Goleiro negro virou símbolo da torcida antirracista do Rayo Vallecano
O nigeriano Wilfred Agbonavbare, ou simplesmente Willy, fez história no clube de Madri, nos anos 90, encarando as dores do racismo exacerbado em campo

Vallecas é um bairro obrero, reduto dos comerciantes de rua e boa parte da classe operária que vive no sul de Madri. Um bairro diversificado e extenso, um dos maiores de toda Europa, com mais de 300.000 moradores. Entre eles proliferam grupos de imigrantes africanos e latinos. Na principal avenida da região fica o estádio do Rayo Vallecano, clube da segunda divisão espanhola, onde a fachada exibe um painel de azulejos com o rosto e o nome de Wilfred Agbonavbare, introduzido por uma mensagem em forma de epígrafe: “Por sua defesa da faixa – símbolo do uniforme do time – e sua luta contra o racismo, o rayismo nunca te esquecerá”.
Na década de 90, Agbonavbare, que se tornou conhecido em Vallecas como Willy, era figura rara dentro dos campos de futebol na Espanha: um goleiro negro. Aos 24 anos, deixou a Nigéria para assinar contrato com o Rayo. Logo virou ídolo da torcida, especialmente depois de conduzir a equipe à primeira divisão em 1992. Na temporada seguinte, veio a consagração. Ao enfrentar o Real Madrid, clube mais poderoso da cidade, Willy fechou o gol. Suas defesas milagrosas garantiram a vitória dos donos da casa por 2 a 0. Saiu aclamado pelos torcedores que lotaram o estádio do bairro.
Na partida de volta, em pleno Santiago Bernabéu, o nigeriano brilhou novamente. Pegou um pênalti e, de forma heroica, o Rayo arrancou um empate nos domínios rivais. Então favorito ao título, o Real acabou ultrapassado na tabela pelo Barcelona. Para os rayistas, Willy ficou marcado como o goleiro que tirou a taça das mãos madridistas. Mas os torcedores do time merengue não o perdoaram. Durante o jogo, foi alvo de cânticos racistas. Para provocá-lo, a torcida adversária gritava “Ku Klux Klan” das arquibancadas. Em embates das temporadas seguintes, sempre ouvia o coro de “negro c…, vai colher algodão”.
Willy, por sua vez, tinha o sonho de jogar no Real Madrid. De ser reconhecido em um grande clube. Preferia não confrontar os agressores e respondia aos insultos discriminatórios com desdém. “Por ser negro, sei que vou ouvir xingamentos nos estádios. Que eles xinguem e eu continue fazendo a diferença a favor do meu time”, costumava dizer. Sem tréguas do racismo, defendeu o Rayo Vallecano por seis temporadas. Nunca recebeu oportunidades em times maiores, muito menos no Real, apesar de ter disputado a Copa do Mundo de 1994 com a seleção de seu país. Tentou prosseguir a carreira no modesto Écija, mas, como não havia ganhado fortunas em seus tempos de Rayo e o salário de goleiro semiamador era insuficiente para pagar as contas, pendurou as chuteiras aos 31 anos e resolveu voltar para a Nigéria.

Quando ainda tentava se restabelecer, sua mulher foi diagnosticada com câncer de mama. Retornaram à Espanha para apressar o tratamento, que corroeu o pouco que havia restado de suas economias. Ela não resistiu, e o ex-goleiro se viu obrigado a permanecer em Madri à procura de emprego. Trabalhou por mais de uma década como carregador de malas e operador de cargas no aeroporto de Barajas, até descobrir que também tinha um câncer. Willy morreu no início de 2015, aos 48 anos. Porém, não foi esquecido pela torcida que o transformou em lenda.
Unidos contra o fascismo e o racismo
“Não me lembro dele”, afirma o costa-riquenho Eduardo Ramírez, 36, ao se deparar com o rosto de Willy pintado na fachada do estádio. Ele vive em Vallecas há quase 10 anos, torce para o Rayo, mas nunca tinha ouvido falar no ex-goleiro, nem frequenta os jogos do clube. “Eu trabalho como vendedor autônomo. Para mim, sai muito caro comprar ingressos.” Já o espanhol Alvaro Contreras, 54, se recorda bem do ídolo que viu jogar. “Willy era uma pessoa humilde. Morava aqui na região. Se identificava muito com o bairro. E o bairro se identificava com ele.”
Sua chegada ao clube coincidiu com o surgimento da mais efusiva torcida organizada do Rayo Vallecano. Fundada em 1992, a Bukaneros começou com um grupo de sete jovens que queria propagar ideais antifascistas no estádio, em contraponto aos ultras abertamente de direita dominantes nas arquibancadas até então. O discurso politizado e em sintonia com a classe trabalhadora do bairro atraiu adeptos para a Bukaneros, que logo se converteu na facção de torcedores de maior influência dentro do clube.
Uma temporada depois de Wilfred Agbonavbare deixar o Rayo, a torcida organizou sua primeira “Jornada contra o racismo”, evento que promove todos os anos em combate ao preconceito. Em 2011, o ex-goleiro foi o convidado de honra da torcida para as solenidades. Seria a última vez que pisaria no gramado do estádio que o consagrou. Ao saber da doença enfrentada por Willy, a Bukaneros se mobilizou para arrecadar fundos a fim de que a família pudesse viajar da Nigéria para a Espanha, já que seu último desejo era se despedir dos três filhos, que não encontrava havia quase 10 anos.
Antes, a torcida rayista tinha se unido para ajudar uma torcedora do clube, de 85 anos, que estava prestes a ser despejada de casa. Ela doou parte do dinheiro arrecadado com o intuito de bancar seu aluguel para que os filhos de Wilfred o visitassem em Madri. Torcedores, dirigentes e jogadores também contribuíram. Problemas com a liberação dos vistos atrasaram a viagem, e, um dia antes do previsto para o embarque, o ex-goleiro faleceu no leito do hospital, sem conseguir realizar o sonho de reencontrar a família. Após a morte, o clube batizou uma das entradas do estádio com seu nome, enquanto a Bukaneros se encarregou do painel de azulejos em sua homenagem.

O Rayo segue se destacando em campanhas de apoio a causas sociais, como o enfrentamento ao racismo e à homofobia. Mas, há tempos, a sintonia entre diretoria e torcida não é tão afinada. A Bukaneros tem organizado boicotes aos jogos em protesto endereçado ao empresário Raúl Martín Presa, que comprou o clube em 2011. Por falta de respaldo às bandeiras levantadas na arquibancada, os atritos com o dono se tornaram rotina. Em 2017, torcedores se revoltaram contra a incorporação do atacante ucraniano Roman Zozulya, acusado de manter vínculos com movimentos neonazistas em seu país. A contratação do jogador acabou desfeita. No ano seguinte, o Rayo foi multado em 30.000 euros depois que a torcida organizou uma manifestação contra o racismo no estádio, sob a alegação de o ato não havia sido previamente comunicado às autoridades do futebol espanhol.
Embates nos bastidores, no entanto, não impedem que a idolatria a Wilfred Agbonavbare continue sendo uma unanimidade, sobretudo para uma militância cada vez mais engajada em Vallecas, único distrito de Madri onde a direita nunca conseguiu ganhar uma eleição. Em sua última reverência ao ex-goleiro, a Bukaneros salientou que “a vida foi cruel com Willy. Mas esse homem de aspecto bonachão foi um dos maiores que vestiram nossa camisa. Um ídolo humilde para um clube humilde”.