Covid-19 deixa rastro de vítimas no futebol brasileiro, enquanto dirigentes pressionam por volta da torcida
Protocolo falho e pontos cegos na testagem colocam funcionários em risco. Cartolas, técnicos e ex-jogadores engrossam estatísticas de mortos pelo coronavírus no Brasil
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Celebrado pela precocidade com que conseguiu entrar no restrito circuito da cartolagem, o advogado Eduardo Araújo traçava metas ambiciosas para a carreira no esporte. Após perder a eleição para a presidência da Federação Paraibana de Futebol por apenas um voto, ele assumiu o cargo de diretor executivo do São Paulo Crystal, da região metropolitana de João Pessoa, e ajudou a conduzir o clube à primeira divisão estadual. Porém, o caminho promissor como dirigente foi abreviado no fim de junho. Aos 33 anos, contraiu o novo coronavírus, passou três semanas internado e morreu em decorrência de uma pneumonia. Ao contrário do padrão que indica maior índice de mortalidade pela doença entre os idosos, Araújo era jovem e não tinha nenhum problema prévio de saúde, de acordo com a família. Ele deixou esposa e o filho Davi, de sete anos.
A pandemia de covid-19 matou quase 220.000 pessoas no Brasil desde março de 2020. Ao menos 10 profissionais que trabalham diretamente com o futebol de alto rendimento ―entre cartolas, técnicos e auxiliares―, engrossam essa estatística. A comoção pela morte de Araújo gerou uma onda de manifestações dos clubes paraibanos, puxadas por equipes em que o dirigente havia trabalhado. “Eduardo era um garoto competente, de ótimo relacionamento com os jogadores e muito focado no trabalho. A gente tinha certeza que ele sairia dessa”, conta Múcio Fernandes, presidente do São Paulo Crystal. “Por ser uma figura agregadora, toda comunidade do futebol da Paraíba sentiu demais sua perda.” Antes de morrer, Dudu, como era conhecido pelos familiares, se posicionou contrário à retomada dos jogos no Estado, em meados de 2020, por entender que os atletas e profissionais seriam expostos ao vírus e poderiam desenvolver sequelas da doença.
Somente em dezembro, mais quatro dirigentes de times brasileiros morreram por complicações do coronavírus. O de maior destaque era Paulo Magro, 59 anos, presidente da Chapecoense. Quatro anos depois do acidente de avião que matou 71 pessoas, o clube catarinense sofreu um novo baque pela de seu mandatário. Ele chegou a passar por hemodiálise e apresentar sinais de melhora, mas não resistiu à infecção nos rins causada pela doença. Funcionários prestaram homenagens ao presidente na Arena Condá, onde seu caixão desfilou coberto pela bandeira da Chape. O clube eternizou o nome de Magro no memorial que lembra as vítimas do desastre aéreo na Colômbia.
Também faleceram por covid-19 no fim do ano passado o vice-presidente do Cruzeiro, Biagio Peluso, 71, o vice da Federação Amapaense de Futebol, Paulo Roberto Rodrigues, 64, e o diretor de marketing do Rio Preto Esporte Clube, Carlos Bomfim, 52 anos. Célebre na cidade do interior paulista pelo apelido de Carlinhos Jacaré, pois se fantasiava como mascote nos jogos do time, ele era o responsável por captar patrocinadores para a equipe. Em outubro, já havia morrido João Rodrigues Cocá, 54, diretor da Aparecidense. Ele descobriu que estava com o vírus em testagem de rotina juntamente com os jogadores do time goiano. Três dias depois, manifestou sintomas e acabou internado. “Exatamente em um domingo —dia de futebol nos gramados—, você nos deixou para dirigir o time dos guerreiros lá do céu”, expressou na época o ex-prefeito de Aparecida e amigo de Cocá, Maguito Vilela (MDB), que mais tarde contrairia a doença. O prefeito de Goiânia, eleito enquanto ainda estava internado em estado grave, morreu duas semanas depois de tomar posse virtual dentro do hospital, totalizando dois meses na UTI.
De forma semelhante ao político goiano, Marco José Bobsin, o Marcão, um dos vice-presidentes do Grêmio, viu seu quadro se agravar ao longo de mais de 100 dias no hospital. Ele teria sido infectado pelo novo coronavírus em um jantar de confraternização entre as diretorias de Internacional e Grêmio, antes do clássico pela Libertadores, em 11 de março. Outros quatro dirigentes, inclusive os presidentes de ambos os clubes, testaram positivo para covid-19 depois do evento. Marcão teve alta somente em junho. No mês seguinte, entretanto, voltou a ser internado por complicações virais e, aos 68 anos, faleceu em consequência de uma infecção abdominal.
Profissionais que trabalham no campo também estão expostos a manifestações graves da doença. Em 14 de dezembro, o técnico Marcelo Veiga morreu aos 56 anos. Ele havia testado positivo em novembro, enquanto dirigia o São Bernardo pela Copa Paulista, e foi afastado para cumprir o período em isolamento, mas os sintomas se agravaram rapidamente. Dois dias depois de sua morte, o Botafogo perdeu o auxiliar técnico Renê Weber, de 59 anos. “Profissional de alto nível, Renê era querido por todos, zelava pela excelência no trabalho e manutenção do bom ambiente. Ele foi mais uma vítima da covid-19”, manifestou a equipe carioca.
Ambos tinham histórico de atleta, como ex-jogadores com passagens por grandes clubes. Mesmo caso de Célio Taveira, 79, ídolo de Vasco e Nacional-URU, morto em maio, e Cleber Arado, 47, artilheiro do Coritiba na década de 1990. O ex-atacante faleceu no dia 2 de janeiro, após mais de um mês na UTI enfrentando intubação, pneumonia e coma induzido. “A partida dele foi o dia mais triste da minha vida. Ele lutou muito, mas, infelizmente, não conseguiu vencer essa luta”, diz Sol Sene, esposa de Cleber. “Pelo menos conseguimos dar ao meu marido uma despedida digna dos amigos e da família, apesar de ainda estarmos no meio da pandemia.”
Em maio, o massagista Jorge Luiz Domingos, de 68 anos, foi o primeiro colaborador de clube de expressão vitimado pelo coronavírus. Sofreu uma parada cardíaca devido ao agravamento da doença. Com 40 anos de casa, Jorginho era o funcionário mais antigo do Flamengo. “Agradeceremos eternamente por toda sua dedicação ao Rubro-Negro”, manifestou na época o clube, que já liderava a articulação para a volta do Campeonato Carioca no auge da pandemia, em que pese o luto pelo massagista e de ter detectado 38 funcionários com o vírus. O rival Vasco, por sua vez, registrou duas mortes por covid-19 em dezembro: Luiz Henrique Ribeiro, massagista das categorias de base, e o enfermeiro Miranir da Silva, o Miro. Ao longo da temporada, o time teve mais de 40 atletas infectados. O atacante Talles Magno, por exemplo, testou positivo em duas ocasiões.
O protocolo falho e pontos cegos na testagem abrem brechas para episódios insólitos, como o registrado no sábado passado, em Alagoas. Valdívia, jogador do Avaí, foi avisado no intervalo da partida contra o CSA de que havia testado positivo e precisou ser substituído. Assintomático, o meia-atacante entrou em regime de isolamento, mas somente depois de dividir o gramado com colegas de time e adversários por mais de 45 minutos.
Surtos, complicações e possíveis reinfecções
No último dia de 2020, o Vasco anunciou o retorno do técnico Vanderlei Luxemburgo ao comando da equipe. Ao ser apresentado, ele falou sobre o período de 11 dias internado por comprometimento do pulmão pelo coronavírus. Ainda com tosse moderada e voz rouca, o treinador de 68 anos recebeu alta em 22 de dezembro. “A covid-19 é uma loteria, a gente não sabe o que vai acontecer. Se intubar, a recuperação é complicada e imprevisível. Tive medo de faltar oxigênio, de não conseguir respirar, mas felizmente não precisei intubar”, contou em sua apresentação.
Luxemburgo havia testado positivo em julho, quando treinava o Palmeiras, e ficou 10 dias em isolamento, assintomático. A princípio, os médicos que o atenderam no hospital Sírio Libanês cogitaram a hipótese de uma possível reinfecção, pelos sintomas mais agressivos, mas o treinador alegou que, da primeira vez, teria sido diagnosticado com um falso positivo. No Campeonato Paulista, o laboratório do Albert Einstein, responsável pela testagem do torneio, admitiu erros em 23 testes positivos do Red Bull Bragantino, que prejudicaram a equipe às vésperas de uma partida contra o Corinthians.
Além de Luxemburgo, outro técnico que sofreu complicações da covid-19 foi Cuca, do Santos. O clube viveu um surto da doença em novembro, com mais de 30 profissionais infectados, entre eles 22 atletas do time feminino. Cuca, de 57 anos, passou uma semana internado e, por ser cardiopata, recebeu orientação médica para mais 10 dias em isolamento. Por tabela, toda a família do treinador foi contaminada —o sogro acabou falecendo. Antes da retomada do futebol, na metade do ano passado, o Sindicato de Atletas demonstrou contrariedade com a volta apressada das atividades, por considerar alto o risco de infecção de jogadores e, consequentemente, de seus familiares.
Embora dirigentes com idade mais avançada, casos de Carlos Augusto de Barros e Silva, o Leco, 82, ex-presidente do São Paulo que ficou quase um mês internado, Paulo Pelaipe, 69, ex-diretor de futebol do Coritiba, que levou mais de dois meses para se recuperar da doença, e Rafael Tenório, 66, presidente do CSA, que está internado no Sírio Libanês, sejam os principais afetados pela covid-19, jogadores também não estão imunes a complicações. O atacante Roberto, da Chapecoense, precisou ser hospitalizado por causa de sintomas como falta de ar e dores no corpo. “Foi o maior desafio da minha vida”, relatou o atleta no primeiro jogo após seu retorno. “Tive 40% do pulmão comprometido. Achei que nem voltaria mais a jogar na temporada. Esse vírus não é brincadeira.” Pedro Ken, volante do Operário, passou três dias internado em meio a um surto no clube paranaense.
Indiferentes ao risco e às perdas na pandemia, dirigentes de vários clubes pressionam autoridades pela volta de torcida aos estádios. Governo e Prefeitura do Rio de Janeiro chegaram a sinalizar a possibilidade de permitir 30% de público. No entanto, recuaram por falta de aval dos comitês médicos e científicos. No Reino Unido, algumas cidades obtiveram autorização para reabrir estádios para até 5.000 torcedores, mas a medida durou menos de um mês, já que, no início deste ano, o Governo decretou um novo lockdown.
Sem previsão de reabertura dos portões no Campeonato Brasileiro, a Conmebol cogitou vender ingressos para a final da Libertadores, que será disputada no Maracanã, em 30 de janeiro. Porém, com a explosão do número de casos e mortes no país, a confederação sul-americana descartou a hipótese e, inicialmente, assegurou que as arquibancadas estariam vazias para a decisão do maior torneio da América. Uma resolução da Secretaria de Saúde permitiu até 20% de público nos estádios do Rio de Janeiro, dependendo da classificação de risco de cada região, mas o prefeito Eduardo Paes se pronunciou pelas redes sociais garantindo revogar a medida por qualificá-la como “quase impossível de fiscalizar.” Já na última sexta-feira, o governador Cláudio Castro publicou decreto autorizando até 10% de público (7.800 pessoas) no Maracanã para a final da Libertadores. As entradas serão distribuídas pela Conmebol, que prevê a obrigação de apresentar testes PCR negativo para todos os espectadores no estádio.
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