A São Paulo pós-pandemia cobra dos aspirantes a prefeito mobilidade e emprego nas periferias
Desigualdade já existia antes da covid-19, mas ficou escancarada com o confinamento. ‘Home office’ das classes mais ricas se opõe ao transporte público, obrigatório para quem mora nas franjas da cidade
No dia a dia de Fernanda Pereira, 20, tudo é longe. Pouco antes das 5h, esta moradora do Jardim Nossa Senhora do Carmo, no extremo da zona leste de São Paulo, já está de pé. Para bater cartão às 9h na empresa onde trabalha como atendente na avenida Berrini, zona Sudoeste da cidade, ela precisa sair de casa às 6h. Quarenta minutos de ônibus até chegar à estação Arthur Alvim do metrô, duas baldeações até a estação Pinheiros, e finalmente o trem da CPTM com destino à Berrini. Para finalizar o itinerário, 10 minutos de caminhada. Antes da volta para casa, uma parada no Carrão, onde cursa a faculdade de pedagogia. Quando toca o sinal, mais 50 minutos de metrô e ônibus para chegar em casa às 23h. “Eu já chegava no trabalho muito cansada, reclamando muito. Voltava para a casa exausta também, chegava quase meia-noite, sendo que tinha ficado ao todo 6 horas do meu dia só no transporte público”, afirma a jovem, que desde o início da pandemia do coronavírus passou a trabalhar remotamente de casa, o conhecido home office.
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A antiga rotina de Fernanda expõe alguns dos principais problemas de São Paulo, bem como os maiores desafios a serem enfrentados pelo próximo prefeito da metrópole. Afinal, qual deveria ser o futuro dos espaços públicos? Do centro? E da mobilidade?
Concentração dos empregos e mobilidade
A região mais populosa da cidade fica na zona Leste, que abriga mais de 4 milhões de pessoas (ou 40% da população), mas aquilo que os urbanistas chamam de filé mignon da capital, que são as vagas de empregos formais e os principais equipamentos de lazer e cultura, estão nas regiões central e Sudoeste. Um levantamento da Neoway, empresa de Big Data e Inteligência Artificial, mostra que a maioria dos empregos formais da capital estão atualmente concentrados nos distritos do Morumbi (zona Oeste), Bela Vista (zona central), Vila Clementino (zona Sul), Centro e Pinheiros (zona Oeste). Por outro lado, os distritos mais populosos são o Grajaú, Jardim Ângela e Capão Redondo (na zona Sul), Sapopemba (zona Leste) e Brasilândia (zona Norte).
Nada disso é novo. “É um pacote de desigualdades territoriais que está instalado na cidade há décadas”, explica Danielle Klintowitz, urbanista e coordenadora geral do Instituto Pólis, uma organização da sociedade civil que discute o direito à cidade e outras questões sociais. “Concentrar empregos na região central e Sudoeste, a mais rica da cidade onde mora a população com mais renda, é uma situação insustentável”, diz.
Este pacote de desigualdades da cidade se mostrou fatal na pandemia: neste momento de crise as pessoas se dividem entre o desemprego e a necessidade de atravessar a cidade para trabalhar usando o transporte público. “Muitas regiões periféricas apresentaram número de óbitos maior pela covid-19. O que observamos é que não é apenas o habitat, a falta de acesso à água e saneamento básico que influencia esses dados, mas a questão da mobilidade contribuiu muito também”, afirma Klintowitz. Uma pesquisa da Universidade Federal de São Paulo apontou uma relação direta entre o uso do transporte público e as mortes pela doença: dos dez bairros com mais mortes provocadas pelo novo coronavírus, nove são recordistas no número de viagens em ônibus, trem ou metrô. “Havia um discurso quando a pandemia chegou de que ela seria democrática, que atingiria a todos de forma igual. Mas os urbanistas já diziam que isso não era verdade. A desigualdade territorial se impôs, e a população periférica e negra foi a mais atingida”, diz a coordenadora do Pólis.
Home office escancara desigualdade
O próprio home office adotado por Fernanda é uma realidade para muito poucos. Nas periferias é quase inexistente. No Estado de São Paulo, apenas 16,6% da população ocupada, cerca de 3 milhões de pessoas, estava trabalhando remotamente em julho, segundo a Pnad Covid do IBGE. A média nacional é ainda menor: 10%. “O mercado de trabalho brasileiro foi caminhando nos últimos anos para o aumento da informalidade, para trabalhos mais precários que geram menos renda e que exigem menos qualificações. Eles estão inseridos em determinadas atividades, como serviços e agricultura, que exigem a presença física. Não permite um trabalho de casa”, diz o economista Rodolpho Tobler, da FGV. De cada 10 trabalhadores que adotaram o trabalho remoto, oito possuem empregos formais. E a grande maioria desse grupo tem ensino superior ou pós-graduação. “A pandemia evidencia essa desigualdade no mercado e não há uma perspectiva de melhora no curto prazo. O home office poderia facilitar a vida dos trabalhadores de baixa renda, que são os que gastam mais horas no deslocamento ao trabalho, mas o sistema remoto fica concentrado nos setores em que estão inseridos os trabalhadores de renda alta”, diz.
A XP, uma das maiores instituições financeiras do país, foi uma das empresas brasileiras a adotar o modelo de home office desde o início da pandemia e planeja oferecer a possibilidade de trabalho remoto de maneira permanente a seus 2.700 funcionários. “Já somos uma empresa 100% digital, sem a dependência de o cliente nos visitar em uma ‘agência’”, explica Guilherme Sant’Anna, sócio e responsável pela área de Gente & Gestão da XP. A proposta é que os funcionários trabalhem de qualquer ponto do Brasil ou do exterior.
A possibilidade dada por algumas empresas para que seus funcionários pudessem trabalhar de casa no momento em que o isolamento social foi mais severo acabou blindando do desemprego os trabalhadores mais qualificados e, ao mesmo tempo, aumentou a disparidade entre ricos e pobres. Quase 70% dos empregos perdidos no segundo trimestre deste ano foram informais. Antes da pandemia do coronavírus, cerca de 40% dos postos de trabalho no Brasil eram sem carteira. “Os que mais perderam sua ocupação nessa crise são os trabalhadores de renda mais baixa, os informais, que precisavam sair de casa. Como os de renda alta foram preservados, houve uma distorção no meio da crise, a média salarial nacional aumentou”, aponta Tobler.
Cidade de 15 minutos
A pandemia colocou estas questões no holofote: trabalho, renda, moradia, saúde, educação, tempo, mobilidade e desigualdade. São Paulo não é a única grande cidade a ter que lidar com este desafio. Na América Latina e na Europa gestores tentam aproveitar o momento de crise para repensar como uma cidade deve ser e se organizar com a finalidade de garantir condições de vida adequadas à população: é a cidade como laboratório urbano. A prefeita de Paris, Anne Hidalgo, por exemplo, foi reeleita no final de junho com uma proposta ousada: implementar a “cidade de 15 minutos”. A ideia é que esse seja o tempo necessário para que os parisienses tenham acesso caminhando ou pedalando a tudo o que precisam, seja trabalho, lazer, serviços e compras. Para priorizar a mobilidade ativa― bicicletas e trajetos feito a pé ― ela ampliou a malha cicloviária e pretende fechar várias ruas para carros, garantindo a segurança e a agilidade de pedestres e ciclistas. Hidalgo também investiu na construção de moradias populares e tem se esforçado para controlar a hipervalorização dos aluguéis provocadas pelo AirBnb.
A ideia de Hidalgo não é nova: há décadas estudiosos das cidades falam da necessidade de descentralizar as grandes metrópoles. “É preciso descentralizar, criar novos centros de emprego, e isso é feito com grandes estruturas: o Plano Diretor Estratégico [aprovado em 2014, o documento coloca diretrizes para o desenvolvimento da cidade] propõe um macro zoneamento, um arco Tietê e arco Pinheiros [seguindo as vias marginais] que são pensados para levar à zona Leste mais oportunidades de emprego”, afirma Klintowitz. Mas existe um obstáculo: “Isso depende de proatividade da prefeitura”.
A “cidade policêntrica” depende de um Estado forte. “É preciso levar incentivos para criação de postos de trabalho na periferia, e isso só se faz com um Estado forte. O que acontece é que muitas vezes o município vira refém das empresas”, diz Carolina Guimarães da Coordenadora Rede Nossa São Paulo.
A isenção de impostos para a iniciativa privada que se comprometer a levar vagas de trabalho para as regiões longe do centro pode servir de incentivo, mas não basta. “Programas de capacitação são necessários para fortalecer esses postos, e além disso, é preciso mostrar os benefícios para as pessoas e a cidade: seu empregado chega mais feliz, não falta tanto... Existe uma série de benefícios sociais que o setor privado como ente co-responsável dentro da sociedade precisa levar em consideração”, afirma Guimarães. Os benefícios são muitos: deixamos de gastar tanto no transporte, e este dinheiro pode ser redirecionado para consumo e investimentos na economia local dos bairros. “Isso gera um retorno positivo”.
Investimentos pesados
Um dos locais que essa dinâmica foi aplicada e deu certo foi em Recife, aponta Guimarães. Se não existe uma “cidade perfeita” neste sentido, é possível encontrar várias experiências positivas. Medellín, na Colômbia, é frequentemente citada como exemplo de transformação urbana com foco em urbanismo social e inclusivo. Lá foram feitos investimentos pesados em mobilidade, moradia, lazer e cultura nos bairros periféricos, especialmente na região noroeste, marcada por uma geografia de morros. Guimarães destaca uma boa experiência brasileira: o Centro Comunitário da Paz, no Recife, equipamento público localizado nas periferias e que oferecem oportunidades de lazer, educação e cultura (semelhante aos CEUs, de São Paulo).
O pré-candidato do PSD, Andrea Matarazzo, concorda que é necessário que as oportunidades de emprego cheguem a todas as franjas da cidade. “As pessoas não querem vir para o Centro. Elas querem que a cidade chegue na região delas”, afirmou entrevista ao vivo ao EL PAÍS, parte de uma série do jornal com os postulantes ao comando da maior cidade do país. Para que a economia na cidade consiga ficar de pé e volte a gerar novos postos de trabalhos, serão necessários, segundo Matarazzo, programas de refinanciamento de impostos e de linhas de microcrédito para as empresas. “Essa política antiga que vem sendo feita em São Paulo tem deixado a periferia estacionada no século XIX”, diz.
O pré-candidato do PT à prefeitura de São Paulo, Jilmar Tatto, avalia que, independentemente de quem vença a eleição, será preciso lidar com uma São Paulo ainda mais desigual no cenário de pós-pandemia. Uma de suas propostas para diminuir a brecha entre pobres e ricos é a implementação de uma renda básica cidadã na capital para as pessoas registradas no Cadastro Único, algo nos moldes do auxílio emergencial pago pelo Governo Federal. O petista também fala introduzir, de forma gradativa, a tarifa zero de transporte na cidade.
Já segundo Arthur do Val, pré-candidato à prefeitura da capital do Patriota, é preciso reformar o plano diretor da cidade para tirar entraves burocráticos “e obstáculos” para a instalação de empresas e indústrias na cidade. Essa seria, de acordo com ele, uma solução para o problema do desemprego em São Paulo. “Precisamos trazer as empresas pra cá. Garanto pra você que tem milhões de empresas querendo investir em São Paulo e não vêm por causa de entraves e leis trabalhistas absurdas”, afirma.
Confira as entrevistas que já foram realizadas pelo EL PAÍS com alguns dos postulantes à prefeitura de São Paulo nas eleições municipais de 2020 e suas propostas:
Jilmar Tatto: “PT tem que tomar cuidado para não se acostumar com carpetes e ar condicionados”
Andrea Matarazzo: “Buraco e vaga de creche não são de esquerda nem de direita”
Arthur do Val: “O centro de São Paulo não é lugar para dar comida ao morador de rua”
O EL PAÍS também está realizando uma segunda rodada de sabatinas com os candidatos à Prefeitura, em parceria com o portal MyNews. Confira aqui as entrevistas e as propostas dos postulantes ao cargo.
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