O dedo da CBF no vexame da Libertadores
Sentimento de derrota coletiva diante da suspensão de River e Boca condiz com a certeza de que o Brasil não está imune à barbárie nem ao despreparo de cartolas e autoridades
Não havia a menor possibilidade do Boca Juniors entrar em campo depois de sofrer um atentado de torcedores do River Plate, que recepcionaram o ônibus da delegação rival com garrafas, pedras e toda sorte de artefatos para a esperada final da Copa Libertadores. Mas, em meio ao caos estabelecido no Monumental de Núñez, quatro homens decidiram que um jogo de futebol vale mais que a integridade física e psicológica dos protagonistas do espetáculo. Chefiados pelo paraguaio Osvaldo Pangrazio, os doutores da Conmebol, incluindo Jorge Pagura, presidente da Comissão de Médicos da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), entenderam que os ferimentos sofridos por jogadores do Boca não justificariam o adiamento da partida.
“Consideramos que, do ponto de vista médico, não existe motivo para a suspensão do encontro”, sentenciou o quarteto da Conmebol depois de constatar “lesões de pele superficiais em membros superiores, inferiores, faciais e tronco” nos atletas xeneizes. Os meias Gonzalo Lamardo e Pablo Pérez, capitão do Boca, precisaram de atendimento especializado fora do estádio, onde receberam o diagnóstico de lesões oculares devido as estilhaços dos vidros estourados no ônibus. Outros, como Tévez, Ábila e Villa, sentiram os efeitos do gás lacrimogênio que conferia traços sombrios à atmosfera do Monumental.
Porém, nada que sensibilizasse a comitiva de médicos responsável por preservar a saúde de todos os jogadores envolvidos na decisão. O laudo emitido depois do ataque desprezava, acima da ética profissional, um princípio básico da medicina: o olhar o humano. Mesmo que nenhum atleta tivesse sido fisicamente ferido, qualquer exame mais atento às imagens do apedrejamento concluiria, sem a necessidade de postergar por três horas o irremediável anúncio do adiamento da partida, que a equipe alvejada não reunia condições emocionais para disputar uma final após ser submetida a um estresse traumático sem precedentes.
O fato de médicos, que, em tese, deveriam se manter alheios às emoções irracionais desencadeadas pelo futebol, do gramado a seus nebulosos bastidores, encararem com normalidade o atentado que poderia ter tido proporções bem mais graves é apenas um indício de que a Libertadores se perdeu na falsa mística. Sua magia está na festa das arquibancadas, bandeirões, chuvas de papel picado, foguetório na entrada dos times, um por vez, para que o visitante receba a tradicional vaia da torcida local. Nada disso tem a ver com violência gratuita, ataque a ônibus, arremesso de bombas no gramado ou troca de pontapés entre jogadores.
Em busca de redefinir a identidade de seu principal torneio, Conmebol e confederações afiliadas oferecem a resposta mais simplista e higienista possível. Institucionalizam a infrutífera medida da torcida única – e, em alguns casos, até jogos sem torcida – e tentam copiar protocolos insossos do futebol europeu, como música tema para o perfilamento das equipes, como se a proximidade forçada desde o túnel dos vestiários fosse capaz de propagar o clima da santa paz no futebol, e a final em jogo único, desprezando as peculiaridades de um continente marcado por enormes abismos tanto no plano territorial como no socioeconômico.
Tentativas burocráticas de se camuflar a incapacidade de promover jogos que deveriam servir de pretexto para celebrações sem transformá-los, antes, em um festival de absurdos. Como os que antecederam os distúrbios da final em Buenos Aires: falhas no esquema de segurança, que permitiu o acesso do ônibus do Boca a vias lotadas de torcedores do River; excessos do policiamento local, que mais parecia atuar em um campo de guerra; falta de controle dos ingressos, a ponto de um líder barra brava dos millonarios ter sido preso às vésperas do jogo com várias entradas apreendidas, detonando o barril de pólvora que represava as crescentes tensões entre a polícia e torcidas organizadas argentinas.
Nada mais previsível que o resultado de um diálogo cheio de ruídos – isso quando conseguem estabelecê-lo – entre poder público, forças de segurança e entidades que regem o futebol. Nada mais óbvio que o desfecho apropriado para uma Libertadores que acabou se revelando um festival de arbitrariedades. Por anomalias no sistema de inscrição da Conmebol, os dois times finalistas utilizaram jogadores em situação irregular ao longo da competição. Marcelo Gallardo, treinador do River Plate, ignorou solenemente contra o Grêmio punição imposta por mau comportamento à beira do campo. Já diante do Independiente, o Santos perdeu pontos pela escalação de Carlos Sánchez, que, tal qual os atletas de Boca e River, jogou quando deveria estar suspenso. Apesar dos protestos, o time brasileiro não escapou de sanção, ao contrário dos argentinos.
Em confronto que selou a passagem do Boca às semifinais, o zagueiro Dedé, do Cruzeiro, se tornou o primeiro jogador da história da competição expulso nos jogos de ida e volta de uma mesma eliminatória. Sua primeira expulsão veio de uma conclusão equivocada da arbitragem após consulta ao VAR. Para fazer justiça, a Conmebol desprezou o próprio regulamento e anulou o cartão vermelho. No jogo seguinte, o defensor foi novamente expulso, dessa vez pelo árbitro uruguaio Andrés Cunha, que teve atuação contestada por cruzeirenses. Da mesma forma, revoltou jogadores do Grêmio na fase seguinte por chamar o VAR, depois de se omitir do mesmo expediente em lances duvidosos contra o Cruzeiro, em marcação de um pênalti que deu a classificação ao River Plate.
Como prêmio, Andrés Cunha ganhou o direito de apitar a grande final do torneio. Soa como um roteiro de conspiração contra o futebol brasileiro, mas a narrativa se desmonta ao deparar com a informação de que o presidente da Comissão de Arbitragem da Conmebol é o paulista Wilson Luiz Seneme, indicado ao cargo pela CBF. Dirigentes de clubes esperneiam, reclamam de favorecimento aos argentinos e insinuam até um boicote à Libertadores. No entanto, são reféns de um sistema que precisa ser demolido e refundado, em que instituições como CBF, AFA e Conmebol não inspiram a menor confiança, sobretudo após os escândalos de corrupção que implicaram seus lendários cartolas.
A prova definitiva foi dada no último sábado. Jogadores do Boca alegaram que estavam sendo pressionados pelos presidentes da FIFA e da Conmebol a ignorar as circunstâncias e subir ao gramado do Monumental de qualquer maneira. E, dos tantos motivos que dispunham para se recusar, um deles é bastante sintomático. Haviam sido medicados por causa dos ferimentos e inalação de gás, mas suspeitavam que pudessem cair no antidoping, pois não confiavam nas substâncias prescritas pelos médicos da Conmebol. Além de Pagura, também representavam a CBF no estádio seu futuro presidente, Rogério Caboclo, e parte dos diretores de alta plumagem da confederação.
Esse sentimento de derrota coletiva diante da suspensão de River e Boca condiz com a certeza de que o Brasil não está imune à barbárie nem ao despreparo de cartolas e autoridades. Já sabemos que, fosse a Libertadores decidida por um Corinthians x Palmeiras, um Fla-Flu, um Grenal ou um BaVi, e o ônibus de alguma das equipes terminasse apedrejado por torcedores rivais, ao menos do ponto de vista médico e sob o pragmatismo desumano da cartolagem, também não haveria motivo para a suspensão do encontro.
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