que a polícia descobriu um elo ainda mais forte da atuação dos Bolsonaros no ambiente profundo do mundo virtual. Arnauld já havia acessado as contas Bolsonaronews e Tercio Arnaud Tomaz através da rede da primeira-dama Michelle Bolsonaro. E não foi em Brasília. “Trata-se, ao que tudo indica, do endereço residencial do presidente Jair Bolsonaro, no Rio de Janeiro”, segundo um dos analistas da PF que relatou no inquérito.
Todos os integrantes da família Bolsonaro negam irregularidades no uso de suas redes sociais. A polícia descobriu ainda que tais perfis administrados por Arnaud foram acessados 1.045 vezes também de computadores do Senado Federal, da Câmara, da Presidência da República e até do Comando da Brigada de Artilharia Antiaérea. “Ao que tudo indica, as contas objeto desta análise, removidas pelo Facebook de suas redes sociais, se enquadram na tipologia ‘Operações executadas por um governo para atingir seus próprios cidadãos. Isso pode ser particularmente preocupante quando combinam técnicas enganosas com o poder de um Estado’”, diz o relatório da PF.
Assessores ligados aos filhos de Bolsonaro atuam, de acordo com a investigação, em contas sem autenticação usadas para atacar opositores do Governo. Para tentar entender melhor como funciona a dinâmica dos ataques na internet, a PF foi abastecida com informações da Atlantic Council, empresa especializada em analisar comportamentos inautênticos nas redes sociais. Verificou-se, a partir daí, que três grupos ―chamados Rio, Brasília e São Bernardo do Campo― tinham atuação relevante entre os bolsonaristas.
Uma das informações obtidas através da Atlantic é que Fernando Nascimento Pessoa operava seis contas ocultas em redes sociais. Pessoa é assessor de Flávio Bolsonaro desde 2014 e investigado no caso da rachadinha à época em que trabalhava para Flávio na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj).
O relatório destaca nomes como a ativista Sara Giromini (conhecida como Sara Winter) e o jornalista Oswaldo Eustáquio. Mais que apoiadores, ambos tinham cargo no Governo e atuavam a favor do presidente Bolsonaro enquanto recebiam salários no ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, comandado pela religiosa Damares Alves. Sara e Eustáquio chegaram a ser presos durante a investigação, e desde então diminuíram, ao menos publicamente, suas presenças nas redes.
Foram oito meses de investigação, até dezembro, quando a Polícia Federal encaminhou o inquérito para o STF. Alexandre de Moraes, então, enviou o documento para a Procuradoria Geral da República, que, cinco meses depois, em maio deste ano, pediu o arquivamento do processo. O ministro do STF solicitou mais informações à Procuradoria, antes de decidir se daria ou não por encerrado o processo que investiga aliados do Governo. Antes, porém, Moraes liberou o sigilo de toda a investigação, resguardando apenas os documentos obtidos ao longo da apuração.
Na última quinta, a PGR reiterou ao STF pedido de arquivamento dos processos contra deputados com trânsito livre na Presidência. O vice-procurador Humberto Jacques de Medeiros afirmou: “Não se pode prolongar investigação sabidamente infrutífera”. O procurador-geral, Augusto Aras, aliado de Bolsonaro, tenta uma indicação para o STF.
A julgar pela transcrição das mensagens, fotos e cópias de documentos anexados ao inquérito, as investigações devem dar fruto. O que já era percebido nas redes sociais foi revelado com detalhes pelas investigações. Os dois primeiros anos do Governo Bolsonaro foram marcados por forte atuação de agentes da Secretaria Epecial de Comunicação (Secom) junto às chamadas redes aliadas para propagar o que era de interesse do Governo, consequentemente, contra as ações do Congresso e principalmente do STF. Foram ataques direcionados a Moraes que levaram o deputado bolsonarista Daniel Silveira à prisão, de onde saiu obrigado a usar tornozeleira eletrônica.
O inquérito mostra que o ex-secretário de Comunicação da Presidência, Fabio Wajngarten, abraçou a causa bolsonarista e estabeleceu, em sua gestão, uma forte relação com os influenciadores digitais da direita. Segundo relatório da PF, em abril de 2019 Wajngarten assumiu o comando da Secom e tratou de se aproximar do blogueiro Allan dos Santos, dono do site Terça Livre e amigo dos filhos do presidente.
Na ocasião, mostra o documento, Wajngarten se apresentou para Allan dizendo que poderia aproximá-lo de veículos tradicionais de imprensa e que, naquela semana, já havia promovido encontros de parlamentares com a cúpula do SBT, da Band e se encontraria com “bispos da Record”. Wajngarten nega que tenha havido interesse político na aproximação. “Minha gestão sempre foi técnica e profissional. Cabe à Secom atender a todos os veículos de maneira equânime”, afirmou.
O foco da operação policial nas ações que vinham sendo tomadas por pessoas próximos ao presidente terminou por um revés no comando das investigações. A delegada Denisse Ribeiro, responsável pelo caso, foi afastada do posto duas semanas depois de pedir ao STF autorização para realizar busca e apreensão nos gabinetes da Secom e da Presidência.
O conteúdo conservador dos blogs e páginas em rede social não rendem apenas seguidores com o mesmo viés ideológico. Desde a campanha de Bolsonaro à Presidência, pelo menos 12 perfis já receberam 4 milhões de reais via monetização de suas redes de apoio ao Governo. As páginas ganham reforço financeiro também de doadores espontâneos. O relatório da PF identificou que apenas o site Terça Livre, de propriedade de Allan dos Santos, receberia 100.000 reais por mês via plataformas de crowdfunding. “Durante busca e apreensão executava na residência de Allan dos Santos foi encontrada uma planilha de doadores do canal com mais de 1.700 linhas”, diz o documento da PF.
Nesse material consta, por exemplo, a doação de 70.000 reais por parte de uma servidora do BNDES, além de outros 40.000 reais por parte de um funcionário da secretaria da Fazenda, no Rio. O engajamento de pessoas simpáticas ao ambiente conservador tem suscitado desconfiança entre os investigadores. Allan dos Santos nega irregularidades ou responsabilidade na divulgação de notícias falsas. “Resta saber se essas doações são por pura simpatia à causa ou se tem gente tendo que rachar salário para abastecer um ambiente perverso à democracia”, diz um delegado da PF de São Paulo que ajudou nas investigações ao longo do ano passado.
Diz o documento: “Segundo os dados discutidos por pessoas ligadas à gestão financeira do Terça Livre, entre 13 de abril e 2020 e 13 de maio de 2020, foram realizadas 1.581 transações, das quais 659 sem reconhecimento de identificação de CPF.” À letra da lei, transações financeiras que ocultam a identificação dos negociadores revelam, no mínimo, uma dinâmica inapropriada. No rol de aliados também ouvido pela Polícia Federal, o empresário Otavio Fakhoury aparecia até então não só como um entusiasta do Governo bolsonarista, mas um dos grandes críticos ao STF e ao Congresso, fórmula capaz de transformar em aliado qualquer amigo de primeira hora da família Bolsonaro.
Uma análise feita no celular de Fakhoury mostra sua disposição em atacar o STF quando o assunto desagrada o Governo, como aconteceu quando o ministro Luís Roberto Barroso o criticou o uso de hidroxicloroquina como medicamento para prevenir a covid-19, num tratamento precoce sem qualquer comprovação científica, mas até hoje usado como uma bandeira bolsonarista.
Numa conversa em maio de 2020, semanas depois daquele domingo ensolarado em que Bolsonaro apoiou o ato contra o STF, Fakhoury endossou as críticas da deputada Bia Kicis (PS) contra o ministro Barroso. Defensora fervorosa da atual Administração, o que lhe rendeu a presidência da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) na Câmara, Kicis reclamou com o empresário que Barroso estava tentando barrar o uso do remédio como tratamento precoce a covid-19. “Canalhas. Olha, vai ser muito difícil terminar esse governo sem entrar de cabeça numa guerra institucional contra eles, porque eles é que invadem o Executivo”, respondeu Fakhoury.
Dois meses antes, o empresário havia procurado Eduardo Bolsonaro para que o deputado tentasse lhe ajudar a conseguir um dial de FM para migrar a rádio que ele administra na internet. Numa das mensagens interceptadas pela polícia, o empresário dispara: “Precisamos da FM, nossa arma para a guerra política.” O empresário declarou que a expressão “guerra política” não ultrapassa o limite do debate de ideias.
Eduardo Bolsonaro, deputado federal mais votado nas eleições para a Câmara em 2018, decidiu atender prontamente ao pedido do empresário e buscou apoio do bispo RR Soares. Dia depois do encontro com o religioso, disse ao empresário que pelo menos três rádios estariam à venda, e que ele (Fakhoury) deveria tratar com os negociadores. Procurada, a assessoria de imprensa do deputado não respondeu sobre as conversas com o empresário.
Sem precedentes no Brasil, a investigação pela Polícia Federal de atos antidemocráticos revelou uma relação dissoluta do Governo com sua base fisiológica, dentro e fora do poder. Ao que tudo indica, a dinâmica adotada pelo clã Bolsonaro para blindar o Planalto já não é uma dúvida para as autoridades federais, resta saber se, quando, quanto e quem pode ter recebido recursos para jogar nas trincheiras pró-bolsonaristas.
Nesse sentido, o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União decidiu pedir, na última quinta-feira, ao STF que compartilhe dados não só a respeito da organização, mas do financiamento desses atos, virtuais ou não. A ideia é entender se houve dinheiro público nesse custeio. “Chegar ao financiador nos permitirá descobrir quem está por trás da tentativa de perpetuar um governo que faz questão de acabar com instituições democráticas”, diz um senador integrante da CPI da Pandemia, que, assim como o inquérito dos atos antidemocráticos, também investiga toda a sorte de informações falsas responsáveis por prejudicar a luta contra a covid-19 no país.
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