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OPINIÃO
Texto em que o autor defende ideias e chega a conclusões basadas na sua interpretação dos fatos e dados ao seu dispor

A cínica homenagem do Vasco ao cartola que serviu à ditadura

Coronel Nunes, dirigente da CBF que usufrui do poder no futebol há mais de 20 anos, foi condecorado com o título de sócio benfeitor do clube carioca

Coronel Nunes (à esq.) recebe título de benfeitor vascaíno de Alexandre Campello.
Coronel Nunes (à esq.) recebe título de benfeitor vascaíno de Alexandre Campello.Leandro Lopes (CBF)
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Existem basicamente duas formas de uma instituição reverenciar um cidadão. A mais racional é pela notoriedade, seja por serviços prestados ou por personificar suas bandeiras institucionais. A outra, um tanto discutível, é por conveniência e interesses. Na última terça-feira, o Vasco da Gama, por meio de seu presidente Alexandre Campello, aproveitou a visita à Confederação Brasileira de Futebol (CBF) para prestar homenagem ao Coronel Nunes, mandatário da entidade que substitui, de forma decorativa até passar o bastão ao recém-eleito Rogério Caboclo, o investigado Marco Polo Del Nero, banido pela FIFA após denúncias de corrupção no cargo.

O dirigente da CBF recebeu o título de sócio proprietário benfeitor do clube, uma honraria concedida a torcedores ilustres, personalidades e apoiadores. Durante as gestões de Roberto Dinamite, ex-jogadores que levantaram taças memoráveis pelo Vasco, como Felipe, Pedrinho, Juninho Pernambucano e Edmundo, foram agraciados com o título. No mesmo período, vascaínos pouco atuantes, porém célebres, a exemplo da apresentadora Fátima Bernardes e do cantor Roberto Carlos, receberam a distinção. Dinamite ainda homenageou o então governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, que sonhava ser presidente do clube, mas hoje, preso, acumula penas de 87 anos pelos crimes de corrupção, organização criminosa e lavagem de dinheiro.

Voltemos ao Coronel Nunes. Ele se diz vascaíno, mas também torce pelo Paysandu, de Belém. Comandou por quase duas décadas a Federação Paraense de Futebol, de onde só saiu para se dedicar à presidência da CBF após uma manobra política que resguardou o círculo de poder de Del Nero. Com uma série de gafes no currículo e parcos conhecimentos sobre gestão do futebol, raramente se expõe ao público e à imprensa. Aos 80 anos, já comparou a confederação a uma unidade militar. Na época da ditadura, como oficial da PM, colaborou intensamente com as atividades do regime militar no Norte do país. Apesar de ter sido um fiel escudeiro dos governos ditatoriais, o Coronel Nunes, segundo revelou a reportagem da Agência Pública, em 2016, recebe cerca de 15.000 reais mensais como anistiado político da Força Aérea Brasileira, onde serviu antes de integrar a polícia.

Nesta quinta-feira, o Vasco joga pela Copa Libertadores contra o Racing, que, há algumas semanas, se juntou a vários clubes de futebol para cobrar o julgamento de militares responsáveis pelos crimes de tortura e assassinatos durante a ditadura na Argentina, lembrando os 42 anos do golpe de Estado liderado pelo general Jorge Videla. Já o time carioca, quase 50 anos depois do AI-5, decreto que acirrou a violenta repressão militar no Brasil, resolveu agradar um reconhecido homem de confiança da ditadura, que nunca se mostrou relevante como personalidade do futebol tampouco ostenta uma ficha corrida de serviços prestados ao clube. O fez meramente por conveniência, se curvando à pequena política da cartolagem e contrariando sua origem democrática.

O Vasco, que completa 120 anos em agosto, foi fundado por imigrantes portugueses e se tornou pioneiro ao abrir portas para negros e operários. A homenagem ao Coronel Nunes, chancelada pelo Conselho, é uma afronta à história do clube, tal qual a última eleição que levou Campello ao poder graças ao arranjo político orquestrado por Eurico Miranda. A diretoria cruzmaltina ainda não se pronunciou para justificar a concessão do título ao cartola da CBF. Hoje à noite, na Argentina, dois dos times mais tradicionais da América do Sul estarão frente a frente. Mas apenas o Racing foi capaz de levantar a voz contra os fantasmas da ditadura que tanto sangue derramou pelo continente. Ainda que vença no campo, o Vasco já amarga um vergonhoso revés no duelo institucional.

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