A ligação do clã Bolsonaro com paramilitares e milicianos se estreitou com a eleição de Flávio
Leia um trecho do novo livro do jornalista, escritor e pesquisador Bruno Paes Manso, ‘A República das milícias’, publicado pela editora Todavia
A ligação do clã Bolsonaro com a rede de paramilitares e milicianos que se formava na zona oeste se estreitou em 2002 com a eleição de Flávio Bolsonaro para a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. O deputado de apenas 22 anos, neófito no Parlamento, pretendia se vender como o representante político e ideológico dos “guerreiros fardados” que lutavam por espaço e poder nos territórios do Rio. Ao longo dos anos, coube a Fabrício Queiroz o papel de principal articulador dessa rede de apoio no mandato do deputado primogênito. Queiroz seria fundamental para ajudar a fortalecer a base de votos do clã Bolsonaro nos batalhões policiais, para onde levou Flávio, em sua primeira campanha, para pedir votos.
Queiroz era amigo de Jair Bolsonaro desde os tempos do Exército. Eles se conheceram em 1984, no oitavo grupo de Artilharia de Campanha Paraquedista, na Vila Militar no Rio. Flávio, então, tinha três anos e chamava Queiroz de tio. Na mesma artilharia, em 1987, Queiroz conheceu o futuro vice-presidente Hamilton Mourão, trabalhando como motorista do jipe do oficial. Na época, Bolsonaro sugeriu ao soldado que prestasse concurso para a polícia. O ingresso de Queiroz na corporação ocorreu naquele mesmo 1987, e a relação de lealdade e confiança entre os dois se manteria desde então.
Quando Flávio se elegeu deputado estadual, Jair Bolsonaro, o chefe do clã, estava em uma encruzilhada. Na época, final de 2002, Jair era uma figura com perspectivas eleitorais duvidosas. Folclórico no Congresso Nacional, com apelo restrito à parcela ultraconservadora do eleitorado, parecia destinado a perder força, a exemplo de diversos parlamentares populistas, defensores de uma polícia truculenta. Faltava a ele jogo de cintura para se aproximar dos partidos e dos colegas. Ostentava ainda um temperamento paranoico, o que parecia um empecilho aos acordos que definiam os poderes na Nova República. Na eleição de 2002, Jair obteve menos votos do que em suas duas eleições anteriores, apesar do sobrenome ainda ser popular. O futuro presidente do Brasil parecia satisfeito em seguir no Parlamento, diante da situação política adversa. Mas precisaria suar. A direita, sem espaço no período da redemocratização, também estava fragilizada naquele ano. Depois de três derrotas consecutivas, o candidato Luiz Inácio Lula da Silva finalmente venceu as eleições e iniciou seu primeiro mandato como presidente.
A eleição do filho mais velho de Jair Bolsonaro, o zero um, abriu espaço para a família no debate estadual da segurança pública. Flávio era o segundo rebento a ganhar uma eleição se valendo do nome da família. Dois anos antes, Carlos Bolsonaro, o zero dois, tinha sido o mais jovem vereador eleito da história do Brasil, com dezessete anos. Segurança pública, entretanto, não era um tema para debater no âmbito municipal. Na Assembleia Legislativa, Flávio poderia brilhar defendendo a bandeira populista do pai da guerra contra o crime. Com isso também poderia se destacar entre os mandachuvas da política fluminense, como os deputados Paulo Melo, Jorge Picciani e Domingos Brazão, pouco conhecidos fora do Rio, mas capazes de grande articulação no submundo político. Naquele ano, o futuro governador Sérgio Cabral Filho deixaria a Assembleia depois de três mandatos consecutivos, para concorrer ao Senado, de onde sairia para assumir o Governo do Rio em 2007.
Flávio se movimentava com tranquilidade na zona de conforto da família Bolsonaro, entremeando sua pauta antidireitos humanos com projetos de lei em defesa da polícia e com homenagens a seus integrantes. Por sugestão do pai, Flávio entregou inúmeras medalhas a policiais, mesmo àqueles flagrados em ações suspeitas. Durante seus quatro mandatos na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), Flávio Bolsonaro aprovou 495 moções e concedeu 32 medalhas a policiais militares, policiais civis, bombeiros, guardas municipais e membros do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. As homenagens, que naqueles anos não passavam de agrado à sua base eleitoral, acabaram deixando um rastro das afinidades da família Bolsonaro com os milicianos mais perigosos do Rio. A insistência em condecorar os maiores vilões da corporação deixou cristalizada a ideologia de guerra que Jair Bolsonaro sempre sustentou.
As primeiras homenagens ocorreram ainda no primeiro ano do mandato de Flávio Bolsonaro, no dia 27 de outubro de 2003. O sargento Fabrício Queiroz estava entre os laureados e recebeu uma moção de louvor e congratulações concedida pelo Parlamento. A estrela principal, contudo, foi Adriano Magalhães da Nóbrega, o tenente que carregava na bagagem a marca da caveira do Bope e a parceria com Queiroz nas vielas da Cidade de Deus. Na homenagem, havia ainda sete integrantes do Grupo de Ações Táticas do 16º Batalhão de Olaria, onde Adriano passara a trabalhar poucos meses antes. [Posteriormente Adriano foi acusado de chefiar o grupo criminoso conhecido como Escritório do Crime, que teria envolvimento com a morte de Marielle Franco. Ele foi morto pela polícia baiana em fevereiro de 2020].
O texto da homenagem era o mesmo para todos: “Com vários anos de atividade este policial militar desenvolve sua função com dedicação, brilhantismo e galhardia. Presta serviços à Sociedade desempenhando com absoluta presteza e excepcional comportamento nas suas atividades. No decorrer de sua carreira, atuou direta e indiretamente em ações promotoras de segurança e tranquilidade para a Sociedade, recebendo vários elogios curriculares consignados em seus assentamentos funcionais. Imbuído de espírito comunitário, o que sempre pautou sua vida profissional, atua no cumprimento do seu dever de policial militar no atendimento ao cidadão”. O fato de alguns homenageados serem suspeitos de extorsão não preocupava. Afinal, a prática era tolerada pela corporação. Os verdadeiros inimigos, no entender desse núcleo, eram os bandidos e os defensores de direitos humanos e dos controles estabelecidos pela legislação, que não entendiam os riscos envolvidos na guerra contra o crime.
Algumas homenagens pareciam concebidas apenas para provocar polêmica. Eram oportunidades para um deputado sem brilho se afirmar como herdeiro das ideias folclóricas do pai. Em março de 2004, o homenageado foi o capitão Ronald Paulo Alves Pereira, que atuava no 22º Batalhão, por seus “importantes serviços prestados ao estado do Rio de Janeiro quando da operação policial realizada no Conjunto Esperança no dia 22 de janeiro de 2004 às 0h30 que resultou em confronto armado com marginais da Lei, onde três destes vieram a falecer, sendo um deles o meliante Macumba, líder do tráfico no Conjunto Esperança, Complexo da Maré, logrado êxito em apreender dois fuzis m16 a2, uma granada marca fmk de fabricação argentina, dois aparelhos de telefonia celular, um rádio transmissor da marca icom, 58 projéteis intactos de 5.56 mm e três projeteis de 7.62 mm”.
Três meses antes, o capitão Ronald havia sido acusado de participar da chacina de quatro jovens —entre eles um garoto de treze anos— na casa de espetáculos Via Show, em São João de Meriti, na Baixada Fluminense. Os jovens foram abordados no estacionamento pelo chefe da segurança de uma boate, formada por policiais que faziam bico. Geraldo, uma das vítimas, era soldado do Exército. Foi acusado de tentar roubar um carro pelo chefe da segurança, que acionou os policiais militares. Os PMs espancaram os garotos e os levaram para uma fazenda distante, onde foram torturados e depois assassinados com tiros de fuzil. Os corpos foram encontrados três dias depois num cemitério clandestino. Além de Ronald, oito policiais foram acusados pelo crime. Quatro acabaram condenados, sendo três deles soldados. Ronald, o único oficial envolvido na chacina, desmembrou o processo e continuou trabalhando normalmente como policial. Com o incentivo de políticos como o deputado Flávio Bolsonaro.
No caso de Adriano e de seus colegas do Grupo de Ações Táticas do 16º Batalhão, a homenagem ocorreu um mês antes de uma situação suspeita e escandalosa, que estouraria em seguida. Depois da homenagem de Flávio na Assembleia Legislativa do Rio, Adriano e os policiais laureados foram presos, acusados de sequestro, tortura e extorsão de três jovens em Parada de Lucas, comunidade da zona norte da cidade. Segundo testemunhos, os policiais aplicavam a velha prática da mineração [tentativa de cobrar dinheiro de pessoas ligadas ao tráfico] e do arrego. Contudo, um homicídio em especial desafiou a Secretaria de Segurança, comandada na época por Anthony Garotinho, que assumira o posto na gestão de sua esposa e sucessora no governo do Rio, Rosinha Garotinho.
A vítima de Adriano e sua tropa foi o guardador de carros Leandro dos Santos Silva, de 24 anos, morto com três tiros. Antes de ser assassinado, Leandro esteve na Inspetoria de Polícia, órgão criado por Garotinho com a finalidade de apurar desvios de policiais, para fazer uma denúncia. Contou que, na semana anterior, tinha sido espancado por policiais do 16º Batalhão e foi obrigado a pagar mil reais a eles. De acordo com o depoimento de Leandro, os policiais usaram sacos plásticos para asfixiá-lo e exigiram outros mil reais para deixá-lo em paz. Leandro foi levado à delegacia para confirmar as denúncias e depois encaminhado ao Instituto Médico Legal para o exame de corpo de delito. O subsecretário de Segurança, Marcelo Itagiba, e o inspetor combinaram com Leandro um flagrante, para prenderem o grupo no ato do pagamento do arrego. Não deu tempo. Ele foi assassinado às 6h30 na porta de casa.
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