O futebol desconstrói o mito da democracia racial
Discriminação contra negros em um ambiente convidativo ao preconceito escancara a realidade que se camufla fora dos estádios
“Me desculpe, você é preto.” Essa é a desculpa que o pernambucano Lula Pereira, treinador com passagens por Flamengo, Bahia e Ceará, cansou de ouvir de empresários ao ser descartado por clubes de futebol. Dirigentes até gostavam de seu perfil, reconheciam os méritos de seu currículo, mas hesitavam em contratá-lo por causa da cor de sua pele. Apesar de toda a experiência, Lula amarga um longo ostracismo na profissão, assim como Andrade, que conduziu o rubro-negro ao título brasileiro em 2009, mas não conseguiu deslanchar como treinador.
Costuma-se dizer no Brasil que o racismo não passa simplesmente de um produto da desigualdade social, pelo fato de boa parte da população negra ainda carecer do acesso a educação superior e serviços básicos. Mas o que explicaria, então, a escassez de técnicos e executivos negros no futebol, já que a maioria dos que ocupam essas funções é composta por ex-jogadores que, em boa medida, também vieram das classes mais pobres? É difícil encontrar respostas plausíveis para indagações que negam ou relativizam a existência do racismo no país. Tal qual para a insensatez cada vez mais frequente de rebater uma forma de preconceito com outra igualmente condenável.
Quatro anos atrás, em um jogo de Libertadores no Peru, Tinga, então volante do Cruzeiro, foi vítima de insultos racistas proferidos pela torcida local. Revoltados, muitos brasileiros se solidarizaram com o jogador ao responder o racismo com xenofobia, ofendendo o povo peruano. Porém, poucos fizeram um exame de consciência para enxergar que comportamentos racistas se reproduzem diariamente por aqui, bem diante dos nossos olhos. Na televisão, nas favelas, nas escolas, nas empresas, nos estádios.
Iniciativas como o Observatório da Discriminação Racial no Futebol, que monitora casos e constata o aumento do número de ofensas raciais no ambiente esportivo, contribuem para desconstruir o mito do “racismo velado”. O Brasil ainda preserva o racismo estrutural, escancarado, colocado em prática das mais diversas maneiras. Por seu caráter popular, o futebol expõe nossas falhas e omissões no combate à discriminação. Foi assim que o país se sensibilizou após o goleiro Aranha ter sido chamado de “macaco”, em alto e bom som, na Arena do Grêmio. Em um caso mais recente, o Flamengo viu sua grande revelação conviver com insultos racistas de torcedores rivais e até mesmo de flamenguistas. Vinicius Junior é apenas um exemplo de como o negro precisa enfrentar obstáculos inclusive depois de alcançar status de reconhecimento e prestígio. Fardo semelhante ao que carrega Fernandinho, titular absoluto de Pep Guardiola em Manchester, porém atacado com a mesma virulência discriminatória ao marcar um gol contra diante da Bélgica na última Copa do Mundo.
Para mudar essa realidade, é fundamental que movimentos sociais, coletivos negros e a vigilância de entidades similares ao observatório continuem nos lembrando sempre que a luta contra o racismo é permanente. E deve ser travada com o mesmo afinco que empregamos nos campos e nas arquibancadas.
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