O curioso caso do Coronel Nunes, um presidente decorativo sob pressão na CBF
Isolado pela própria entidade que comanda, o cartola militar retorna da Rússia ainda mais desprestigiado em sua posição de presidente decorativo
Pela primeira vez desde a ditadura, o Brasil disputou a Copa do Mundo sob a gestão de um cartola militar: Coronel Nunes, ex-oficial da Força Aérea Brasileira (FAB) e da Polícia Militar. A última havia sido em 1978, há quatro décadas, com o almirante Heleno Nunes, quando o país era presidido pelo general Ernesto Geisel. Em comum entre as duas participações, um resultado frustrante para a seleção brasileira. Porém, ao contrário de quarenta anos atrás, o atual chefe da confederação só exerce sua autoridade pela patente. Ele volta da Rússia da mesma forma que viajou para acompanhar o Mundial: como um presidente decorativo, mas de boca fechada e mãos atadas pelos dirigentes que, em tese, seriam seus subordinados.
Antônio Carlos Nunes de Lima, conhecido como Coronel Nunes, tem 80 anos e preside a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) desde 2017. Chegou ao poder graças a uma manobra de Marco Polo Del Nero, banido do futebol após o escândalo de corrupção da FIFA, que nomeou ao cargo o mais velho dentre os oito vices da entidade. Nunes nunca teve autonomia para dar as cartas. Seu reinado, que tem data para terminar – em abril do ano que vem ele passará o bastão para Rogério Caboclo, eleito a partir de uma mudança no estatuto da CBF contestada na Justiça –, representa um constrangimento para a confederação, que se empenha em escondê-lo até a virada de gestão.
Entretanto, mesmo relegado a uma ascendência meramente institucional, o coronel mostrou na Copa que pode fazer estragos a já arranhada imagem da CBF. Como cartão de visitas em solo russo, quebrou o acordo entre os países da Conmebol que apoiavam a candidatura de Canadá, Estados Unidos e México e, por conta própria, votou no Marrocos para sediar a Copa de 2026. Pensou que o voto era secreto, mas, quando se atentou que a votação tinha sido divulgada ao público, explicou sua escolha pelo critério de simpatia e pelo fato de o país africano nunca ter organizado um Mundial. O voto à revelia da confederação causou um incidente diplomático com a Conmebol, onde Nunes exerce cargo no Conselho e recebe cerca de 75.000 reais por mês.
Antes, o presidente em exercício da CBF já havia cometido deslizes em conversas com jornalistas. Disse que a FIFA podia preparar a taça para o Brasil, se esqueceu de que a seleção ganhou uma Copa no continente europeu e confundiu o Mar Negro com o Mar Vermelho. As gafes e a blindagem dos dirigentes não o impediram de protagonizar nova confusão ainda na primeira semana de Copa. Em São Petersburgo, um assessor do coronel quebrou um copo na cabeça de um torcedor que havia provocado seu chefe: “Só mamando, né?”, debochara o homem que acabou agredido dentro de um restaurante. O assessor foi mandado de volta ao Brasil pela CBF.
Desde então, Nunes foi totalmente interditado pela confederação. Enclausurado em um hotel de luxo em Moscou, ele se absteve de comparecer a tribunas de honra e eventos oficiais, em que Caboclo e Fernando Sarney, um dos vices da CBF, passaram a representar a instituição. De tão embaraçosa, a situação do coronel que comanda —mas não manda— soa como um conto de realismo fantástico. Em Cem Anos de Solidão, obra-prima de Gabriel García Márquez, o patriarca da família Buendía precisou ser amarrado em uma árvore diante da impossibilidade de convívio social pelo grau avançado de demência. No caso de Nunes, embora demonstre sinais de saúde fragilizada pela idade, como o episódio em que passou mal num voo da delegação no ano passado, a moção velada de censura se deve à absoluta falta de traquejo com a liturgia da alta cartolagem. Representantes de atletas relatam que o presidente mal sabia os nomes dos 23 convocados de Tite. Em suas tentativas de entrosamento forçado nos treinos, chegou a confundir Taison com Fernandinho e a chamar Fagner de "Vagner".
Já em seu currículo no futebol, por onde se enveredou depois de ter colaborado com o regime militar na região Norte do país, o coronel ostenta passagem pelos bastidores do Paysandu e quase duas décadas à frente da Federação Paraense de Futebol. Tal qual os antecessores na CBF, também é investigado por supostos desvios de dinheiro. O Ministério Público do Pará apura como foi empregada a verba pública de aproximadamente 3,5 milhões de reais recebida pela federação que ele dirigia.
Após a eliminação do Brasil para a Bélgica, o coronel saiu às pressas do estádio em Kazan, amparado pelo presidente da Comissão de Médicos da CBF, Jorge Pagura, e por uma bengala. Arrastado para o veículo que o levaria ao hotel, dessa vez nem teve tempo de compartilhar suas impressões com os repórteres. Foi o último membro da delegação brasileira a deixar a Rússia nesta semana e, apesar do virtual poder que a função lhe confere, não deve participar tão cedo das decisões sobre o futuro da seleção, como a possível renovação de contrato do técnico Tite. Enquanto temem um novo impulso de despotismo do coronel, a exemplo do voto em Marrocos no Congresso da FIFA, dirigentes ao seu redor ensaiam uma maneira de antecipar sua saída, que pode ser facilitada por eventual sanção da Conmebol pela traição à candidatura tríplice dos países da América.
Em 2014, logo em seguida ao fracasso brasileiro contra a Alemanha, o então coordenador Carlos Alberto Parreira leu mensagem atribuída a uma tal de “Dona Lúcia” – autora que jamais foi identificada – em apoio incondicional ao técnico Felipão. Agora, diferentemente de quatro anos atrás, não houve nem sequer uma carta alentadora endereçada ao Coronel Nunes. Sua performance na Rússia escancarou a deterioração dos poderes na CBF, que tem um ex-presidente preso, outro indiciado e o último banido sob acusações de corrupção, além do mandachuva improvisado amarrado pelo pescoço, mas incontrolável no expediente de meter os pés pelas mãos.
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