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Coluna
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O que Lula deu e Bolsonaro abocanhou

Estudos nos BIFs, o grupo de emergentes formado por Brasil, Índia e Filipinas que guinou ao autoritarismo, dão as chaves para entender as chamadas “classes ingratas” que escolhem a extrema direita

Homem vende churrasco na rua em Brasília.
Homem vende churrasco na rua em Brasília.ADRIANO MACHADO (Reuters)
Rosana Pinheiro-Machado
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Volta e meia aparecem análises que denunciam as “classes ingratas” — a “nova classe média” que aderiu ao bolsonarismo. É o sujeito que, durante os anos petistas, comprou uma moto e abriu um negócio. Ele trocou o piso de sua casa com o crédito que a esposa passou a receber por causa do Bolsa Família. O filho se casou e a avó, que tinha carnê nas Casas Bahia, deu de presente uma televisão paga em 12 prestações. Esse cara, que alguns chamam de pobre e outros de classe C, teve sua vida material melhorada nos governos do PT, mas apertou no 17 sem dó nem piedade—e com alguma convicção.

Esse fenômeno, que é descrito como ingratidão e contradição no debate político, permanecerá aceso até 2022, especialmente quando Lula e Bolsonaro se confrontarem. Para melhor compreendê-lo, é importante calibrar algumas das lentes através das quais o enxergamos.

Muito do que eu e minha colega Tatiana Vargas-Maia viemos pensando juntas diz respeito à importância de se deslocar (sem abandonar, evidentemente) do espelhamento do Norte global para entender dinâmicas que são muito características do Sul. É comum que muitos analistas descrevam as supostas classes ingratas recorrendo ao modelo de ascensão da extrema direita em países ricos, onde uma classe empobrecida se ressente do presente e sente falta do passado.

Em uma revisão de literatura recente sobre as emoções que descreviam os eleitores de extrema direita, encontrei 53 artigos que falavam de ressentimento; 32 de raiva; 27 de nostalgia, e 22 de ódio. Por mais importantes que sejam para descrever a adesão e o engajamento (não raro violento) bolsonarista, esses sentimentos não nos dão a dimensão completa do contexto brasileiro. São categorias que foram mobilizadas para descrever a ira do trabalhador médio norte-americano que perdeu seu trabalho numa fábrica e que perdeu poder de compra, especialmente após a recessão.

O trabalhador informal brasileiro não sentia falta do desmonte de um Estado de bem-estar social e não necessariamente perdeu seu emprego por conta da crise, pois provavelmente nunca o teve. Ao contrário: nas últimas décadas, especialmente nos governos petistas, ele viu um horizonte de crescimento econômico e melhoria de vida. Isso nos sugere que talvez devemos olhar mais para as experiências do próprio Sul global, especialmente as economias emergentes, para entender as classes precarizadas em um contexto de crescimento econômico, como foi o Brasil na era petista.

Olhando para o que cunhamos de “BIFs”— o grupo de emergentes Brasil, Índia e Filipinas que guinou ao autoritarismo — a estrutura se repete: o fruto mais imediato do crescimento econômico é o surgimento das classes aspiracionais.

Em nossa nova pesquisa sobre subjetividade política dos trabalhadores plataformizados nos BIFs (com a antropóloga Cristina Marins), tentamos entender por que esses estratos tendem a se identificar com Bolsonaro, Modi e Duterte.

Celebrados mundialmente, os BIFs eram grandes promessas democráticas do século XX. Esses países incentivaram o empreendedorismo e consumo como parte central do modelo de desenvolvimento. Isso não necessariamente é um problema, mas se torna mais complicado quando não sanamos as contradições e feridas profundas relacionadas à violência da desigualdade.

A propaganda governamental desses países falava que agora era a hora de brilhar. Basta lembrar do subtítulo do famoso relatório da nova classe média, lançado durante o governo Dilma: “O lado brilhante da pirâmide social’'. Ou mesmo o slogan de Modi “dias bons estão chegando”. Nesse futuro promissor, os BIFs, portanto, não produziram classes entristecidas e melancólicas, mas classes aspiracionais. Em sintonia com o desempenho econômico, essas pessoas se viam (de forma real ou imaginada) subindo na escada da mobilidade — e não descendo, como as classes empobrecidas dos países desenvolvidos.

Dito isso, alguns pontos podem nos ajudar a pensar estes setores, que são um dos pilares do bolsonarismo, e de modo bastante semelhante do modismo e do dutertismo.

Em primeiro lugar, estamos todos de acordo que a raiva e o ressentimento são dimensões fundamentais do bolsonarismo, mas elas não se sustentam sozinhas. Outra parte estruturante das emoções —que tendemos a ignorar— é tudo aquilo que vem da aspiração individual como projeto. O trabalho duro e o sonho de mudar de vida e se dar bem. E o quanto as posses e a propriedade privada são vistas como coroamento. É claro que, no Brasil, a fé e as igrejas neopentecostais são um arcabouço perfeito para alavancar esse projeto.

Esse sonho nada tem a ver com conseguir ter carteira assinada. Deseja-se trabalhar 18 horas no Uber para, em 5 anos, ter uma frota para poder explorar outros por mais 18 horas. A pessoa que faz docinho e salgadinho “para fora” passa a ser cada vez mais pressionada a vender no Instagram e no Ifood, e a ter likes e seguidores por meio de uma plataforma que é moldada pela recompensa do mérito individual.

Em segundo lugar, por mais que achemos insano, Bolsonaro —ao não fazer nada pela situação do emprego do país— fala para essas pessoas. Ao dizer que é tudo culpa do sistema e das leis trabalhistas, ele se reconecta com uma lógica atroz do vencedor individual, que só não vence porque tem muita lei atravancando o caminho. Quando Lula diz, no discurso de primeiro de Maio, que irá aumentar a proteção social e o emprego formal (o que para nós é correto), ele não fala para milhões de precarizados do século XX, infelizmente. E a ironia é que foi Lula quem mais entendeu e se conectou com esse perfil há poucos anos atrás.

Socialmente, sempre pensamos no trabalho informal e no desemprego por meio de categorias negativas como falta. Não está errado, evidentemente. Mas o que Bolsonaro e Duterte, em particular, fazem muito bem é manipular essa lógica e falar pelo aspecto positivo: você é o cara, o problema é todo o resto, deixa de mimimi. E nesse aspecto faz todo o sentido, para alguns estratos, a postura negacionista e relapsa de ambos os líderes durante a pandemia. Então, é preciso mesmo destruir todo o sistema para que o mérito desses indivíduos possa finalmente ser valorizado.

Em terceiro lugar, é claro que, em debates acadêmicos ou políticos, podemos discutir consciência de classe. Mas a acusação de “pobre de direita” não faz sentido algum para o sujeito que se acha um muito melhor do que o vizinho vagabundo (sic) mais pobre que ele. Para muitos, nada dá mais horror do que se identificar com o “pelado” ou “o Zé ninguém”.

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É um padrão histórico e sociológico que, em sociedades racistas, estratificadas e que estigmatizam a pobreza, a disputa por status entre a base da pirâmide leve grande parte daqueles que estão acima da linha da pobreza a se identificarem com os de cima, votando na extrema direita numa coalizão de classes que visa a barrar políticas distributivas. O trabalho da cientista política Pavithra Suryanarayan traz evidências sólidas de como isso se mantém na Índia há décadas. Em tempos de fomento de classes aspiracionais, Ravinder Kaur nos mostra, com brilhante capacidade etnográfica, que as classes aspiracionais que ganharam alguma melhora educacional e prosperidade são famintas por mudança e temem perder o recém alcançado status de “não ser pobre”.

No Brasil, muitos pesquisadores estudam esse fenômeno há tempos. Laura Carvalho é um dos nomes que sempre apontou a necessidade de se olhar com atenção para as dinâmicas econômicas desses setores “atachados” da pirâmide. Meu ponto aqui é também é preciso olhar para a dimensão subjetiva que vem da distinção de classe proporcionada pela mobilidade.

Por fim, não posso terminar esta coluna sem comentar que não é animador tentar entender a lógica dos que se identificam com um genocida. Mas estou convencida que essa tarefa ingrata continua sendo uma prioridade. Mais do que dizer que nas manifestações de bolsonaristas só tinha tiozão de Harley-Davidson (pois isso nos faz bem), seria também interessante olhar a quantidade de moto de entregador de delivery que estava lá. Sim, ela mesmo, a moto comprada na era Lula.

Rosana Pinheiro-Machado é antropóloga e professora de desenvolvimento internacional da Universidade de Bath, no Reino Unido. É autora de ‘Amanhã vai ser maior’ (Planeta).

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