Em plena ditadura, a torcida Coligay mostrava a cara contra o preconceito
Pioneiro no futebol, o grupo gaúcho nascido há 40 anos reuniu torcedores do Grêmio e treinava até caratê para se defender de agressores homofóbicos
O ano de 1977 marcou o Brasil em várias frentes. A lei do divórcio foi instituída, a escritora Raquel de Queiroz tornou-se a primeira mulher eleita para a Academia Brasileira de Letras, e o país ganhou mais um Estado, o Mato Grosso do Sul. No mundo do futebol, outros dois fatos marcantes. Enquanto Pelé anotava seu último gol pelo Cosmos sobre o Santos, nascia também a primeira torcida brasileira exclusivamente gay. Incomodado com a falta de agitação nas arquibancadas, o cantor e empresário Volmar Santos resolveu fundar uma falange que chamasse a atenção não só por seus trajes, faixas, bandeiras e instrumentos, mas também pela ousadia de reunir torcedores homossexuais do Grêmio em plena ditadura militar. Assim, no dia 10 de abril daquele ano, surgia a Coligay.
A nova torcida organizada deu as caras na partida entre Grêmio e Santa Cruz-RS. O time da casa venceu por 2 x 1, mas o assunto mais comentado no estádio Olímpico naquele domingo de Páscoa foi o novo e barulhento grupo de adeptos tricolores. Gaúcho de Passo Fundo, Volmar era dono de uma boate em Porto Alegre, a Coliseu. Ela motivou o nome da torcida e servia como ponto de encontro para seus integrantes, antes e depois dos jogos. Além do espanto, o circuito da bola reagiu com repulsa ao movimento liderado por Volmar. Dirigentes, jogadores e membros de outras torcidas organizadas do Grêmio rechaçaram a Coligay, que, inicialmente, tinha cerca de 60 integrantes. Ciente dos riscos de declarar a homossexualidade, sobretudo em um terreno machista como o futebol, ainda no contexto da ditadura, o mentor da torcida bancava aulas de caratê para que seus seguidores pudessem se defender de eventuais ataques homofóbicos de rivais e das próprias facções gremistas. “A única vez que tivemos problema foi quando um cara atirou pedras em nossa direção. Mas rapidinho botamos o sujeito pra correr do estádio”, conta Volmar, hoje com 68 anos, que compôs até um hino exaltando sua legião.
Além das aulas de arte marcial, Volmar também financiava caravanas para os torcedores conhecidos como “coliboys” acompanharem as partidas pelo interior do Rio Grande do Sul. Vestindo túnicas, calças bem justas ou apetrechos espalhafatosos, os seguidores da Coligay chegavam fazendo barulho e atraíam olhares encabulados enquanto tomavam as arquibancadas. “Como frequentador assíduo de estádios, eu achava a torcida do Grêmio muito parada”, lembra Volmar. “O objetivo da Coligay era levar mais alegria e animação para os jogos, apoiando os atletas da equipe em todos os momentos.” Entusiasmo realmente não faltava à torcida, que ficou marcada por cantar o tempo inteiro durante as partidas, algo que só seria retomado no início dos anos 2000, com a aparição da Geral do Grêmio – uma organizada inspirada nas barras argentinas.
Com o tempo, a Coligay passou a ganhar mais membros – alguns deles dissidentes de outras organizadas – e simpatizantes. “Tinha muito jogador do Grêmio que frequentava a boate escondido”, diz o fundador, referindo-se à Coliseu. Telê Santana, técnico do tricolor gaúcho entre 1976 e 1978, costumava ir à boate de madrugada na tentativa de flagrar jogadores que escapavam da concentração. Mas, assim que tomava conhecimento da presença do treinador, Volmar escondia os fujões e agilizava a debandada pela porta dos fundos.
Como praxe do regime militar, Porto Alegre contava com uma Delegacia de Costumes, que monitorava as ações da Coligay através do setor de “meretrício e vadiagem”. Porém, a torcida nunca teve um membro preso por manifestar publicamente sua orientação sexual. A onda de repressão à homossexualidade, que incluía batidas policiais em locais frequentados por pessoas LGBT e detinha quem “atentasse contra a moral e os costumes vigentes”, como revelado pela Comissão Nacional da Verdade, não impediu os coliboys de demonstrarem toda sua irreverência nem mesmo quando o então presidente João Baptista Figueiredo, que era torcedor do Grêmio, fez uma visita ao Olímpico. Um integrante que vestia roupas cor de rosa conseguiu furar o bloqueio dos seguranças na tribuna de honra e se aproximou do general aos gritos de “João Baptista”, imitando a personagem Salomé, que ficou famosa no programa semanal da Rede Globo do humorista Chico Anysio.
Em várias ocasiões, a trupe da Coligay virava a noite na boate e emendava a farra no cortejo rumo ao estádio. O ritual e os cânticos de apoio incondicional se consolidaram ao longo do período mais glorioso da história do Grêmio. Menos de seis meses após o surgimento da torcida, o clube rompeu um jejum de oito anos sem títulos no Gauchão.
A fama de pé-quente da Coligay acabou chegando a São Paulo, e Vicente Matheus, folclórico presidente do Corinthians, convidou os coliboys para assistirem à final do Campeonato Paulista quando o Timão jogaria contra a Ponte Preta, no estádio do Morumbi. O time alvinegro também acabou quebrando um tabu depois de mais de 22 anos sem levantar taças, com um gol salvador de Basílio sobre o time pontepretano. De volta aos seus domínios no sul, a Coligay ainda presenciaria as conquistas gremistas de outros dois Campeonatos Gaúchos, um Brasileiro, uma Libertadores e um Mundial de Clubes, em 1983, ano em que a torcida encerrou suas atividades devido ao retorno de Volmar Santos à sua cidade natal.
Um dos poucos registros históricos sobre os seis anos de existência da torcida gremista é o livro “Coligay, tricolor e de todas as cores”, escrito pelo jornalista Léo Gerchmann e publicado pela editora Libretos, em 2014. Apesar da vida curta, a Coligay inspirou outras associações entre torcedores homossexuais, como a Flagay, do Flamengo, que foi criada em 1979 pelo carnavalesco Clóvis Bornay. Em 2013, grupos encabeçados pela Galo Queer, do Atlético Mineiro, tentaram articular movimentos semelhantes nas redes sociais. Entretanto, por medo de ameaças de torcedores organizados, nenhum deles marcou presença nos estádios como a Coligay. “É preciso mostrar o rosto para vencer o preconceito que ainda existe no futebol”, diz Volmar. “Mas, nos dias de hoje, parece ser ainda mais difícil que naquela época. A Coligay fez história. Espero que um dia os torcedores homossexuais sejam vistos com naturalidade no estádio.”
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