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Conrado Hübner: “Bolsonaro transformou agentes públicos em vassalos com disputa por cadeira no STF”

Processado pelo procurador-geral da União por críticas a sua relação com Bolsonaro, professor de direito da USP comenta atritos do presidente com o Supremo e as dificuldades da corte para contê-lo. “Governo quer gerar fadiga da legalidade. O STF não vai dar conta”

O professor de Direito da USP, Conrado Hubner.
O professor de Direito da USP, Conrado Hubner.USP
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Acostumado a analisar pelo lado de fora as dinâmicas político-jurídicas do país, o professor de direito Conrado Hübner Mendes foi tragado para o centro do debate pelo procurador-geral da República, Augusto Aras. O indicado por Jair Bolsonaro para a Procuradoria Geral da República (PGR) não gostou de ser chamado de “Poste Geral da República”, entre outros desabonadores, numa série de críticas sobre suas supostas omissões à frente do Ministério Público Federal. A apresentação de uma queixa-crime contra o jurista é vista pelo meio político e acadêmico brasileiro como mais uma das tentativas intimidação do Governo contra seus críticos, apesar de a máquina pública não ser usada no caso.

Na entrevista abaixo, feita na terça-feira por videoconferência, Hübner, professor de direito da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Centro de Análise a Liberdade do Autoritarismo, fala sobre a atuação de Aras, aparentemente condicionada pela promessa de uma indicação para o Supremo Tribunal Federal (STF). Ele também analisa os desafios e dilemas internos do tribunal ―explorados nesta semana em seminário online do Foro Inteligência que pode ser assistido abaixo― para enfrentar a “estratégia governamental de inundar o STF com casos difíceis” e “gerar uma fadiga da legalidade”.

Pergunta. Como interpretou a queixa-crime apresentada pelo procurador-geral da República?

Resposta. O clima de tensão e vigilantismo ideológico no país vem se intensificando nos últimos anos, precede o Governo Bolsonaro. Se manifesta, por exemplo, no movimento Escola sem Partido. Mais recentemente, há uma tentativa de instrumentalizar a justiça para intimidar. O alvo desse “Estado de intimidação”, como chamei numa coluna, é a comunidade acadêmica, a comunidade dos críticos. Meu caso é bem peculiar, porque é uma ação penal privada. Ele [Aras] não está usando a máquina do Ministério Público para me processar. Diferente de outros casos recentes, em que o Governo usou de seu aparato como ferramenta de intimidação, muitas vezes com base na lei de segurança nacional, o meu caso é de um ator que não é do Governo, apesar de ser reconhecido como apoiador e colaborador do Governo.

P. Você considera que o Ministério Público foi capturado pelo Governo?

R. O Ministério Público Federal vive uma luta interna, entre o chefe, que tem bastante autoridade e certas competências exclusivas, que só ele pode exercer —por exemplo, para processar o presidente. Se o presidente consegue capturar ou neutralizar o chefe do Ministério Público, ele se salva de investigações. Ao mesmo tempo, o Ministério Público tem essa característica da autonomia funcional para os procuradores. Com isso, eles podem fazer ações que incomodam o Governo, mas não uma investigação direta do presidente. Isso faz que a colaboração do chefe do Ministério Público gere muito dano.

P. Bolsonaro parece condicionar os movimentos do procurador-geral, entre outros, com a promessa de uma indicação para o Supremo Tribunal Federal.

R. Bolsonaro manejou isso como ninguém. É muito problemático, ele estimula uma competição permanente pela cadeira do STF. Isso é inédito nos outros presidentes, e começou quando a vaga ainda nem estava no horizonte. Acabou virando uma espécie de corrida por quem presta mais favores. E exige autoridades que se prestem esse papel. Augusto Aras, André Mendonça [atualmente advogado-geral da União], ministros do STJ [Superior Tribunal de Justiça]. E eles não têm nenhuma garantia de que o Bolsonaro de fato vai, por gratidão, premiá-los com uma cadeira [quando o ministro Marco Aurélio Mello se aposentar, em julho]. No caso da primeira nomeação [de Kassio Nunes Marques], foi exatamente isso que aconteceu: o Bolsonaro no final nomeou alguém que era completamente desconhecido.

P. Como seria possível evitar que isso volte a acontecer?

R. Uma regra de quarentena. Se a pessoa é ministro do Governo ou procurador-geral da República, não poderia ser imediatamente nomeado ao STF. O procurador-geral da República precisaria, sei lá, esperar dois anos depois de terminado o mandato de procurador para que possa ser nomeado ao STF. Defendo que isso valesse para ministros de Estado também, porque deveria valer para advogado-geral da União. Foi ridícula essa competição travada entre o procurador-geral da República, o advogado-geral da União e o ministro da Justiça. Essas pessoas não podem ser seduzidas por isso, eles não podem receber e ter seu comportamento, influenciado por uma promessa de prêmio, por serviços prestados. Bolsonaro percebeu esse ponto cego da Constituição, percebeu que poderia, por meio desses sinais e estímulos por especulações na imprensa, transformar agentes públicos em vassalos do Governo. Augusto Aras é um vassalo, André Mendonça é outro. Quando ele falou em nomear um “ministro terrivelmente evangélico”, passaram a surgir evangélicos, passaram a falar da Bíblia. É uma competição muito explícita.

P. Por outro lado, curiosamente, o STF assumiu uma função de contrapeso perante o Governo.

R. Sim, eu não diria que é um contrapeso suficiente ou sem falhas e hesitações, mas sem dúvidas é um contrapeso. O Poder Judiciário é o local onde ainda se vê alguma espaço para de resistência, de oposição, de tentativa de contenção. Mas também está muito longe de ser homogêneo. Há uma fração do Poder Judiciário que se mostra em sintonia com o pensamento e a atitude e sensibilidade bolsonarista. Ao mesmo tempo, o Supremo Tribunal Federal ainda não foi capturado pelo bolsonarismo. Esse é um dos grandes foros de tentativa de imposição de limites. Não surpreende que o STF seja um dos maiores alvos de ataque também do Governo.

Jair Bolsonaro na cerimônia de posse do procurador-geral da República, Augusto Aras, em 2019.
Jair Bolsonaro na cerimônia de posse do procurador-geral da República, Augusto Aras, em 2019.Antonio Cruz/Agência Brasil (Agência Brasil)

P. Esse contrapeso está sendo feito dentro dos limites das atribuições do STF? Ou as críticas de atuação política dos apoiadores de Bolsonaro fazem sentido?

R. É importante caracterizar bem o que que a gente vê como manifestação política do STF. Isso, sim, é muito prejudicial: a falta de colegialidade, a falta da percepção de que aquilo é uma instituição acima dos onze ministros e de que é importante o STF se manifestar institucionalmente, não individualmente. Porém, é uma característica já enraizada no STF de muito tempo, o fato de que cada juiz se vê como um indivíduo legitimado a opinar, a comentar, seja sobre política nacional, seja sobre casos específicos do STF. A individualização do STF, a fragmentação do STF em ministros particulares, prejudica o tribunal. É uma espécie de desvio ético.

Essa normalização de que ministro pode ser um comentador da política, que o ministro pode ser um palestrante em grandes organizações, de grupos sociais como os empresários, a ideia de que o ministro do STF pode fazer palestra na Fiesp [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo], num banco, para os clientes especiais de um banco. Um banco tem interesses no STF, industriais têm interesse no STF. Isso é muito perverso e desnatura um pouco certos rituais de imparcialidade. O STF é absolutamente indisciplinado nos mandamentos éticos muito elementares da conduta judicial.

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P. Como isso prejudica a atuação do tribunal?

R. Todo tribunal com a estatura de um tribunal superior ou de uma suprema corte como o STF lida com casos, em geral, bastante explosivos. São casos que tocam em grandes interesses, em grandes forças sociais e econômicas. Para esse tipo de caso, um tribunal precisa administrar um capital, precisa ter respeitabilidade, para que as suas decisões sejam levadas a sério. Em última instância, para que suas decisões sejam respeitadas. Então, ele não pode ser percebido como um lugar da promiscuidade, da indisciplina, da absoluta arbitrariedade, da seletividade. Na medida em que tribunal desrespeita esses mandamentos básicos para o comportamento judicial, o seu capital político é prejudicado.

P. Qual o impacto desse comportamento especificamente na relação com o Governo Bolsonaro?

R. Tem algo importante que não é exatamente culpa do STF: uma forma de tentar minar o capital político do STF. É a estratégia governamental de inundar o STF com casos difíceis. O Governo vem produzindo decretos com uma ilegalidade ou inconstitucionalidade flagrante, sabendo que são decretos de ilegalidades flagrantes, mas, ao mesmo tempo, sabendo que o tribunal não vai ter capital político suficiente pra controlá-los. Mesmo que o STF não tivesse nenhum desses defeitos, mesmo que fosse a Corte Constitucional sul-africana ou colombiana, duas grandes referências, pra não citar referências europeias… Elas não têm condições políticas de lidar com 50 casos explosivos ao mesmo tempo. Cada um gera muito desgaste.

P. De que tipo de caso estamos falando?

R. Um é o do armamento, o decreto das armas. Do ponto de vista jurídico, é trivial, é um decreto ilegal. Mas o Governo fica jogando com o STF, sabendo que o STF pode até controlar aqui, ali, mas não vai conseguir controlar tudo. Outra área é a ambiental, O STF também teve uma postura importante sobre política sanitária, no caso da pandemia, quando determinou que Estados e municípios têm competência pra estabelecer normas. Não é exagero dizer que o STF tem sido muito importante neste momento, mas, ao mesmo, é sempre importante olhar o que o STF está escolhendo não decidir.

P. Como assim?

R. O STF tem muita liberdade pra não decidir casos. Pode decidir em um mês ou pode jogar o caso para 20 anos mais tarde. É uma distorção, uma aberração, mas dá muita margem política para o tribunal. Enfim, o STF ainda sobrevive como uma instituição que faz contrapeso ao Governo. Ao mesmo tempo, ele tem um grande adversário: um Governo que quer gerar o que eu poderia chamar de fadiga da legalidade. O STF não vai dar conta dessa gente, de casos tão pesados. Então, tem que escolher, um aqui, um ali, e administrar a pauta, porque ele sabe que o seu capital político não é infinito. Eles sabem que tem gente fazendo manifestação pelo fechamento do STF. O tribunal está sendo alvo como nunca foi de um discurso muito violento, que atinge não só a instituição, mas os ministros individualmente. Alguns ministros já foram ameaçados de morte. Coisas de típicas de um movimento de extrema direita.

P. Como corrigir os rumos do STF, se teoricamente isso só depende dele mesmo?

R. É muito difícil imaginar mecanismos que possam submeter a controle o STF e seus ministros. É muito difícil controlar grandes autoridades, o STF ainda mais. O ideal é que ele fosse um órgão colegiado, que passasse por uma revolução de ética judicial. Se tornou muito comum no STF a liberalidade nas decisões, quando o juiz tomar decisões monocráticas, liminares. São decisões preliminares, mas que geram efeitos irreversíveis, interrompem um processo legislativo, e foi um ministro sozinho que tomou. É um problema do individualismo do STF, não apenas o fato de que seus ministros falam pelos cotovelos sobre tudo. Eles tomam decisões sozinhos também, ou obstruem a pauta do Supremo. Esse tribunal fragmentado é muito custoso para o capital político. Combater e reduzir esse grau de fragmentação do STF é importante.

P. Há quem atribua essa fragmentação à transmissão dos julgamentos ao vivo. Você concorda?

R. A TV Justiça precisa ser bem compreendida. Não é um debate sobre ser a favor ou contra. Ela é importante para trazer algum grau de transparência ao STF. Perverso é a ideia de que a TV Justiça deve transmitir todas as reuniões e todas as sessões, tudo que acontece no tribunal. Ela pode cumprir um papel educativo, tem programas interessantes sobre temas, recados e decisões do STF. Mas gera obscuridade quando põe os ministros sob holofotes e câmeras. São elementos que valorizam, intensificam e incentivam a individualidade. Eles falam paras as câmeras, e isto gera um tipo de populismo judicial. No caso do mensalão, cada voto era um voto lido com teatralidade para o povo brasileiro. Não tinha nada a ver com uma deliberação judicial, tinha a ver com um discurso, naquela histeria anticorrupção, do Judiciário envolvido numa grande causa nacional de combate à corrupção, que se aprofundou com a Lava Jato. A maior transparência que o tribunal pode oferecer é a clareza da argumentação constitucional das suas decisões. A TV Justiça não é a única causa da cacofonia do STF, mas um incentivo para o enrijecimento dessa cacofonia.

P. O processo de impeachment de um ministro, que vem sendo cobrado por apoiadores de Bolsonaro, ajudaria ou atrapalharia nesse processo de unificação do STF?

R. O único mecanismo externo que resta na Constituição brasileira [para interferir no STF] é essa ideia quase fictícia de impeachment, porque isso nunca aconteceu, e é um instrumento muito dado a abusos. Você passa a pedir impeachment de ministro porque discorda das suas decisões. Isso é um ataque muito sério à independência judicial, e há um número recorde de pedidos de impeachment de ministro do STF. Era uma coisa muito incomum e, nos últimos dois anos, se juntaram pelo menos duas dezenas. O pedido de impeachment de ministro do STF é uma bomba muito perigosa. É preciso ser um caso muito flagrante de violação da lei, precisa ter muito consenso, porque é algo mais delicado do que o impeachment de qualquer outro ministro ou mesmo do presidente.

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