Esportes vivem paralisia sem planos detalhados e nomeações travadas
Rebaixada de ministério a secretaria, política esportiva de Bolsonaro espelha modelo do regime ditatorial, com militares na linha de frente, engessada pela falta de autonomia
Esporte e política sempre andaram de mãos dadas. Da mesma forma, não é recente o envolvimento de militares com a prática esportiva. Afinal, eles estiveram à frente de sua instituição como política pública no Brasil quando o major João Barbosa Leite liderou a divisão de Educação Física, gestada nos quartéis do Exército e criada por Getúlio Vargas. Agora, no Governo de Jair Bolsonaro, o esporte volta a dar protagonismo ao comando militar, mas, paralelamente, assume um posto de coadjuvante com a perda de status entre as prioridades da administração federal, repetindo um modelo adotado nos tempos da última ditadura brasileira.
Assim como seis de seus 22 ministros, Bolsonaro designou um militar para chefiar o esporte. Colega do vice-presidente Hamilton Mourão na Academia Militar das Agulhas Negras, o general da reserva Marco Aurélio Vieira assumiu a Secretaria Especial do Esporte, rebaixada da condição de ministério e incorporada à pasta de Cidadania, que, capitaneada por Osmar Terra (MDB), ainda engloba as secretarias de Desenvolvimento Social e Cultura. Entre as metas, ainda não detalhadas, estão o incentivo ao esporte nas universidades, o estímulo de valores patrióticos por meio dos atletas e a massificação da prática esportiva, inspirada no Plano Nacional de Educação Física (PNED) lançado pelo regime militar em 1975.
Quando apresentou metas prioritárias para os primeiros 100 dias, o Governo Bolsonaro destacou apenas uma medida na área do esporte: “modernizar o programa para o estímulo de jovens atletas”. A tarefa não é das mais simples. No fim do ano passado, o Governo Temer cortou quase metade dos beneficiários do Bolsa Atleta, a maioria deles esportistas jovens, em início de carreira. Desde a Olimpíada, o programa tem perdido recursos na pasta – caiu de 140 milhões de reais por ano, em 2016, para os atuais 54 milhões. A meta da Secretaria do Esporte é praticamente dobrar o orçamento do Bolsa Atleta, chegando a pelo menos 100 milhões anuais. Se, por um lado, o ministro Osmar Terra prometeu no discurso de sua posse “privilegiar os esportes de base para garantir um número maior de atletas e descobrir talentos”, por outro, a pasta tem o desafio de lutar por autonomia que lhe garanta mais verbas para investimentos diante de um orçamento que hoje corresponde a pouco mais de 1% (1,5 bilhão de reais) do gasto na Saúde (130 bilhões).
Enquanto a Loteria Esportiva sustentava boa parte das políticas esportivas da ditadura militar, o atual governo pretende aprimorar a Lei de Incentivo ao Esporte e usar recursos de estatais para financiar o Bolsa Atleta. Uma delas a Caixa Econômica Federal, que cortou patrocínios a clubes de futebol. No entanto, a corrida de obstáculos por financiamento a novos projetos promete ser longa. Além do esporte não figurar como uma prioridade para Bolsonaro, não há interlocução entre a Secretaria e o presidente. As demandas passam por Osmar Terra, que, por sua vez, dedica seu foco à gestão de programas sociais como o Bolsa Família.
A submissão a um ministro de perfil político e pouco afeiçoado às minúcias do esporte tem atravancado as pautas da Secretaria. Dezenas de nomeações estão pendentes há mais de dois meses, a exemplo de Ronaldo Lima, que cuida dos assuntos do futebol de maneira remota, no Rio de Janeiro. Ainda sem equipe fechada, nenhum plano ou projeto da pasta foi detalhadamente divulgado, um quadro semelhante ao que está passando o Ministério da Educação, comandado por Ricardo Vélez. Procurada pelo EL PAÍS, a Secretaria informou que os trabalhos estão em andamento, mas só vai detalhar o planejamento de cada setor depois de oficializar todas as nomeações de subsecretários. Em reunião recente na Comissão do Esporte, o ex-nadador e deputado federal Luiz Lima (PSL-RJ) criticou a paralisia e a falta de autonomia da Secretaria. “Não temos tido um bom início de governo no esporte”, disse o parlamentar da base de apoio a Bolsonaro na Câmara. “Quando o ministério da Cidadania abraçou cultura e esporte, criou-se um Frankenstein. A Secretaria parece uma casa fantasma. Não tem ninguém. O secretário não pode ser submisso ao Osmar Terra. Precisa ter independência.”
Reivindicação que também era recorrente do esporte sob a ditadura, que, apesar de converter os louros dos atletas em propaganda, não conferiu papel de destaque à política esportiva. Na época, o Conselho Nacional de Desportos era vinculado ao Ministério da Educação. Uma força-tarefa constatou, em 1973, a necessidade de autonomia administrativa e financeira do órgão. Porém, somente em 1995, com o Brasil redemocratizado e já no Governo FHC, o esporte ganhou status de ministério. Uma medida que, por si só, não resolveu os dilemas historicamente vividos na área governamental. Indicações políticas se tornaram uma regra no Ministério do Esporte, influenciadas, em muitos casos, pela bancada da bola ligada à CBF. Desde que a pasta se desvinculou do Turismo, em 2003, apenas Ricardo Leyser, interino por dois meses, tinha perfil técnico entre os sete ministros que passaram pelo cargo.
Nos tempos do regime militar no Brasil, o esporte estava a cargo do Conselho Nacional de Desportos, que tornou aulas de educação física obrigatórias em escolas e universidades, visando que as competições ajudassem a dispersar atividades políticas opositoras à ditadura. Antes, o regime já havia se apropriado da modalidade mais popular do país. Idealizou o Campeonato Brasileiro de futebol, disputado pela primeira vez em 1971. Com ele, popularizou-se também a Loteria Esportiva, em que os torcedores faziam apostas em resultados de jogos a cada rodada. Cerca de 30% da arrecadação líquida do concurso era destinada a bancar o PNED. A fonte de financiamento da política esportiva ditatorial secou a partir de 1982, depois que a Loteria Esportiva foi desmoralizada por uma denúncia de fraudes e manipulação envolvendo dirigentes, árbitros, técnicos e jogadores revelada pela revista Placar.
Mas era no âmbito da seleção brasileira que o regime capitalizava com sua associação ao esporte – por consequência, a instituição que mais sofreu intervenção dos militares. Os recursos da Loteria Esportiva irrigaram por muitos anos as contas da Confederação Brasileira de Desportos (CBD) – atual CBF –, que, presidida por João Havelange, esteve alinhada ao governo. Com apelos ufanistas, o general Emílio Garrastazu Médici colou sua imagem à da seleção e utilizou o triunfo na Copa de 1970 para propagar ideais nacionalistas em um dos períodos mais violentos da ditadura. Ingerências no time se tornaram uma constante. Primeiro, com a imposição para convocar Dadá Maravilha, que resultou na demissão do técnico João Saldanha. Depois, já sob o comando do almirante Heleno Nunes, homem de confiança da ditadura, a CBD alçou Cláudio Coutinho, capitão do Exército, a treinador da seleção, barrou Reinaldo, que descumpriu ordem do general Ernesto Geisel para não comemorar gols com o punho em riste na Copa de 1978, e banalizou o expediente de impor nomes à comissão técnica.
Dirigentes de clubes questionavam o loteamento de cargos no alto escalão do esporte com militares de pouco traquejo na área. Em 1977, o então presidente do Fluminense, Francisco Horta, afirmou que eles deveriam voltar para os quartéis e deixar o futebol na mão dos mais capacitados. Além do almirante Heleno Nunes e do capitão Cláudio Coutinho na CBD, o Conselho Nacional de Desportos era tocado por uma junta militar conduzida pelo brigadeiro Jerônimo Bastos. Apesar da conquista em 70, a seleção amargou decepções em outras Copas na vigência da ditadura, como o fiasco em 66 e a tragédia do Sarriá, em 82. Apesar de seguir revelando craques, o futebol brasileiro tinha dificuldade de se impor em torneios internacionais. Durante os 21 anos do regime, apenas três clubes do país (Cruzeiro, Flamengo e Grêmio) foram campeões da Copa Libertadores, enquanto o almirante Heleno Nunes inchava o Campeonato Brasileiro a troco de apoio político para a Arena, o partido de sustentação da ditadura.
No ano passado, o Brasil voltou a disputar uma Copa sob a gestão de um cartola militar. Coronel Nunes, ex-oficial da Força Aérea Brasileira (FAB) e da PM, substituiu Marco Polo Del Nero, banido pela FIFA por denúncias de corrupção. Após um mandato marcado por gafes, ele deixará a presidência da CBF em abril, passando o bastão para o advogado e empresário Rogério Caboclo, que também preside o Comitê Organizador da Copa América. Em encontros com cartolas da CBF, integrantes da Secretaria do Esporte garantiram que, apesar da ascensão de militares, o Governo não adotará uma postura intervencionista na entidade como nos tempos do regime.
Os primeiros sinais, inclusive, são de afinidade. Escolhido para chefiar o setor de futebol da Secretaria, o coronel reformado do Exército, Ronaldo Lima, já trabalhou na CBF e tem bom trânsito com dirigentes da confederação. Aristeu Leonardo Tavares, coronel reformado da PM e ex-chefe da comissão de arbitragem da CBF, também havia integrado a Secretaria como coordenador de Defesa dos Direitos do Torcedor, mas pediu para ser exonerado. “Vamos trabalhar em parceria com a CBF nos projetos que agregam esporte e cidadania”, afirmou o secretário Marco Aurélio Vieira durante uma visita de cortesia à entidade, em janeiro. No mês anterior, Bolsonaro havia aceitado um convite da CBF para assistir o jogo do título do Palmeiras no Allianz Parque. O presidente não só entrou em campo para erguer a taça, como deu a volta olímpica com os jogadores campeões.
Militares na gestão do esporte
Embora militar, Marco Aurélio Vieira é experimentado em funções que envolvem a gestão esportiva. Cuidou da diretoria de operações na organização dos Jogos Olímpicos no Brasil, depois de dirigir a Educação Superior Militar, onde foi acusado, juntamente com o general Hamilton Mourão, de favorecer uma empresa espanhola em licitação – a denúncia foi arquivada pelo Ministério Público Militar. Para contrapor a escassez de recursos na Secretaria, uma das estratégias de Vieira é tentar aproveitar sua influência com a ala militar do Governo para blindar a pasta de indicações políticas e, em outra ponta, estreitar parcerias com o Ministério da Defesa, que, via Forças Armadas, banca dois projetos voltados ao esporte. Um para atletas de base, disponibilizando instalações militares à iniciação esportiva de crianças e adolescentes de baixa renda, e outro para atletas de alto rendimento.
Na Olimpíada de 2016, 145 atletas militares, que são contratados para competir pelas Forças Armadas, como a judoca Rafaela Silva e o ginasta Arthur Zanetti, integraram a delegação brasileira e conquistaram 13 das 19 medalhas obtidas pelo país. Por causa do vínculo, eles celebraram os feitos batendo continência no pódio. Quase 20 milhões de reais são investidos anualmente no programa. “A ideia é incrementar esses programas, principalmente o de assistência social”, diz Marco Aurélio Vieira, que enxerga o ministro da Defesa como um aliado na missão pelo esporte. O general Fernando Azevedo e Silva também trabalhou na organização dos Jogos Olímpicos, como presidente da Autoridade Pública Olímpica, ligada ao antigo Ministério do Esporte. Ele frequentou a mesma escola de Bolsonaro no Exército, onde disputavam partidas de vôlei e provas de pentatlo.
Outro ministro próximo de Vieira é o general Augusto Heleno, chefe do gabinete de Segurança Institucional, que foi diretor do Comitê Olímpico Brasileiro (COB) por seis anos durante a gestão de Carlos Arthur Nuzman. O COB, por sinal, foi a primeira entidade do esporte a ser comandada por um militar: o major Sylvio de Magalhães Padilha presidiu o comitê entre 1963 e 1988. Apesar da patente, Padilha, que assumiu o cargo antes do golpe militar, se opunha à interferência do Governo nas federações esportivas. Atualmente, a vice-presidência do COB é ocupada por um coronel da reserva do Exército, Marco Antônio La Porta.
Em que pese medidas simbólicas, como a execução do hino nacional antes de reuniões da Secretaria instituída nesta gestão, a militarização do esporte no Governo se depara com uma realidade de barreiras e corte de gastos num ano-chave do calendário de alto rendimento. O atraso em nomeações e a falta de clareza do planejamento preocupam atletas, clubes e federações. Em junho, as seleções masculina e feminina de futebol, ambas criticadas pelo desempenho em campo, disputarão a Copa América – que acontece no Brasil – e a Copa do Mundo, respectivamente. No mês seguinte ocorrem os Jogos Pan-Americanos, no Peru, que servem de preparação para a Olimpíada de Tóquio, em 2020. A menos de três meses do início das competições, o novo comando do esporte não estabelece prazos para destrinchar planos capazes de elevar o país ao tão sonhado patamar de potência esportiva mundial.
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