Desempregados da bola tentam driblar a crise de uma quarentena sem futebol
Com dispensas em massa nos clubes, jogadores se desdobram para sobreviver à paralisação imposta pela pandemia após Governo vetar auxílio emergencial a atletas
Em quase 10 anos de carreira profissional, Kemerson Alex possui todas as credenciais que o definem como um “operário da bola”. O zagueiro baiano nunca fechou contratos milionários e está acostumado a peregrinar por times modestos, em que salários atrasados, trabalho precarizado e demissões no meio da temporada, por falta de calendário para o resto do ano, formam parte da rotina. No início deste ano, ele defendeu o Paranoá no Campeonato Brasiliense. Como a equipe acabou rebaixada, foi dispensado no começo de março, antes mesmo da suspensão dos campeonatos por causa do isolamento social para deter o coronavírus. “Já estou acostumado a ganhar pouco, a não ter garantia de jogar e receber o ano inteiro, com ou sem pandemia”, conta.
Assim como Kemerson, a maioria dos atletas de futebol que tiveram contratos encerrados no meio da paralisação ou foram demitidos diante do arrocho financeiro amargado por seus clubes, impedidos de encerrar as competições estaduais, agora precisa se desdobrar para sobreviver enquanto não há perspectiva de retomada dos jogos. De acordo com um levantamento da CBF, de 2016, apenas 4% dos cerca de 25.000 jogadores profissionais do país têm salário superior a 10.000 reais. Por outro lado, mais de 80% ganham menos de 1.000 reais por mês. Para a parcela da base da pirâmide, o quadro atual se tornou dramático após o presidente Jair Bolsonaro vetar a concessão do auxílio emergencial a atletas.
Sindicatos da categoria se mobilizam na tentativa de reverter a decisão do Governo. A Federação Nacional dos Atletas Profissionais de Futebol reuniu jogadores em um vídeo de apelo pela extensão do benefício aos trabalhadores da bola. “Para mim, esse auxílio não é privilégio, é sobrevivência”, diz o goleiro Alex Dida, mandado embora depois de o Atlético-AC desmanchar seu elenco por não ter condições de pagar salários durante a parada do Campeonato Acreano.
“Somos contra privilégios, mas entendemos que o atleta deve ter direito ao auxílio emergencial”, afirma Rinaldo Martorelli, presidente do Sindicato de Atletas de São Paulo, que trabalha junto ao Congresso pela derrubada do veto presidencial. “O jogador é o único trabalhador que contribui para a Previdência em troca de nenhum benefício. Não consegue se aposentar, porque a carreira no futebol é curta, nem recebe seguro-desemprego ao término dos contratos.” A entidade colheu mais de 25.000 assinaturas contra o veto, incluindo atletas de várias modalidades, em manifesto que será enviado a deputados e senadores.
De volta a Feira de Santana, sua cidade natal, Kemerson tem se virado com bicos dos mais variados, de garçom a vendedor. Com o comércio fechado, passou a dar treinos funcionais, mas as turmas minguaram devido às medidas de distanciamento social. Ele só conseguiu receber a primeira parcela do auxílio emergencial por ter feito cadastro no programa do Governo como autônomo, ocupação que exerce nos períodos sem contrato vigente com clubes, e não como atleta. Em 2017, ele passou a temporada inteira desempregado no futebol profissional, mas pagava as contas com os cachês que faturava em torneios amadores na Bahia. “Agora, que não tem mais campeonato nenhum, perdi toda minha fonte de renda como jogador.”
Outra categoria comprometida pela pandemia é a do futebol feminino. Mesmo com auxílio financeiro de 120.000 reais e 50.000 reais destinado pela CBF para clubes das séries A1 e A2, respectivamente, várias atletas acabaram desamparadas com o avanço da crise. É o caso do Grêmio Santos Dumont, de Sergipe, que disputa a segunda divisão. A princípio, a diretoria do clube relutou em usar a verba da confederação para bancar o salário de suas 25 jogadoras, que, somente depois de protestarem, receberam 500 reais cada por dois meses. Atletas que lideraram a queixa contra dirigentes, como a capitã Ligia Montalvão, 26, já receberam o aviso de que não retornarão ao time.
“Algumas jogadoras que vieram de outros Estados estavam passando fome, sem condição de se manter. Tivemos de fazer uma denúncia à CBF para receber pelo menos esses dois meses de pagamento. É muito frustrante a situação que a gente vive em clubes que não valorizam o futebol feminino”, diz Montalvão, que segue mantendo a forma por conta própria e ajuda os pais a tocar um restaurante em Aracaju, de onde tira seu sustento atualmente com a venda de marmitex. No Santos Dumont, ela não tinha carteira assinada. Ao fim do mês, firmava um recibo após receber os vencimentos que variavam entre 700 e 1.000 reais. Outra integrante da A2, a equipe feminina do Atlético-MG dispensou cinco jogadoras em um pacote de demissões para contenção de gastos.
Nem mesmo atletas brasileiros que atuam no exterior escapam dos cortes em decorrência da paralisação de jogos. Em Malta, o meia Ricardinho, 30, revelado pelo Corinthians, viu o campeonato local ser paralisado a seis rodadas do encerramento. O Senglea, clube pelo qual atua, determinou que jogadores estrangeiros voltassem para seus países. Porém, como tinha três meses de salários atrasados, Ricardinho decidiu permanecer no apartamento disponibilizado pelo clube até receber a dívida. Morando com a mulher, ele agora tem de gastar parte das economias com o aluguel de 700 euros que dirigentes se recusam a pagar. “Não aceitei ir embora sem receber o que me devem. Nunca passei por uma situação tão complicada de atrasos, mas pretendo lutar pelos meus direitos.”
Kemerson, por sua vez, jamais chegou perto de jogar na Europa. Entretanto, se diz orgulhoso por ter realizado o sonho de se tornar jogador. Aos 27 anos, ele ainda espera tentar a sorte, em busca de um contrato que lhe garanta um bom pé de meia, até o ano que vem. Caso não consiga, admite a hipótese de trocar a carreira por outro emprego que ofereça estabilidade. Uma decisão que pode ser antecipada pela pandemia. “Minha prioridade hoje é trazer o pão pra casa”, conta. “Tenho esperança de dar uma vida melhor para minha família quando essa crise passar, mas, se depender só do futebol, vai ser difícil. Ainda mais na realidade que eu sempre vivi, de jogar em condições mínimas para um atleta profissional.”
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