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Opinião
Texto em que o autor defende ideias e chega a conclusões basadas na sua interpretação dos fatos e dados ao seu dispor

Coração Valente e as escolhas políticas que norteiam a CBF

Demitido da confederação após presença irregular em campo, ex-jogador com passagem pelo Governo expôs o amadorismo que permeia as relações políticas do futebol

Washington Coração Valente CBF
Washington (à dir.) mostra vídeo no celular à comissão técnica do Caxias.Reprodução (SPORTV)

A história de Washington Stecanela Cerqueira como atleta daria um filme. Diagnosticado com diabetes e submetido a duas cirurgias cardíacas, os médicos lhe recomendaram abandonar o futebol. Sob monitoramento constante da saúde, resolveu insistir na carreira. Em 2004, um ano depois de operar as artérias, o atacante sagrou-se artilheiro na campanha do vice-campeonato brasileiro do Athletico. Jogou profissionalmente até 2011, quando pendurou as chuteiras no Fluminense. A trajetória de superação, que inspirou o apelido de Coração Valente, foi chamuscada na semana passada por um desvio ético que resultou em sua demissão da Confederação Brasileira de Futebol (CBF).

No jogo entre Caxias e Botafogo, pela Copa do Brasil, Washington foi flagrado à beira do campo mostrando o replay de um lance, em que o árbitro ignorou uma penalidade a favor do time da casa, à comissão técnica do clube que o revelou. Como diretor de desenvolvimento da CBF, ele não poderia estar no gramado nem portar um celular, aparelho vetado a funcionários da confederação que trabalham nas partidas para evitar influência externa sobre a arbitragem. O juiz relatou em súmula a irregularidade cometida pelo dirigente, assim como sua presença no vestiário dos árbitros antes do jogo, algo que também viola normas das competições.

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Mesmo que não tivesse nenhuma relação com o Caxias ou não fosse ídolo do Fluminense, rival histórico do Botafogo, Washington jamais deveria acompanhar uma partida do banco de reservas, atribuição incompatível com cargos diretivos. Sua permanência na CBF se tornou insustentável, e ele acabou demitido por telefone no dia seguinte. Nesta segunda-feira, o ex-jogador se pronunciou sobre o episódio, alegando ingenuidade ao confundir os papéis de diretor e torcedor. Disse que estava se dirigindo a um camarote que mantém no estádio do Caxias no momento do pênalti não marcado para justificar a intervenção junto à comissão do adversário dos botafoguenses. “A coincidência temporal dos acontecimentos, combinada com minha ligação ao clube, me fez realizar o erro”, escreveu em nota, se desculpando pela falta grave que cometeu.

Washington durou menos de três meses na diretoria de desenvolvimento do futebol brasileiro. Ele havia sido contratado em novembro, ostentando credencial bolsonarista valorizada pela atual gestão da CBF, que tem reforçado laços com o Governo Federal. O ex-jogador passou pouco mais de um semestre à frente da Secretaria Nacional de Esporte, vinculado ao Ministério da Cidadania. Os avalistas de sua incorporação foram os ministros Osmar Terra e Onyx Lorenzoni, a quem Washington (PDT-RS) substituiu como deputado suplente durante a transição de Governo. A nomeação foi criticada pela ala militar, bastante influente na área de políticas esportivas, e estourou a crise que descambou na exoneração do general Marco Aurélio Vieira.

Pela falta de investimentos na pasta e de lastro técnico para liderar projetos de fomento ao esporte, sua passagem pela secretaria deixou um legado de poucas ações concretas, que se resumiram a participações em seminários e eventos, um deles a convite da CBF, antes de ser contratado pela confederação. Como experiência prévia em postos de gestão, Washington exibia no currículo a função, exercida por dois anos, de Secretário de Esportes em Caxias, onde também era vereador. Depois de aceitar o convite de Terra e Lorenzoni, foi desfiliado do PDT, partido de oposição ao Governo, mas sustentou sua escolha por compartilhar “ideais de ética e honestidade com Bolsonaro”.

A pataquada de Washington expõe como a entidade máxima do futebol nacional arquiteta seu círculo de comando. Apesar da administração capitaneada por Rogério Caboclo, sucessor de Marco Polo Del Nero, José Maria Marin e Ricardo Teixeira, cartolas indiciados por corrupção, pregar normas regidas por compliance e governança corporativa, os métodos de seleção de nomes para a diretoria ainda são arcaicos, baseados em relações e cálculos políticos. Isso explica a absorção de figuras alheias ao esporte, como o empresário Fernando Sarney e o ex-deputado Marcus Vicente, vice-presidentes da entidade, e o deputado federal Marcelo Aro (PHS-MG) e o ex-deputado estadual Gustavo Perrella, que ocupam, respectivamente, as diretorias de relações institucionais e projetos estratégicos.

Embora o discurso oficial se empenhe em vender uma instituição moderna, a CBF ainda carrega a essência imposta pelos velhos cartolas, que sempre prezaram mais por bons relacionamentos —especialmente com o poder público— que pela adoção de critérios técnicos em prol do desenvolvimento do futebol. O Coração Valente escancarou o corpo apodrecido de um sistema que mantém vícios sob nova roupagem, a ponto de se submeter ao constrangimento de um diretor que desconhecia os limites da própria função.

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