O ‘golpe político’ que deu a Eurico Miranda uma inesperada sobrevida no Vasco
Patrono da velha guarda dos cartolas brasileiros emplaca manobras nos bastidores e se beneficia de traição entre adversários para seguir influente em São Januário
Dois candidatos unem forças para desbancar a situação. Depois de uma eleição marcada por acusações de fraude, a Justiça decreta, enfim, a vitória em primeiro turno da oposição. Porém, na hora H, o vice da chapa ganhadora rompe a coalizão, se lança como concorrente do antigo aliado no segundo turno e fatura o pleito em um roteiro que poderia se aplicar perfeitamente à política brasileira ou ao seriado House Of Cards. A trama em questão envolve o triunfo de Alexandre Campello sobre Julio Brant na eleição presidencial do Vasco da Gama. Mas, embora derrotado na votação dos sócios, o agora ex-presidente Eurico Miranda sai de cena com ares de vencedor. Pois, quando muitos já davam como encerrada sua longínqua trajetória como mandachuva do clube carioca, o mais notório representante da velha guarda da cartolagem nacional tirou da cartola uma saída bem ao seu estilo: um “golpe político”.
Para entender a cartada final de Eurico, primeiro é preciso entender como funciona o processo eleitoral no Vasco. A eleição para presidente é indireta. Inicialmente, os sócios do clube votam nas chapas, sendo que a vencedora tem direito de indicar 120 integrantes para o Conselho Deliberativo, enquanto a chapa perdedora nomeia 30. Esses 150 novos conselheiros se juntam a outros 150, os beneméritos, para então escolher o presidente. Jamais, ao longo dos 119 anos do Vasco, a chapa com maioria no virtual primeiro turno havia deixado de eleger o novo mandatário cruzmaltino. Mas essa escrita mudou justamente na última sexta-feira.
Após sua chapa ter sido declarada vencedora na eleição dos sócios pela Justiça, que impugnou uma das urnas por suspeitas de fraude, Julio Brant pintava como favorito para assumir a cadeira de Eurico Miranda, então candidato à reeleição. Com a decisão judicial desfavorável, Eurico se viu fragilizado e decidiu abrir mão da candidatura, mas não do poder de influência que goza em São Januário. Na véspera da eleição do Conselho, ele retirou de forma estratégica o recurso impetrado no Superior Tribunal de Justiça pela validação da urna contestada nos tribunais, dando a entender que havia entregado os pontos. No mesmo dia, Alexandre Campello, que se dizia opositor de Eurico e se tornara vice da chapa de Brant para derrotá-lo, anunciou o rompimento da aliança. Apesar da gritaria de seus antigos correligionários, que, apoiados por ex-jogadores vascaínos como Edmundo e Felipe, denunciaram uma tentativa de golpe na eleição, Campello foi o escolhido da maioria dos conselheiros.
Novo presidente do Vasco, Campello venceu o pleito não só sem ter sido o cabeça de uma das chapas escolhidas na primeira votação, mas também com a bênção da chapa perdedora, contrariando a decisão majoritária dos sócios. A manobra orquestrada por Eurico Miranda encontra amparo no estatuto do clube, embora seu desfecho seja encarado até por alguns beneméritos euriquistas como um golpe político. Campello nega que a artimanha eleitoral tenha sido combinada com o antigo presidente a quem se opunha. No entanto, durante o anúncio do resultado da eleição no Conselho, o nome mais aclamado foi o de Eurico, como se ele tivesse vencido mesmo sem ter concorrido. “O que aconteceu aqui foi uma vergonha”, bradou Julio Brant após a derrota inesperada. “Uma mancha na história do clube. O desejo do sócio foi desrespeitado, isso jamais tinha acontecido. O Vasco, que se diz democrático, deu um exemplo muito ruim para a sociedade brasileira.” Chamado de golpista por ex-aliados e torcedores que protestaram contra sua eleição, Campello justificou a traição dizendo que fora traído primeiro ao não ser ouvido por Brant depois da vitória diante dos sócios. “Não fiz acordo nenhum com o Eurico. Tenho quatro anos para provar isso.”
A perpetuação do ‘euriquismo’
Eurico Miranda é figura influente no Vasco desde o fim dos anos 60. Antes de atingir o cargo máximo no clube, cumpriu várias funções onde acumulou polêmicas – como em 1969, quando, então vice de patrimônio, foi acusado de desligar os disjuntores de energia na tentativa de barrar o impeachment do presidente que apoiava. Assumiu o trono em 2000 e permaneceu no poder até 2008, ano em que acabou desbancado pelo ídolo Roberto Dinamite. Reassumiria o cargo seis anos depois, cravando com todas as letras que o clube nunca seria rebaixado sob seu comando. “O respeito voltou”, dizia. Chegou ao ponto de prometer se mudar para a Sibéria caso o Vasco caísse no Brasileiro de 2015. Caiu. Mas Eurico não cumpriu a promessa.
Foi fazendo promessa, por sinal, que ele conseguiu se eleger deputado federal pelo Rio de Janeiro por dois mandatos. Nenhuma proposta voltada especificamente para educação, saúde ou esporte. “Quero ser eleito para ajudar o Vasco”, era o seu mantra eleitoral. Como dirigente, se notabilizou pelo estilo rudimentar e centralizador. Em sua última administração, distribuiu cargos de confiança para os próprios filhos, a exemplo de Eurico Brandão, o Euriquinho, que ocupava a vice-presidência de futebol. Também mostrou seu viés antidemocrático ao proibir veículos de comunicação que o criticavam de frequentar São Januário e ordenar o bloqueio de torcedores insatisfeitos nas redes sociais do clube – política que Alexandre Campello promete rever em sua gestão. Eurico não escondia a inspiração recente no modo Donald Trump de governar. Alegando imitar as práticas do presidente dos Estados Unidos, se negava a responder perguntas fora do tema em suas entrevistas coletivas e qualificava críticos e opositores como “fake news”.
Sempre tratou acusações como intrigas da oposição. No pleito dos sócios, cantou vitória com a ajuda da “Urna 7”, onde angariou uma vantagem de 90% dos votos sobre a chapa de Julio Brant. A urna acabou impugnada na Justiça, que entendeu que a defesa de Eurico não apresentou provas suficientes para “espancar as dúvidas quanto à existência de eventual fraude a macular a eleição”. Em seus últimos dias de mandato, a gestão do cartola também foi acusada de negociar jogadores importantes do elenco abaixo do preço de mercado, renovar contratos de atletas pouco utilizados nas categorias de base e ainda de furtar objetos em São Januário, fato que gerou queixa-crime por parte de Brant. Para Eurico, tudo não passou de “fake news”.
Aos 73 anos, o dirigente apresenta saúde debilitada e nunca deu ouvidos a pedidos de familiares para que se afastasse do futebol, nem mesmo quando precisou tratar de um câncer no pulmão. Agora, sai do comando deixando ao sucessor uma dívida superior a 500 milhões de reais, um time esfacelado e salários atrasados. Porém, segundo sua autoavaliação, com o mesmo prestígio que motivou a reascensão em 2014. “Não há hipótese de eu ser derrotado no Vasco. Ainda vou durar muito tempo”, comemorou após o resultado da eleição. Enquanto Eurico se prepara para retomar a frente dos beneméritos, que lhe garante ao menos o status de eminência parda, Alexandre Campello tomou posse da presidência nesta segunda-feira com a missão de reerguer o clube rapidamente. A equipe estreia na Copa Libertadores em menos de 10 dias. Os dois primeiros jogos do ano, pelo Campeonato Carioca, aconteceram com portões fechados, já que o fim da era Eurico – ao menos no papel – fez com que o Vasco vivesse a insólita experiência de iniciar a temporada sem presidente.
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