Cotas raciais, um caminho para melhorar o futebol
Regras que incentivem contratação de técnicos negros podem tornar o esporte mais inclusivo e, ao mesmo tempo, conferir racionalidade às escolhas no comando dos times
O tema é complexo, mas, em algum momento, precisa ser discutido por clubes e federações de futebol. Na última edição da Série A do Campeonato Brasileiro, apenas três técnicos negros comandaram equipes, sendo que dois deles (Marcão e Dyego Coelho) trabalharam como interinos. Somente Roger Machado, do Bahia, continua no comando este ano. Coelho deu lugar a Tiago Nunes no Corinthians. Apesar do melhor aproveitamento entre os três treinadores do Fluminense na temporada, Marcão não foi cogitado para permanecer e retornou à condição de auxiliar, substituído por Odair Hellmann. Há um claro privilégio a brancos em posições de liderança, reflexo de um país onde só 5% dos cargos executivos em grandes empresas são ocupados por negros.
Nas universidades, a discriminação institucionalizada começou a mudar a partir da política de cotas raciais, garantida por lei desde 2012. Recentemente, pela primeira vez, o número de matrículas de negros em faculdades públicas superou o de brancos, aproximando-se do percentual a que esses grupos correspondem na população brasileira. Levando em conta que cinco anos atrás havia três vezes mais brancos que negros no serviço público, concursos também passaram a adotar o sistema de reserva de vagas. Como reproduzir, então, a política de cotas no futebol, regido por um organismo privado de clubes e federações?
Uma inspiração poderia ser a Regra Rooney, adotada pela NFL (liga de futebol americano dos Estados Unidos) em 2003, que obriga franquias a entrevistar representantes de minorias étnicas para os cargos de técnico e gerente esportivo. Em um período de 15 anos antes da implementação da regra, técnicos negros tinham percentual maior de vitórias que os brancos, mas, ainda assim, eram mais propensos à demissão. Só 4% dos treinadores eram negros. Já em 2006, três anos depois do início de vigência do regulamento, o número de jogos comandados por negros subiu quase 20% e atingiu seu ápice em 2011, quando 27% das partidas tiveram pelo menos um negro no comando. Atualmente, porém, essa proporção baixou para 12,5%, o que tem motivado debates sobre a necessidade de aprimoramento do mecanismo. Alguns técnicos denunciam que franquias transformaram entrevistas com candidatos minoritários em mera formalidade para atender à regra.
Entretanto, no Brasil, medida semelhante geraria um impacto imediato. Muitas vezes, profissionais negros nem sequer são aventados nos cargos de comando, contrariando a tão propalada lógica da meritocracia. O pentacampeão Roque Júnior, por exemplo, fez MBA em gestão e marketing esportivo, estágios na Europa e com Luiz Felipe Scolari, no Palmeiras. Obteve licenças do mais alto nível para poder comandar equipes brasileiras e europeias. Não obstante, ao contrário de contemporâneos da seleção brasileira como Rogério Ceni, nunca recebeu oportunidades em cargos executivos ou de treinador nos grandes times.
Ceni, por sua vez, beneficiado pela idolatria que carregava dos tempos de goleiro, teve portas abertas para iniciar a carreira de treinador no São Paulo antes mesmo de concluir sua formação na nova empreitada. Durou seis meses. Em que pese a demissão e a falta de resultados, a experiência o credenciou a comandar o Fortaleza na Série B do ano seguinte. Roque Júnior só treinou XV de Piracicaba e Ituano, clubes de menor estrutura, onde a ascensão para treinadores é lenta e ainda mais instável. Nomes como Lula Pereira e Andrade, campeão brasileiro em 2009, chegaram a treinar o Flamengo, mas, apesar da posição alcançada, jamais receberam salários comparáveis aos de colegas brancos que passaram pelo cargo. Sem espaço até em equipes pequenas, caíram no ostracismo, assim como Cristóvão Borges, que volta a comandar um time de primeira divisão após quase três anos parado. De acordo com a diretoria do Atlético-GO, a opção por contratá-lo se deve ao fato de ser um técnico experiente e barato.
O imediatismo afeta toda a classe dos treinadores. Poucos resistem a uma sequência de maus resultados. Trabalhos são frequentemente interrompidos por metas de curto prazo. Mas, como bem disse Cristóvão, a tolerância às derrotas protagonizadas por técnicos negros costuma ser menor. A eles, sobretudo, não se permite comportamentos normalizados por brancos. Embora seja auxiliar fixo do Santos por quase uma década, Serginho Chulapa só assumiu o time como interino, em momentos de crise. É tachado pelo temperamento explosivo, o que não impediu o argentino Jorge Sampaoli, três vezes suspenso por acúmulo de cartões devido à conduta irascível à beira do campo, de comandar a equipe no ano passado. Chulapa também ficou marcado por dar uma cabeçada num jornalista em 1994. Se ato violento realmente bastasse para inviabilizar a carreira de técnicos, Oswaldo de Oliveira, que agrediu um repórter quando dirigia o Atlético-MG, em 2018, não teria se recolocado tão rápido no mercado japonês e, posteriormente, no Fluminense.
Pelo futebol, desconstrói-se a tese de que apenas cotas sociais são necessárias, partindo do pressuposto que os negros seriam automaticamente contemplados por, via de regra, ainda integrarem as camadas mais pobres da sociedade. O que explica, então, a escassez de técnicos e executivos negros, já que a maioria dos que ocupam essas funções é composta por ex-jogadores que, em boa medida, também provêm das classes desfavorecidas? Cotas raciais representam o primeiro passo para iniciar o desmonte do racismo estrutural. Um movimento que deveria ser capitaneado pela CBF e não se limitar à exigência dos clubes entrevistarem profissionais negros para seus cargos executivos.
Muito além da política de cotas, o fomento à diversidade tem de acompanhar medidas que potencializem a democratização dos clubes, o desenvolvimento de práticas antirracistas dentro das instituições esportivas e a abertura de espaço para a capacitação de grupos minoritários. O curso de formação de treinadores da CBF, requisito para exercer a profissão, é caro. Tirar todas as licenças exigidas no alto escalão do futebol demanda um investimento de aproximadamente 50.000 reais. Boa parte dos interessados não é de ex-jogadores consagrados nem ostenta reserva financeira para arcar com os custos. A concessão de bolsas a alunos negros, pobres e mulheres —afinal, elas estão em minoria até mesmo entre treinadores do futebol feminino— pode ser o pontapé do sistema de cotas à brasileira, seguida de uma revisão institucional da própria CBF, que não tem nenhum negro ou mulher em sua diretoria. Na NFL, 70% dos jogadores provêm de minorias étnicas, mas todos os donos de franquias são brancos, algo que, de certa forma, interfere na efetividade da Regra Rooney.
Estender a política de cotas nos cargos executivos não é primordial somente para o funcionamento do mecanismo, mas para que o futebol nacional comece, de fato, a se guiar por um conceito justo de meritocracia. Passar ao menos a considerar negros e mulheres em posições de comando estimularia a gestão dos clubes a valorizar a competência, recrutar com assertividade e escolher os melhores profissionais. Por tabela, a regulamentação dos processos de contratação dos treinadores contribuiria para resolver o problema da rotatividade no cargo. Hoje, um telefonema separa a demissão de um técnico da contratação de um substituto com perfil oposto. No ano passado, a Série A, com 20 equipes, contabilizou 24 trocas de comando. Diante da obrigação de entrevistar candidatos, dirigentes seriam forçados, cedo ou tarde, a estabelecer critérios de seleção e a eleger o treinador do seu time de forma mais racional.
Considerado referência em modernidade de gestão, o Athletico Paranaense já adota o expediente de entrevistar treinadores potenciais. Foi assim que contratou Dorival Júnior para substituir Tiago Nunes. Em outros países, a dinâmica de cotas aos poucos começa a se incorporar à modernização dos processos seletivos. Em 2018, a Federação Inglesa anunciou o compromisso de realizar entrevistas com candidatos de minorias étnicas aos 28 postos de treinador que possui, incluindo as seleções principais masculinas e femininas, depois de um estudo constatar que 96% dos técnicos de elite do país são brancos. Simultaneamente, a federação estipulou a reserva de vagas para mulheres e negros em suas turmas voltadas à obtenção da licença de treinador da UEFA.
Cotas significam mais que uma ação afirmativa. Tratam-se do reconhecimento de que a diversidade é boa para os negócios. O público que se vê representado em um espetáculo tende a se engajar mais em seus eventos e a consumir mais o seu produto, que, consequentemente, pode ser melhorado por trajetórias, origens e pensamentos heterogêneos. Em seu discurso didático no Maracanã, Roger Machado foi certeiro: “As pessoas ainda tentam dizer: ‘Não há racismo, está vendo? Você está aqui’. Não, eu sou a prova de que há racismo porque eu estou aqui.” O técnico do Bahia tem plena consciência de que representa a exceção. Caso um dia se dê conta da importância de políticas pela igualdade racial, a CBF deveria, inclusive, homenageá-lo com a “Regra Roger”. Para que o comando do esporte mais popular de um país tão diverso como o Brasil, de tantos ídolos negros forjados no campo, deixe de se restringir às mãos de uma pequena parcela da população.