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Jorge Jesus e Sampaoli, os estrangeiros que veneram a essência do futebol brasileiro

Entre reações xenofóbicas e a obsessão pelo jogo ofensivo, treinadores de Flamengo e Santos disputam liderança do campeonato idolatrados por suas torcidas

Sampaoli e Jesus se encontram no Maracanã. Em disputa, a liderança do Brasileirão.
Sampaoli e Jesus se encontram no Maracanã. Em disputa, a liderança do Brasileirão.AFP

Ambos direcionaram os rumos da carreira ao Brasil este ano. Jorge Sampaoli veio primeiro. Reconhecido pelo inédito título da Copa América com a seleção do Chile, o argentino desembarcou em Santos chancelado por duas participações em Copas do Mundo e uma intensa passagem no Sevilla, sua única experiência no futebol europeu. De lá chegou o xará, Jorge Jesus, mas com destino ao Rio de Janeiro. Tricampeão de seu país à frente do Benfica, o português topou cruzar o Atlântico para comandar o Flamengo, onde assinou contrato em junho. Neste sábado, os dois treinadores disputam a liderança do Campeonato Brasileiro no Maracanã, valendo a conquista simbólica do primeiro turno.

Sampaoli teve um início arrebatador pelo Santos. Engatou uma série de quatro vitórias consecutivas no Campeonato Paulista, em que seus comandados marcaram 11 gols e sofreram apenas um. Mas tropeços para rivais de menor expressão, como as goleadas de 5 a 1 para o Ituano e 4 a 0 para o Botafogo-SP, além da eliminação na primeira fase da Copa Sul-Americana diante do River Plate-URU, baixaram as expectativas da torcida sobre o time. Sob seu comando, o Peixe ainda caiu nas semifinais do Paulistão e nas oitavas da Copa do Brasil. Porém, com atenções voltadas ao Campeonato Brasileiro, a equipe santista chegou a liderar o torneio nacional e, mesmo com elenco mais modesto, se mantém no topo da tabela, dois pontos atrás do Flamengo.

Desde a chegada de Jesus, o clube carioca perdeu só uma partida no Brasileirão – 3 a 0 para o Bahia – e alcançou a liderança ostentando o melhor ataque da competição, com 41 gols (11 a mais que o Santos). Embora tenha sido eliminado da Copa do Brasil pelo Athletico, o Flamengo conseguiu retornar a uma semifinal de Libertadores após 35 anos. Empolgada pela boa fase da equipe, a torcida rubro-negra tem lotado estádios com média de quase 50.000 torcedores por jogo na temporada. Depois de amargar um futebol pouco criativo durante os cinco meses conduzidos por Abel Braga, o Flamengo voltou a jogar bem, a ponto de fazer brotar comparações com o lendário time de Zico e companhia na década de 80.

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Jorge Jesus potencializou as qualidades do elenco estrelado montado pela diretoria, que gastou somente este ano quase 200 milhões de reais em reforços. Artilheiro do campeonato, com 15 gols, Gabigol subiu de produção sob batuta do português e se firmou como o maior goleador em atividade no país. Diego, um dos líderes da equipe, se machucou, mas foi substituído à altura pelo surpreendente Gerson. Arrascaeta, contratação mais cara da história do futebol brasileiro, finalmente ganhou espaço no time titular, enquanto Bruno Henrique foi premiado com a convocação para os últimos amistosos da seleção. “Em 28 anos de futebol, esse é o elenco mais profissional com que já trabalhei”, disse Jesus depois de sua primeira vitória no Maracanã, em julho, contra o Goiás. “Ouvia muito dizer que jogador brasileiro não gosta de trabalhar, mas o que encontrei aqui no Flamengo é totalmente o oposto.”

Com uma proposta semelhante, que preza por intensidade e audácia ofensiva, Jorge Sampaoli também se esforça para que seu time não dê respiro aos adversários ou, em suas palavras, “seja sempre protagonista”. Esse estilo o consagrou na seleção chilena, que desbancou a Argentina de Messi numa final e quase derrotou o Brasil, em pleno Mineirão, na Copa de 2014. Enquanto rivais buscam antídotos para vencê-los, o sucesso de dois treinadores estrangeiros no país do futebol tem despertado, além de admiração, reações de desdém e até alfinetadas xenofóbicas de alguns colegas de profissão.

No último domingo, após uma discussão acalorada à beira do campo, Tiago Nunes, técnico do Athletico, apontou com os dois dedos para o chão e gritou em direção a Sampaoli: “Aqui é Brasil!”. Há dois meses, Nunes afirmou não ver diferença entre os estilos de treinadores estrangeiros e brasileiros. “Temos mania de olhar pro jardim do lado e sempre achar que é mais bonito que o nosso. É a síndrome de vira-latas do brasileiro. Às vezes, a gente [técnicos locais] não tem um sotaque diferente pra chamar a atenção de quem avalia”, disse ao minimizar a boa arrancada de Jorge Jesus com o Flamengo.

Vanderlei Luxemburgo, técnico do Vasco, foi outro nome a desdenhar dos trabalhos com selo importado nos clubes nacionais. “O técnico brasileiro é excelente. Eles [estrangeiros] não trouxeram absolutamente nada de novo”, afirmou, antes de cobrar a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) por uma postura mais altiva em favor dos treinadores brasileiros. “Desejo sucesso ao Jesus e ao Sampaoli no Brasil, mas queria ver a posição da CBF para proteger os técnicos daqui, para que nossa licença possa valer em outros países como a deles vale aqui. Somos impedidos de trabalhar lá fora”, diz Luxemburgo, que já trabalhou na China, Emirados Árabes e Espanha, comandando o Real Madrid.

Assim como ele, Muricy Ramalho, ex-técnico que hoje é comentarista no Sportv, diz não enxergar grandes inovações nos métodos de Jesus e Sampaoli. “Eu fiquei no Barcelona 16 dias e não vi nenhum trabalho melhor do que fazemos aqui”, comentou sobre o período de intercâmbio no time espanhol que o goleara na época em que dirigiu o Santos no Mundial de Clubes. Em maio, no mesmo Sportv, Levir Culpi, que atualmente está desempregado, debochou de Sampaoli, afirmando em tom de ironia que ele será o próximo técnico da seleção brasileira porque “anda de bicicleta, tem tatuagem e é argentino”.

Apesar da resistência de parte da categoria, tanto Jesus quanto Sampaoli contam com a idolatria de suas torcidas. Santistas se encantaram pela forma como o argentino trata jovens torcedores, abrindo os portões do centro de treinamento para um grupo de crianças que, em retribuição, já o presentearam com uma bandeira. “O torcedor do Santos gosta que o time jogue pra frente. E eu também vejo o futebol dessa maneira. Um clube que já teve Pelé e Neymar não pode jogar de outro jeito que não seja atacando”, diz Sampaoli.

Carinhosamente chamado de “mister” pela torcida rubro-negra, Jesus costuma ressaltar a tradição brasileira de revelar bons jogadores e, consequentemente, ter talento à disposição para dar espetáculo em campo ao justificar o vocação ofensiva de sua equipe. “Sou Jesus, mas não faço milagre de uma hora pra outra”, brincou o treinador. “Com a ajuda de todos, espero trazer títulos para o Flamengo. E o melhor caminho é sempre tentar jogar melhor que os adversários.” Vibrantes e, ao mesmo tempo, estrategistas, os dois técnicos estrangeiros da Série A roubam a cena em uma jornada que coincide no respeito à essência do futebol nacional.

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