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Pandemia de coronavírus
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Aglomerações de torcedores durante a pandemia contrapõem responsabilidade das organizadas

Ainda que as torcidas estejam engajadas em campanhas solidárias, celebrações em Santos antes da vitória sobre o Boca Juniors chocam pelo descaso em meio ao aumento dos casos de covid-19

Torcedores do Santos comemoram vitória sobre o Boca.Vídeo: Reprodução

Não bastassem as perdas diárias para a covid-19, os torcedores de futebol ainda lidam com a sensação de desamparo por causa do distanciamento forçado de seus clubes durante a pandemia. Com jogos de portões fechados, os mais apaixonados perderam a redentora válvula de escape das arquibancadas, algo que, inquestionavelmente, impacta a saúde mental de quem está há tanto tempo longe do convívio em massa nos estádios. Mas esse vazio não pode servir como pretexto para as cenas de aglomeração que têm se tornado tão frequentes quanto chocantes.

Um vídeo gravado por profissionais de saúde da Santa Casa de Santos, no litoral paulista, é revelador sobre o desprezo coletivo pela crise sanitária. Uma multidão de torcedores santistas fazia festa nas ruas ao escoltar a delegação do time rumo à Vila Belmiro, nesta quarta-feira, antes da vitória sobre o Boca Juniors, que garantiu a vaga na final da Libertadores. “Meu Deus, o pessoal perdeu a noção”, diz ao fundo a enfermeira que registrou as imagens, incrédula ao avistar o mar de gente, a gritaria e os fogos de artifício que explodiam em frente ao hospital.

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No dia anterior, centenas de palmeirenses haviam se aglomerado na porta do Allianz Parque em apoio aos jogadores para a partida contra o River Plate. A festa foi elogiada por patrocinadores do Palmeiras, que enfrentará o Santos na decisão do torneio continental. Esse tipo de manifestação não é exclusividade das torcidas dos dois finalistas da Libertadores. Nesta mesma semana, vários torcedores do Flamengo se juntaram na porta do CT do Ninho do Urubu para protestar contra atletas, dirigentes e comissão técnica. No fim do ano passado, o treinador Lisca, do América-MG, desceu do ônibus para festejar a classificação na Copa do Brasil em meio à torcida. Depois, ele se desculparia pelo ato. “Não vai mais acontecer. É preciso ter muito cuidado nesse período de pandemia”, disse o técnico, que já testou positivo para covid-19.

Praticamente todos os clubes do país já viram suas torcidas protagonizarem aglomerações, seja para celebrar ou para protestar. Em comum entre elas, o baixo percentual de torcedores com máscara de proteção e, por óbvio, o desrespeito aos protocolos de distanciamento. Como pano de fundo, o Brasil vivencia uma nova aceleração no ritmo de mortes e contágio pela covid-19. Santos, por exemplo, é a cidade da Baixada Santista com o maior número de internações pela doença, que já deixou quase 1.000 mortos na cidade. Na Santa Casa, por onde torcedores desfilaram, o número de hospitalizações pelo novo coronavírus não para de crescer desde novembro.

No início da semana, a Torcida Jovem, maior organizada do Santos, que integrou a manifestação de apoio ao time, ofereceu sua sede para a vacinação em São Paulo. Desde o começo da pandemia, cabe destacar, torcidas organizadas têm promovido campanhas de arrecadação de alimentos e distribuído a famílias pobres ou prejudicadas pela crise sanitária. Justamente pelo caráter da responsabilidade social, exaltado por suas lideranças para contrapor as tentativas de criminalização dos grupos de torcedores organizados, é fundamental que elas se sensibilizem para a gravidade da situação de calamidade pública, desaconselhando ao máximo qualquer tipo de aglomeração —ou, na pior das hipóteses, reforçando aos membros a necessidade do uso de equipamentos de proteção.

Partiram de movimento de torcedores —antifascistas, no caso— os primeiros grandes protestos populares da pandemia. Na época, diversas lideranças de organizadas preferiram evitar a convocação dos atos. Algumas por rechaçar a ideia de assumir um posicionamento político, outras, de forma consciente e responsável, por entender que o momento não era propício para manifestações multitudinárias. Hoje, em um contexto novamente crítico, de superlotação de hospitais e fechamento de cidades, espera-se a mesma postura de todas as torcidas. Não custa lembrar que elas acolhem, em grande medida, torcedores desfavorecidos, que dependem do SUS e, caso adoeçam ou transmitam o vírus a seus familiares, de vagas na rede pública de saúde.

Em vez de incentivar atos de devoção, os clubes poderiam aproveitar a ocasião para estreitar laços com suas organizadas, desenvolver formas diferentes de torcer e demonstrar a paixão, além de oferecer suporte para a sustentabilidade das torcidas. Mesmo severamente afetadas pela pandemia, devido à perda de arrecadação e ao afastamento das arquibancadas, elas seguem encontrando fôlego para levar adiante as ações sociais que muitos cartolas desconhecem. Não adianta recorrer aos torcedores organizados somente na má fase dos times. A relação tem de obedecer uma via de mão dupla, e as torcidas nunca precisaram tanto do amparo dos clubes que sempre apoiaram como agora.

Há quem argumente que as movimentações de rua nada mais são que o reflexo de uma sociedade que escolheu relativizar a pandemia e se expor ao risco, das baladas clandestinas aos comícios no período eleitoral. O próprio presidente da República estimula aglomerações e debocha de medidas restritivas, inclusive participando de peladas e jogos festivos. Por que seria diferente com a comunidade do futebol, retomado às pressas e com protocolos falhos?

Ainda que a premissa faça sentido, não é justo nivelar as torcidas organizadas por baixo. Elas surgiram como focos de resistência ao autoritarismo, peitaram um sistema que se esforça para sufocá-las e têm enorme poder de influência, sobretudo nos bastidores dos clubes e nas periferias. Nesta etapa tão delicada da pandemia, movimentos populares devem ser cobrados pelo cumprimento de seu papel social, a começar pela revisão de comportamentos que colocam milhares de pessoas em risco e a conscientização de ainda é possível evitar que a reta final dos campeonatos se transforme em uma bomba biológica com potencial de arruinar a própria sobrevivência das torcidas.

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