São Paulo e a máquina de triturar técnicos
Treinador são-paulino é o novo nome entre os condenados à forca na profissão mais ingrata do futebol
Esqueça a pranchetada no vestiário, as mexidas equivocadas, as entrevistas e os discursos de autodefesa baseados em estatísticas que, em muitos momentos, se confundem com falta de autocrítica. O que está em questão na enxurrada de questionamentos a Rogério Ceni tem pouco a ver com postura ou método de trabalho. O técnico do São Paulo é criticado basicamente por não satisfazer a sede de vitórias e conquistas imediatas imposta pelo futebol.
Fosse pragmático em vez de arrojado, defensivo em vez de ofensivo, reativo em vez de propositivo, ele seria igualmente defenestrado caso não brindasse seus detratores com doses semanais de regozijo a cada triunfo. A discussão latente sobre a necessidade de reconstrução do futebol brasileiro sempre se esfarinha ao se deparar com a figura do treinador. Por mais que conceitos evoluam, o técnico continua sendo protagonista tanto dos fracassos quanto dos louros, mas, em ambas as situações, está fadado à derrocada precoce. Quando vence, é cobrado por mais recorrentes e expressivas vitórias. Quando perde, é descartado.
Eduardo Baptista, Marcelo Oliveira, Cristóvão Borges, Oswaldo de Oliveira, Geninho… Todos eles têm algo comum: em algum momento, já foram tratados como novidade em meio à mesmice e, de repente, não servem mais. “Falta comando no vestiário”, “Não tem pulso”, “Escala três zagueiros”, “Não estudou”, “É motivador”, “Está desatualizado”, “Se veste mal”. Desculpas não faltam para desacreditar profissionais revestidos de vanguarda à mesma velocidade com que se tornam obsoletos. A corrente que clama por inovações no campo geralmente é a mesma que as repele após duas derrotas seguidas. A corrente que grita por futebol moderno geralmente é a mesma que inflama torcedores contra aqueles que não julgam merecedores de seu selo de qualidade e se tornou uma verdadeira máquina de triturar técnicos.
Tite e Guardiola são o parâmetro dessa engrenagem. Hoje em dia, pra ser bom técnico, precisa ter estudado na Europa e ostentar diplomas da CBF, da Uefa, da Fifa, da Associação de Treinadores Anarcorganizadores, usar esquema tático de quatro dígitos, fazer rotações, triangulações e infiltrações, compactar as linhas de marcação, explorar as transições e, não menos importante, ser fluente em tatiquês. O filtro é tão cruel que, no fim do ano passado, a melhor opção para assumir um São Paulo em parafuso era, de fato, Rogério Ceni, mesmo sem nunca ter comandado um treino sequer na vida. Candidatos potenciais já haviam sido despejados no limbo das decepções.
Não se pode ver como único problema do São Paulo seu técnico e suas escolhas, enquanto dirigentes contaminam o clube com vaidades desde os tempos em que o antigo capitão impunha mais respeito que os próprios chefes
Embora seja o maior ídolo da história tricolor, o ex-goleiro já começa a ganhar o rótulo de promessa frustrada. Em menos de cinco meses, foi do inventivo técnico que despontou na pré-temporada nos Estados Unidos ao prancheteiro cabeça-dura que acumula três eliminações. Volto à corrente, aquela que clama por inovações no campo e grita por futebol moderno. Para ela, não basta vencer, tem de jogar bonito, “propor o jogo”, sempre. Também não basta inovar. Tem de dar resultado. Rápido. Bem rápido. Como se reduzir o futebol apenas ao jogo jogado no campo não fosse uma forma simplista de analisar o esporte. Como se o problema do São Paulo, por exemplo, fosse apenas o técnico e suas escolhas, enquanto dirigentes contaminam o clube com vaidades desde os tempos em que o antigo capitão impunha mais respeito que os próprios chefes.
Nem mesmo o são-paulino mais otimista esperava um início arrebatador de seu ídolo em nova função. Errar faz parte da rotina do treinador, sobretudo de um iniciante na profissão. O mínimo tempo de adaptação precisa ser respeitado. E, apesar de inúmeros técnicos caírem com menos de um mês no cargo, esse não parece ser o prazo mais razoável. A fritura instantânea no banco de reservas é tão banalizada que já há quem diga que duas semanas de trabalho são suficientes para “mudar a cara de uma equipe”. Sim, geralmente os mesmos imediatistas travestidos de gurus que têm fetiche por resultado e jogo bonito não conseguem reconhecer méritos de uma coisa dissociada da outra.
Várias competências além do campo são exigidas de um treinador. Raríssimos como Tite e Guardiola alcançam o padrão de excelência ao combinar tantas virtudes de liderança. Devem, sim, ser referências, não o parâmetro para destruir reputações. Muita gente observa que o ex-goleiro foi superestimado e menos bombardeado que a maioria dos colegas por ser Rogério Ceni – o ídolo, não o técnico. O que se vê hoje é justamente o contrário. Espera-se que ele construa em cinco meses como treinador o que levou mais de duas décadas para construir como jogador. Ninguém está imune a críticas. Mas o que deveria estar em questão não é se Rogério é menos ou mais blindado, menos ou mais estudioso, menos ou mais arrogante, mas sim o fato de ainda encararmos com normalidade que técnicos continuem sendo rifados na primeira sequência de tropeços.
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