Torcidas que reverenciam Che Guevara adotam neutralidade em protestos contra Bolsonaro
Mesmo utilizando imagem do revolucionário de esquerda, Máfia Azul e Jovem Fla preferem não endossar atos antifascistas. Torcedores são-paulinos e guevaristas destoam de posicionamento
Em uma sala de Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte, estão espalhadas pela parede várias fotos de Ernesto Guevara de la Sierna, algumas tomadas antes mesmo de ele se converter em guerrilheiro. Na fachada, seu rosto decora a entrada da sede do Comando Guerreiro Eldorado (CGE), com o lema “somos a razão, o poder e a união”. Para o grupo agregado à Máfia Azul, maior torcida organizada do Cruzeiro, El Che é uma espécie de patrono que estampa faixas e bandeiras. Apesar da reverência ao ícone de esquerda, a ala de torcedores decidiu se manter neutra diante de manifestações convocadas por torcidas antifascistas nas últimas semanas em defesa da democracia e contra o Governo Bolsonaro.
A Máfia Azul emitiu uma circular proibindo seus membros de usar o nome ou a marca da torcida em manifestações políticas. “Não temos lado político que defina o nosso coletivo”, afirma a organizada, ressaltando o respeito ao posicionamento individual de cada integrante. A CGE acatou a determinação. Washington Xará, atual presidente do Comando, explica que as ramificações da Máfia Azul, conhecidas como “bondes”, estão divididas por bairros e regiões. Foram escolhidos personagens célebres, de Saddam Hussein a Al Capone, para diferenciar os clãs da torcida.
Che Guevara virou símbolo do Comando Guerreiro no início dos anos 90, nos primórdios da entidade. Seus fundadores identificavam-se com a imagem do artífice da Revolução Cubana, visto como inspiração de coragem e valentia, mais do que uma figura política ligada à esquerda. “Escolhemos o Che porque ele ocupava o posto de comandante. E, de alguma forma, a gente queria transmitir essa ideia de comando”, diz Xará. A aliança do grupo com Che se tornou tão popular que a Galoucura Contagem, fundada na mesma região por torcedores do rival Atlético-MG, se apropriou do emblema de René Barrientos, ex-ditador boliviano que ordenou a execução do guerrilheiro, em provocação aos membros da CGE. Atleticanos argumentam que a homenagem a Barrientos não tem cunho ideológico e serve apenas como combustível para a rivalidade.
A adoção pela organizada cruzeirense fez com que a efígie de Che se espalhasse em bandeiras de outras torcidas pelo país. Nascida na época do regime militar, a Jovem do Flamengo passou a utilizar a imagem do revolucionário argentino. “A gente admirava a rebeldia do Che Guevara. Somos antifascistas por natureza”, conta Leonardo Ribeiro, o Capitão Léo, ex-líder da Jovem Fla, remetendo às origens da organizada em afronta à ditadura. Atualmente, porém, a torcida também optou pela neutralidade nas manifestações contra Bolsonaro. Nos anos 80, entretanto, se posicionou a favor das Diretas Já e, nos 90, do movimento dos caras-pintadas, pelo impeachment do então presidente Fernando Collor.
Por se declarar uma instituição apartidária, a Jovem Fla informa que “não irá impor nem incentivar nenhum de seus integrantes que se manifeste contra ou a favor de qualquer espectro ou vertente política.” A sinalização decepcionou membros progressistas da torcida, sobretudo os da velha guarda, chamados de “antigos”, que divulgaram um manifesto para relembrar o espírito rebelde e transgressor que marcou o surgimento da torcida. “Fizemos bandeiras do Che Guevara para defender Cuba do bloqueio imposto pelos Estados Unidos”, aponta a carta. “Nossa caminhada é de luta em defesa dos mais fracos, pela liberdade de expressão e pela democracia. A Jovem surgiu para defender não só os rubro-negros, mas também para se somar às causas populares.”
Como a oposição a Bolsonaro não é consenso nas torcidas organizadas, a associação aos protestos dos últimos fins de semana tem gerado desconforto entre lideranças que preferem evitar o vínculo com movimentos antifascistas. Para se descolar dos atos, organizadas estão orientando integrantes que saem às ruas a não vestir uniformes nem levar bandeiras da torcida. “Somos apolíticos, focados somente no Internacional. Nossa torcida não toma partido”, diz Carlos Augusto Moyses, presidente da Camisa 12 do Inter, de Porto Alegre. Em 2001, o grupo foi acusado por dirigentes de promover “infiltração comunista” no clube gaúcho. A torcida tem bandeiras com o rosto de Che Guevara, que, segundo Moyses, não são mais estendidas nos estádios. No entanto, até o começo deste mês, a loja virtual da Camisa 12 vendia uma camisa colorada, com traços estilizados de Che Guevara a partir da foto clássica do cubano Alberto Korda, a 85 reais.
Parte significativa das receitas de torcidas organizadas provém da comercialização de produtos. O apelo do guerrilheiro como mártir revolucionário ajuda a turbinar as vendas. Na CGE, um agasalho da torcida com o rosto de Che estampado nas costas sai por 150 reais, enquanto camisas e bonés são vendidos por 65 e 50 reais, respectivamente. A ressignificação de sua imagem, agora dissociada da ideologia socialista pelas organizadas, garante a permanência do símbolo acima das divergências políticas entre associados.
O líder da Camisa 12 ainda expõe outra justificativa para a torcida se manter distante dos protestos nas ruas. Devido a uma briga no último jogo do Inter pelo Campeonato Brasileiro do ano passado, a organizada recebeu punições do Juizado do Torcedor e Superior Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol (STJD), impedida de frequentar estádios por 180 dias —sanção que terá de cumprir após a retomada dos jogos paralisados devido à pandemia de coronavírus. De acordo com o presidente, a ordem é evitar distúrbios, principalmente em manifestações políticas, que impliquem em novos ganchos. “Se tiver problema envolvendo nosso nome em algum tipo de protesto, vai ser ainda mais difícil para a Camisa 12 sair dessa punição”, afirma Moyses.
Anteriormente adepta do simbolismo de Che Guevara, hoje superado pela figura do cangaceiro Lampião, a torcida Jovem do Sport se manifestou contrária à adesão aos protestos. “Não compactuamos com a junção da Torcida Jovem do Sport em nenhum ato nas ruas do Recife que for relacionado à política. Tal decisão é tomada previamente para evitar envolvimento da entidade em possíveis cenas de violência como aconteceram em outras cidades do Brasil”, salientou a organizada depois da Polícia Militar reprimir com truculência a manifestação de torcedores de Corinthians, Palmeiras, São Paulo e Santos na avenida Paulista, em 31 de maio.
Das torcidas que preservam o culto à figura do revolucionário, a que destoa da postura de neutralidade é o Bonde do Che, ala abertamente de esquerda da Independente, principal organizada do São Paulo. Porém, com ressalvas ao movimento de torcedores intitulado antifascista, a quem descreve como uma base militante “pequeno-burguesa e alheia ao futebol”. Embora rejeite aderir à onda antifa, o Bonde se manifesta contra o Governo Bolsonaro e tem membros participando dos atos de rua à paisana, assim como a Frente Guevarista da Dragões da Real, outra organizada tricolor, que, institucionalmente, resolveu não instruir seus sócios a seguirem uma orientação política específica. “O que nos une é o São Paulo Futebol Clube. Fora disso, cada um que escolha seu caminho. Não se pratica democracia com ato antidemocrático”, afirmou a Dragões da Real.
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