O deslize de Klopp sobre jogadores africanos
Ameaça de não contratar atletas da África por causa de torneio de seleções contradiz postura humanista do treinador alemão
O Liverpool venceu o Manchester United no último domingo e abriu 16 pontos de vantagem na liderança do Campeonato Inglês. Atual campeão europeu e mundial, a equipe comandada por Jürgen Klopp acumula 39 jogos de invencibilidade em seu país. Se prova, a cada rodada, como o melhor time do mundo. Mas, apesar da esplêndida fase, o técnico alemão se mostrou insatisfeito antes do clássico disputado em Anfield. Ele protestou contra a Copa Africana de Nações (CAN), que voltará a ser realizada no início do ano em 2021.
“É uma catástrofe [para nós] a competição em janeiro”, esbravejou Klopp em entrevista coletiva. Depois de uma edição no Egito, ano passado, nos meses de junho e julho, Camarões sediará o torneio entre janeiro e fevereiro, como tradicionalmente acontecia até 2017. Pela diversidade e complexidade do clima no continente, os primeiros meses do ano apresentam as condições mais favoráveis para a realização da CAN. A versão egípcia teve partidas sob calor acima de 37 ºC. Em algumas regiões africanas, a estação de verão concentra chuvas que dificultam o desenrolar dos jogos. É o caso de Camarões, que usou o período chuvoso como argumento para realocar o torneio a partir de janeiro.
Pelo lado de Klopp, a queixa tem a ver com históricos desfalques que a CAN impõe aos clubes europeus. Seu time, por exemplo, conta com os dois melhores jogadores africanos da atualidade: o senegalês Sadio Mané e o egípcio Mohamed Salah, além do guineense Naby Keita. Seriam três baixas de peso durante quase um mês, em momento-chave da temporada, às vésperas da fase de mata-mata da Champions. O alemão não é o primeiro treinador que reclama do timing inoportuno da Copa Africana de Nações, que ocorre de dois em dois anos, nem deixa de ter razão no debate que propõe.
Klopp cobra das federações e, sobretudo da FIFA, um calendário mais racional de jogos. Que não desfalque clubes, responsáveis por bancar os salários de jogadores, ao mesmo tempo em que os preserve para compromissos de suas seleções. Além das condições climáticas, há outros fatores por trás da mudança na CAN. O principal deles, político. A Confederação Africana está sob intervenção da FIFA, que, a partir de 2021, inaugura um novo formato do Mundial de Clubes. O evento coincidiria com a CAN caso a competição continental fosse mantida em junho. Boa parte dos selecionáveis africanos atua por equipes europeias. Não seria comercialmente interessante para o torneio de clubes perder estrelas como Salah e Mané devido a um campeonato concorrente de seleções.
Disputas políticas dos dirigentes muitas vezes se sobrepõem aos interesses dos times e, principalmente, dos atletas, que pagam o preço sacrificando seus corpos enquanto as federações se mostram incapazes de organizar um calendário sem conflito de datas entre jogos de clubes e seleções. E é nesse ponto que Klopp se equivoca, ao deixar no ar um boicote velado que penalizaria em dobro os jogadores envolvidos. “Não vamos vender Mané, Salah ou Keita agora porque eles têm um torneio em janeiro e fevereiro. Mas se tiver que decidir sobre trazer um jogador, isso [a Copa Africana de Nações] será um fator importante, porque antes da temporada você saberá que não vai poder contar com eles [africanos] por quatro semanas”, disse o treinador do Liverpool.
Sua fala carrega uma interpretação eurocentrista do imbróglio. Mantém em segundo plano as equações complexas para se organizar uma competição na África, a histórica desvalorização do futebol local, visto somente como mercado de exportação de jovens talentos para a Europa, e o contexto dos bastidores manobrados pela FIFA. Ao ameaçar não contratar mais jogadores africanos por causa dos desfalques gerados pela CAN, Klopp acaba ecoando uma lógica discriminatória semelhante à que culpabiliza negros pelo racismo dos brancos. Imagine se, no Brasil, algum treinador cogitasse abrir mão de prospectar jogadores estrangeiros pelo fato de desfalcarem clubes para atender à convocação de suas seleções... Seria um diagnóstico com traços de xenofobia e, acima de tudo, impreciso sobre a verdadeira origem do problema: o inchado e errático calendário nacional.
A Copa Africana de Nações acontece desde o fim da década de 50. Apesar dos desfalques recorrentes, clubes europeus nunca deixaram nem deixarão de contratar jogadores africanos. Sabem que precisam do talento deles, alguns dos quais se naturalizam para defender suas seleções. Sabem que, enquanto o futebol do continente seguir desvalorizado, terão à disposição pé de obra barato e altamente rentável. Klopp está certíssimo em criticar as falhas do calendário e a falta de articulação das federações, que, como ele bem citou em suas declarações, só prejudicam os jogadores, extenuados diante de tantos compromissos.
Porém, por sua formação e visão humanista do esporte, poderia ter evitado depositar o ônus de embates políticos sobre os ombros de atores que, no fim, são as maiores vítimas dessa engrenagem. Ter Klopp, o melhor treinador do mundo, como uma voz ativa em defesa de melhorias na Copa Africana de Nações representa um trunfo para o futebol local, desde que não utilize seu poder de influência para sugerir um critério infeliz de restrição a contratações, que foge à competência dos jogadores. Poupá-los da má vontade dos cartolas é premissa básica antes de buscar uma solução que atenda todas as partes impactadas pelo torneio.
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