El Che, um argentino incômodo
Seu país quase não o relembra, há poucas ruas dedicadas a ele, mas nasceu, cresceu e morreu argentino
Há poucas coisas mais distantes da revolução do que a tranquila cidade de classe alta da serra de Córdoba, no centro da Argentina, onde se criou Che Guevara. Ainda hoje, 50 anos depois de sua morte, continua sendo um distinto lugar de descanso de famílias afluentes, com enormes casas de estilo inglês como Villa Nydia, que os Guevara Lynch-De la Serna ocuparam nos anos 30, vindos de Buenos Aires atraídos por um clima ideal para luta contra a asma do pequeno Ernesto.
A própria casa, com seu grande jardim e seu anexo para a cozinheira, e as fotografias de sua infância expostas na residência, transformada em museu, mostram uma vida de luxos, com a família banhando-se na enorme piscina do famoso hotel Sierras, que está a poucas quadras. O pai de Che, membro, como a mãe, de uma conhecida família de fazendeiros, colaborou no projeto do campo de golfe próximo. Nada fazia pressagiar que o maior dos Guevara acabaria seus dias como o guerrilheiro mais famoso do planeta.
Há poucas pessoas mais argentinas do que Che, a começar por seu apelido, usado nestas terras para chamar uma pessoa. Nasceu, cresceu e passou mais da metade de sua curta vida neste país. “Sempre esteve a par do que se passava na Argentina, lia as notícias, perguntava. Mantinha uma argentinidade permanente, nunca deixou de falar em argentino, tomava muito mate, cantava tangos muito desafinadamente, segundo dizem. Os cubanos sempre dizem que era muito argentino, dono de uma ironia muito afiada”, conta Pacho O’Donnell, conhecido historiador argentino, autor de uma respeitada biografia de Che. A família Guevara-Lynch acabou em Córdoba a conselho do pai de O’Donnel, um conhecido pediatra de Buenos Aires que recomendou menos remédios e mais clima seco.
O historiador também recorda que Che nasceu e morreu argentino, porque pouco antes de partir para sua última aventura na Bolívia, onde o mataram, renunciou à nacionalidade cubana em uma famosa carta a Fidel Castro que está exposta no museu. “Apresento renúncia formal de meus cargos na direção do partido, de meu posto de ministro, de meu grau de comandante, de minha condição de cubano. Nada legal me ata a Cuba”. No entanto, seus restos descansam em Santa Clara, em Cuba, e ninguém na Argentina pensou em reclamá-los. É um argentino incômodo.
A Argentina mal se lembra de um de seus cidadãos mais universais, talvez o mais famoso, com Maradona e o papa Francisco. Além da casa natal em Rosário, e a de Alta Gracia, onde passou a infância e a adolescência, que se transformou em museu em 2001, há poucas ruas dedicadas a ele. Em Alta Gracia, uma localidade de classe alta muito conservadora, somente uma minúscula rua de duas quadras se chama Che Guevara. Não há praticamente homenagens oficiais em nenhum lugar do país. O único monumento, em sua Rosário natal, foi construído por subscrição popular, e alguns querem derrubá-lo. As organizadoras do museu fazem muito esforço para convencer as escolas locais a enviarem seus alunos à casa de Che. Sua figura quase não é estudada nas escolas.
“É um personagem polêmico. Alguns o veem somente como um assassino. No museu explicamos sua figura como um personagem histórico. Mas muita gente que vem pergunta: ‘E o que Che fez pela Argentina?’ Veem que lutou em Cuba, na África, na Bolívia, mas não aqui”, conta Carolina Isola, uma das responsáveis pelo museu.
Ernesto Guevara, o menino asmático que não era um estudante muito bom, mas lia de tudo desde os quatro anos e falava vários idiomas, como era comum na classe alta argentina, não se destacava nem ao menos por essa dureza que o tornou famoso e o levou a matar sem piedade com a própria arma qualquer um que fosse considerado um traidor. “Che não era violento por personalidade. Estudei muito sua infância para a biografia. Era conciliador. A violência aparece na Guatemala. Chega como um aventureiro que pensava em ser médico em leprosários. Mas vê derrubarem Jacobo Arbenz com apoio da CIA. Conhece sua primeira mulher, Hilda Gadea, entra em contato com o marxismo e conhece os primeiros castristas. Aí decide que somente se pode combater o imperialismo com a violência”, explica O’Donnel.
“Sempre esteve obcecado pela pureza. Morreu e matou por suas ideias. Mas foi mudando. Na África e na Bolívia já não se inflama com os desertores. Estava condicionado para um destino trágico. Por isso tem todas as características do mito. Por isso seus contemporâneos, De Gaulle, Kennedy, Mao, estão nos livros ou documentários, mas Che está nas ruas, nas manifestações, nos protestos. A sociedade que o matou o mantém vivo”, arremata.
O mais parecido à violência que ele viveu na infância foram os jogos de guerra que os Guevara faziam no jardim imitando a guerra civil espanhola, que acompanhava com toda a família com paixão, a favor do lado republicano porque um de seus tios era correspondente de um jornal argentino no conflito. Depois conheceram vários exilados republicanos que acabaram nas serras de Córdoba, incluindo o maestro Manuel de Falla.
Che sai da Argentina, portanto, como um aventureiro com uma mochila e acaba sendo revolucionário. Nem sequer foi militante político na convulsionada universidade de Buenos Aires onde estudou medicina. Seu amigo Alberto Granados, com quem fez sua primeira grande viagem latino-americana na famosa moto, estava metido na política e foi preso, e o recriminava sempre por não se envolver mais. Os restos de Guevara descansam em Cuba, mas uma parte dos de Granados está na Argentina, na casa de Alta Gracia. Também era desta região Calica Ferrer, um amigo de infância com quem fez a segunda e última viagem latino-americana. Calica ainda vive e está nestes dias na Bolívia para tomar parte da grande homenagem organizada por Evo Morales. De lá conta por telefone que está “muito emocionado” pelo aniversário.
Na Argentina somente há uma vigília na casa museu de Alta Gracia. A política argentina sempre fugiu de Che. Tanto é assim que em 2006 o museu foi visitado por Fidel Castro e Hugo Chávez, mas nunca por Néstor nem Cristina Kirchner. E, no entanto, ele sempre sonhou em exportar a revolução para seu país. Na realidade, houve uma tentativa, protagonizada pelo jornalista argentino Jorge Masetti, muito próximo de Che, que dirigiu a Prensa Latina. Tentou sentar base em Salta, no noroeste argentino, que desconcertou Che por sua pobreza em sua primeira viagem em uma bicicleta com um pequeno motor acoplado. Masetti se fez chamar de comandante segundo, à espera da chegada de Che. Mas todo o grupo foi eliminado pela Gendarmeria argentina e seu corpo nunca foi encontrado. A operação na Bolívia também foi uma última tentativa de aproximar a revolução de sua terra se triunfasse ali seu projeto suicida. A morte do argentino mais famoso fora de sua terra o transformou em uma lenda. Mas muito mais fora que dentro do próprio país.
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