Foco em idosos dilui papel dos mais jovens, que em São Paulo já somaram metade dos infectados
Na última sexta, quando infectados contavam mais de 1000, 516 eram paulistas entre 20 e 39 anos. Além de vetores de disseminação, também podem ser vítimas da Covid-19
A família de Manoel Messias Freitas Filho só descobriu que ele se tratava da primeira vítima fatal do coronavírus no Brasil dois dias depois de sua morte, assistindo ao noticiário noturno pela televisão. Aos 62 anos, o porteiro aposentado não resistiu às complicações da Covid-19 e morreu no hospital Sancta Maggiore, em São Paulo. Neste sábado o Estado com o maior número de infectados chegou à marca de 84 mortos pelo vírus, boa parte deles com histórico de comorbidades (doenças prévias), idade avançada e um desfecho traumático para familiares que, mesmo diante da demora dos diagnósticos, precisam providenciar sepultamentos às pressas.
Manoel tinha diabetes, hipertensão e, recentemente, havia sido hospitalizado por causa de uma trombose. As dores nas pernas que persistiam ao longo de quatro dias o fizeram procurar atendimento médico no dia 14 de março. Sentindo falta de ar, foi internado na UTI do hospital da Prevent Senior, plano de saúde voltado ao atendimento a idosos que registrou os cinco primeiros óbitos pela doença em São Paulo. Morreu menos de 48 horas depois. O corpo demorou dois dias para ser liberado. Inicialmente, familiares imaginaram que o falecimento pudesse ter sido ocasionado por outro quadro de trombose, mas ficaram desconfiados ao saber que o caixão estava lacrado no velório.
Sua história repete o padrão visto no exterior. Por todos os países em que o coronavírus se espalhou, os idosos foram os mais afetados. No Estado de São Paulo, das 86 vítimas registradas desde o início da pandemia, 79 eram idosas (53 do sexo masculino). A média de idade é de 77,6 anos. Apenas um homem de 88 anos, segundo relato de familiares, não tinha doenças preexistentes (entre elas, as mais comuns são as cardiopatias).
Mas se os idosos são mais vulneráveis e passíveis de óbito, jovens e adultos representavam quase metade dos casos confirmados de coronavírus. Entre os pouco mais de 1000 infectados em São Paulo até sexta-feira, havia quase metade, 516 pessoas, com idade entre 20 e 39, ou 49,1%, um alerta para quem se sente “fora do grupo de risco”. Além de serem vetores de transmissão aos mais velhos, podem ser vítimas como eles. Nesta semana, a Secretaria de Estado de Saúde confirmou a morte de um homem de 33 anos e uma mulher de 48, ambos com enfermidades prévias, que não foram detalhadas pelo órgão. Já neste sábado, o Hospital Santa Cruz informou que um homem de 26 anos morreu após ser internado no último dia 23 com altos níveis de ácido úrico no sangue e quadro grave de problemas respiratórios. Ele testou positivo para Covid-19.
Mortes suspeitas como a de um motorista de 25 anos seguem em investigação. Nesses casos, enquanto não há confirmação do teste de coronavírus, o corpo não é liberado para sepultamento, a exemplo de uma enfermeira de 40 anos, que morreu em um hospital da zona Norte na noite da sexta-feira passada. A prefeitura de São Paulo tem orientado parentes de vítimas da Covid-19 a evitar a realização de velórios, que só podem acontecer com caixão fechado, durar no máximo uma hora e limitado a no máximo 10 pessoas, a fim de evitar novas infecções pelo vírus.
“A pessoa idosa é mais vulnerável a toda enfermidade infecciosa, já que, por mudanças no sistema imunológico, a resposta do organismo costuma ser mais lenta com o passar do tempo” explica o médico Carlos André Uehara, presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia. “Mas o acúmulo de comorbidades, como diabetes, hipertensão e doenças pulmonares, acaba configurando um fator de risco para o coronavírus independentemente da faixa etária.” Uehara entende que as medidas mais urgentes para prevenção de Covid-19, sobretudo entre idosos, é o isolamento social e a vacinação contra os novos tipos de Influenza.
Uma das vítimas recentes que, em tese, não estaria no grupo de risco é Antonio Brito dos Santos, de 49 anos. Ele se sentiu indisposto antes de sair para trabalhar no último dia 11 de março. Mesmo com febre, continuou cumprindo expediente em um estacionamento no centro da capital paulista. O manobrista resolveu procurar atendimento três dias depois, no sábado, em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) da zona Norte. Exames identificaram uma pneumonia, mas os remédios receitados não baixaram a febre. Na segunda-feira (16), ele voltou ao posto apresentando falta de ar. Foi encaminhado ao hospital público da Vila Nova Cachoeirinha, onde faleceu no mesmo dia.
Segundo o confeiteiro Ricardo Abrantes, filho do manobrista, o pai foi isolado no hospital assim que os médicos suspeitaram de infecção por Covid-19. Porém, a confirmação de coronavírus só saiu quase uma semana após sua morte. “O corpo demorou três dias para ser liberado. Tivemos que insistir muito, ligar várias vezes e lidar com toda burocracia até conseguir enterrar meu pai”, diz Abrantes. Somente no sábado (21) a família diz ter recebido uma ligação do hospital informando o resultado positivo e a necessidade de fazer quarentena, que os parentes mais próximos já haviam iniciado por conta própria. Até então, Antonio, que tinha histórico de tuberculose, era a vítima mais jovem do coronavírus no Brasil.
A epidemia, que parecia distante do Brasil no final de fevereiro, pegou o país de surpresa, que teve de aprender na marra alguns procedimentos. A família de Manoel Messias Freitas Filho, por exemplo, não foi informada pela Prevent Senior sobre a causa da morte nem orientada para se resguardar da doença, explica o advogado da família, Roberto Domingues Junior. Após o enterro, os pais de Manoel, com mais de 80 anos, e dois irmãos acabaram internados com sintomas da doença. Todos, exceto a mãe, que já recebeu alta, testaram positivo para o coronavírus. Eles viviam no mesmo apartamento de Manoel, no bairro Paraíso, assim como uma irmã portadora de transtorno mental, que teve de ficar sozinha enquanto o restante da família passava por exames. O pai, de 83 anos, permanece em estado grave no hospital.
O caso de Manoel gerou atrito entre a Prevent Senior e a Secretaria Municipal de Saúde, que acusou a rede de não notificar os casos confirmados de coronavírus em seus hospitais às autoridades. Em nota, a empresa negou ter deixado de avisar o diagnóstico de Covid-10 a pacientes e familiares. “Seguimos todos os protocolos médicos estipulados pelas organizações governamentais de saúde.” A família de Manoel avalia uma possível ação judicial contra a Prevent Senior por supostas falhas na prestação de informações a respeito do estado de saúde do porteiro aposentado. Torcedor do Flamengo e de hábitos pacatos, Manoel, segundo parentes, saia pouco de casa. Sua exposição ao vírus foi classificada como transmissão comunitária (quando não é possível determinar a origem da infecção).
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