Cotas de ingresso barato devolvem os torcedores mais pobres ao futebol
América-MG e Internacional contrapõem elitização das arquibancadas, baixam preço de entradas e preveem aumento de receitas com retorno das classes populares ao estádio
“O futebol é um ramo da arte popular.”
Essa era a visão de João Saldanha, ex-técnico da seleção brasileira no fim dos anos 60, sobre o esporte nacional. Uma arte ao alcance do povo. Porém, nos últimos anos, o Brasil observa seus estádios cada vez menos democráticos com o encarecimento do preço dos ingressos. Diante dessa realidade, inserida em um cenário de crise econômica do país, dois clubes da Série B do Campeonato Brasileiro, cada um à sua maneira, decidiram promover a volta dos torcedores mais pobres à arquibancada. A lógica de América Mineiro e Internacional é bem simples: com cotas de ingressos baratos, pretendem aumentar o público nos estádios e turbinar as receitas resgatando uma expressiva parcela da população que tem sido negligenciada pelos grandes clubes nacionais.
No início deste ano, o América lançou o “Projeto de Popularização do Futebol”. Considerado a terceira força de Minas Gerais, atrás dos gigantes Atlético e Cruzeiro, o clube já até brincou com o fato de não ter uma torcida numerosa ao se autodeclarar “um time para poucos”. No entanto, ostentando mais de 100 anos de história, se mobiliza para angariar novos adeptos. Com ingressos entre 5 e 20 reais, incluindo os valores de meia-entrada, o Coelho, como é conhecido o time de Belo Horizonte, viu sua média de público subir 50% no Campeonato Mineiro em relação à última edição do torneio – e ainda contabilizou um lucro 15% maior na bilheteria.
Os bons resultados motivaram a diretoria a estender o projeto até o fim desta temporada, em todas as competições disputadas pelo clube. Nos últimos três anos, a média de público do América em jogos no estádio Independência foi sempre superior a 3.000 torcedores. Na temporada atual, apesar das promoções, o número ainda está abaixo de 2.500 americanos por jogo. Mas os dirigentes esperam que, com a prorrogação do plano popular e um bom desempenho do time na reta final da Série B, as médias de público e arrecadação superem as marcas do ano passado. “Tivemos resultados significativos para o tamanho do clube”, explica o diretor de marketing Erley Lemos. “Uma pesquisa recente mostra que temos torcedores distribuídos em todas as classes sociais. Precisamos quebrar o rótulo, que vem de um passado muito distante, de que o América é um time da elite. Hoje fazemos questão de acolher a camada menos favorecida da sociedade e remar contra a corrente para que ela volte a abrilhantar o espetáculo do futebol.”
Para tirar o projeto do papel, o América teve de entrar em acordo com a Federação Mineira e a Confederação Brasileira de Futebol, que estabelecem preços mínimos a serem cobrados pelos clubes no regulamento geral das competições. A CBF, por exemplo, determina que os jogos da Série B não podem ter ingressos vendidos por menos de 20 reais (inteira) e 10 reais (meia). Na Série A, a limitação sobe para 40 e 20 reais, respectivamente. Entre os clubes da Primeira Divisão, o Vasco chegou a cogitar uma espécie de “Bolsa Ingresso” no ano passado, em que ofereceria uma cota de ingressos gratuitos a torcedores de baixa renda, mas a ideia não foi adiante. Todavia, seus jogos têm preços mais acessíveis (média de 33 reais) que o de rivais como o Flamengo. Desde a inauguração do novo estádio, a Ilha do Urubu, o rubro-negro carioca cobra valores entre 70 e 360 reais por partida de seu torcedor (média de 54 reais).
Já o Internacional resolveu remeter às raízes humildes, que o tornou um dos primeiros clubes gaúchos a abrir espaço para negros e operários em seus quadros, e foi novamente pioneiro ao criar uma modalidade popular para sócios-torcedores. Por meio dela, colorados que estudam em escola pública, recebem algum benefício social do Governo ou tenham renda de no máximo dois salários mínimos poderão pagar um plano de 10 reais por mês e, pela mesma quantia, garantir o ingresso para cada jogo do Inter. Inicialmente, o programa será restrito a 2.000 torcedores, mas o clube considera liberar novas adesões à modalidade após avaliar o impacto da medida.
“Nos orgulhamos de ser um clube de origem popular”, afirma o vice-presidente de administração do Inter, Alessandro Barcellos. “Por isso, a nova modalidade foi um tema bastante discutido. Fizemos várias análises e estudos para comprovar a viabilidade do projeto. O retorno dessa fatia de público vai ajudar a melhorar a ocupação do nosso estádio.” O Internacional, que se intitula como “clube do povo do Rio Grande do Sul”, começou a estudar a implementação da cota popular ainda no ano passado, quando parte da torcida já protestava contra a escalada de preços no Beira-Rio. Graças a pressões do movimento “O Povo do Clube”, formado por sócios e torcedores colorados, o Conselho Deliberativo do Inter aprovou no fim de junho a proposta de ingressos populares, que já está em fase de regulamentação e deve abrir inscrições a partir de setembro. Além de comprovar renda, os torcedores selecionados terão de passar por um cadastro biométrico para frequentar os jogos.
Consultor de marketing e gestão esportiva, Amir Somoggi vê iniciativas como a do Inter com bons olhos, mas pondera que, para ser viável no longo prazo, o projeto precisa ser financiado por áreas nobres do estádio. Em linhas gerais, ricos devem pagar mais para ampliar o acesso aos setores populares. “A popularização é uma ação paliativa, mas, como se tratam de apenas 2.000 lugares, ainda não resolve o problema crônico de ocupação do Beira-Rio”, diz Somoggi. “Para minimizar, de fato, os efeitos da elitização, o Inter precisaria explorar mais os camarotes do estádio, cobrando um preço elevado nesses espaços, para conseguir financiar cotas maiores de entradas populares.” No entanto, como o clube detém apenas 5% dos camarotes e cadeiras nobres do Beira-Rio, já que a maior parte é administrada por uma empresa da Andrade Gutierrez, responsável pela reforma do estádio para a Copa do Mundo, o subsídio de quem pode pagar mais não é uma possibilidade, por enquanto.
Ainda assim, a diretoria colorada prevê um incremento considerável nas receitas via modalidade popular, já que, com o time na Segunda Divisão nacional, o preço médio dos ingressos tem sido inferior a 30 reais e a taxa de ocupação do estádio bate na casa dos 35%, com média de 16.500 torcedores por jogo – a capacidade do Beira-Rio é de 51.000 pessoas. Mas a grande aposta do Inter é atrair as classes C, D e E, que hoje representam somente 6% do quadro associativo, para o programa de sócio-torcedor, a segunda maior fonte de receita do clube depois dos direitos de transmissão das partidas. Para o Inter, acima de tudo, a cota popular é uma forma de reconhecer a importância da massa colorada, afinal, ao repartir o bolo das receitas publicitárias com os clubes, a televisão leva em conta o número estimado de torcedores de cada equipe. Nessa conta, ricos e pobres estão no mesmo patamar.
“O antigo Beira-Rio, antes da Copa do Mundo, sempre teve setores populares. Queremos resgatar a tradição do Internacional e acreditamos que o projeto é interessante para clube tanto no aspecto econômico como no social”, afirma Barcellos, ansioso para que o Colorado volte a ser efetivamente um clube do povo. “Por mais que disponibilizemos lotes promocionais de ingresso ao longo do ano, não há garantia de que essas entradas serão adquiridas pelas pessoas que mais precisam. Agora, corrigimos essa distorção e vamos firmar um casamento duradouro com parte da nossa torcida que estava afastada do estádio. Não podemos excluir o torcedor que sempre apoiou o clube, muito menos virar as costas para nossa história.”
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