Rafaela Silva, uma campeã olímpica expõe o racismo institucional
Protesto da judoca após batida chama a atenção sobre como pessoas negras permanecem vulneráveis a abordagens discriminatórias da polícia
Não é de hoje que o racismo acompanha a trajetória ascendente de Rafaela Silva no judô. Em 2012, na Olimpíada de Londres, ela foi eliminada logo na fase prévia depois de aplicar um golpe irregular. A falha resultou em uma enxurrada de insultos racistas. Foi chamada de “macaca” nas redes sociais. Tamanho o abalo emocional pelas ofensas, quase desistiu do esporte. A volta por cima veio na Olimpíada do Rio, quatro anos mais tarde, quando conquistou o primeiro ouro para o Brasil nos Jogos. O fato de ser medalhista olímpica, atleta consagrada e bem-sucedida não a blindou de reviver velhos traumas com o episódio da última quinta-feira, que ela julga ter se tratado de uma abordagem discriminatória da Polícia Militar do Rio de Janeiro.
Em seu perfil no Twitter, Rafaela relatou que, ao voltar de táxi do Aeroporto Internacional Tom Jobim para sua casa, que fica em Jacarepaguá, foi abordada por uma viatura na Avenida Brasil. Durante a batida, segundo ela, o taxista alertou a um dos policiais que Rafaela “era aquela [atleta] do judô”, ao que o agente de segurança, então, teria respondido: “Ah, tá… Achei que tinha pego na favela”. Após ter sido, enfim, reconhecida pelos policiais, a judoca acabou liberada. No fim da sequência de postagens na rede social, Rafaela Silva questiona: “Até onde vai esse preconceito?”. Ela ainda publicou um vídeo no Instagram em forma de desabafo: “A gente no Rio de Janeiro tem que passar essa vergonha. Preto não pode andar de táxi, porque deve estar assaltando ou roubando?”.
Esse preconceito vai até aonde? 😰
— Rafaela Silva (@Rafaelasilvaa) February 22, 2018
Nesta sexta-feira, a assessoria da Polícia Militar divulgou um comunicado rechaçando as insinuações de preconceito da atleta: “As declarações da judoca Rafaela Silva de que teria sofrido constrangimento durante uma abordagem ao táxi em que viajava na quinta-feira à noite, na Avenida Brasil, são injustas e não ajudam o trabalho de combate à criminalidade. A Polícia Militar intensificou o policiamento preventivo nos principais corredores viários da Região Metropolitana para reprimir roubos de veículos e carga, adotando critérios técnicos e legais para cumprir sua missão de servir e proteger a sociedade”, afirma a nota da PM.
Rafaela nasceu e foi criada na Cidade de Deus, uma das maiores e mais violentas favelas do Rio de Janeiro. Antes de triunfar no judô, graças a um projeto social instalado na comunidade, ela conviveu de perto com a realidade que assola a população negra nas periferias. De acordo com dados do Mapa da Violência 2016, o número de negros assassinados no Brasil cresceu 18% em 10 anos, enquanto, no mesmo período, o índice entre pessoas não negras apresentou queda de 12%. A taxa de homicídios por 100.000 habitantes de negros é quase três vezes maior que a de brancos. No Rio de Janeiro, um jovem negro tem quatro vezes mais chances de ser assassinado pela polícia do que um jovem branco. Tanto que, nesta semana, o vídeo de um manual de sobrevivência para negros ao longo da intervenção militar no Estado viralizou na internet por analisar didaticamente a situação de vulnerabilidade da população negra.
Diante desse quadro, o historiador Luiz Carlos Ribeiro, da Universidade Federal do Paraná, enxerga como “extremamente importante” a manifestação de Rafaela Silva. “Muita gente já passou por constrangimentos semelhantes e diversos tipos de discriminação, inclusive outros atletas. O racismo não é apenas uma questão social, restrita aos pobres ou a quem mora nas favelas, mas sim um problema estrutural, que tem a ver exclusivamente com a cor da pele. Enquanto vítimas corriqueiras desse preconceito permanecem invisíveis, casos envolvendo personalidades do porte de uma atleta olímpica ganham repercussão muito maior. Ela teve coragem ao expor sua indignação”, afirma Ribeiro. Para ele, no entanto, abusos por parte das forças de segurança se encaixam em um contexto mais amplo. “Atos falhos do sistema, como uma abordagem policial seletiva, somente comprovam que a sociedade brasileira é racista. A polícia segue os padrões sociais e conserva o estereótipo de que a criminalidade está associada à pobreza e à cor da pele.”
No ano passado, o Comitê de Direitos Humanos da ONU denunciou a prática de seletividade étnica e racial em operações de busca e detenção no Brasil. O órgão recomendou que o Governo brasileiro adotasse medidas para prevenir abordagens de pessoas negras com base na aparência física, observando a necessidade de “intensificar os esforços para abolir a prática da filtragem racial e detenção arbitrária pela polícia e forças de segurança”. Mônica Oliveira, educadora da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase) e coordenadora da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco, entende que situações como a vivida pela judoca no Rio de Janeiro têm sido denunciadas há muito tempo por entidades de combate ao racismo, mas continuam sendo encaradas com normalidade por governos e autoridades. “A Rafaela sofreu uma manifestação explícita de racismo institucional, que está enraizado em todos os setores da sociedade brasileira. Nesse caso, qual é a atitude suspeita que se justificaria como causa provável para a abordagem? É notório que a polícia utiliza a clivagem racial para definir quem deve e quem não deve ser abordado”, afirma Oliveira.
A educadora cita o prestígio e a patente de Rafaela Silva, que, por causa de um programa do governo federal de incentivo a atletas em parceria com as Forças Armadas, também é terceiro sargento da Marinha, para sustentar que o racismo não vê medalhas ou distintivos, apenas cara e cor. “Mesmo quando a pessoa negra alcança a ascensão social, ela não consegue escapar do preconceito”, diz Oliveira. “Se esse tipo de manifestação racista ainda acontece com uma campeã olímpica, que dirá com outros milhares de negros que não têm a mesma visibilidade?”
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