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Com caso William Waack, Brasil quer traçar linha vermelha contra o racismo

Queda da estrela do jornalismo impõe à TV Globo desafio de lidar com questão além da ficção. “Há 15 anos, esse episódio teria tido essa repercussão e essa resposta?”, diz ex-secretário

William Waack foi afastado de suas funções na Globo.
William Waack foi afastado de suas funções na Globo.Reprodução
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“É preto, né? Sabe o que é isso? Coisa de preto.” A troça racista proferida por William Waack, que veio à tona nesta quarta-feira com o vazamento de um vídeo de 2016 em que o apresentador do Jornal da Globo se preparava para entrar ao vivo, obrigou a TV Globo a lidar na realidade com o tema que resolveu abraçar em suas novelas e produções dramatúrgicas, ao lado da homofobia e da intolerância religiosa. A repercussão nas redes sociais, também em reflexo da mobilização crescente do movimento negro e o rechaço ao desrespeito das minorias, parece ter deixado à maior emissora do Brasil apenas  a opção de adotar com personagens da vida real a mesma conduta pregada na ficção. A Globo divulgou um comunicado anunciando o afastamento do apresentador “até que a situação esteja esclarecida” e disse ser “visceralmente contra o racismo em todas as suas formas e manifestações”.

“Os tempos estão mudando”, afirma Giovanni Harvey, ex-secretário nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial nos governos petistas. “Embora no privado o brasileiro conviva com a discriminação passivamente, a sociedade, uma vez confrontada com uma prática discriminatória inquestionável, vai condenar. Não dá mais para impedir que o assunto seja abafado, sobretudo com o impacto das redes sociais. [As empresas] são obrigadas a dar um retorno que não dariam tempos atrás. Há 15 anos, esse episódio [do William Waack] teria tido essa repercussão e essa resposta?”

Se há quem cobre da Globo a demissão do jornalista, o fato é que nem todos os episódios recentes envolvendo racismo e o mundo do entretenimento, inclusive na própria emissora, tiveram um desfecho tão contundente e rápido. Neste ano, a TV esteve no centro de outro caso. Em janeiro, na 17ª temporada do Big Brother Brasil, a participante Gabriela Flor foi vítima de comentários racistas por parte de colegas da casa, que zombavam de seu cabelo black power. Na edição de 2014, o estudante Cássio Lannes chegou a ser denunciado ao Ministério Público Federal do Rio Janeiro por ter dito no programa que, certa vez, teria “atravessado uma afrodescendente” com quem havia mantido relação sexual. Em seu perfil no Twitter, foram encontradas postagens racistas como “saudade de quando ter escravos não era crime”. Os integrantes do reality show responsáveis pelas ofensas não foram punidos nem advertidos pela Globo.

Também em janeiro um outro caso ganhou os holofotes, deste vez na TV Record. Marcos Paulo Ribeiro, apresentador do telejornal Balanço Geral em Brasília, foi demitido pela emissora uma semana depois de chamar a cantora Ludmilla de “pobre macaca” em seu programa. Pelas redes sociais, fãs demonstraram apoio à cantora com a hashtag #ProcessaLudmilla. Famoso pelo apelido de Marcão do Povo, ele acabou, no entanto, contratado pelo SBT no mês seguinte.

Nesta quarta-feira, a reação ganhou proporções ainda maiores nos meios digitais. A hashtag #ÉCoisaDePreto, em que usuários exaltam feitos de pessoas negras em resposta ao deboche racista de Waack, chegou ao topo dos assuntos mais comentados do Twitter e continuou sendo assim na quinta-feira. A velocidade com que a Globo resolveu se pronunciar sobre o tema também contrasta com a conduta tomada em março deste ano, quando o ator José Mayer foi acusado de assédio sexual pela figurinista Susllem Tonani em um texto publicado na Folha de S. Paulo. Diante da repercussão negativa, o ator insinuou que Tonani misturava ficção com realidade, atribuindo o papel de assediador ao personagem interpretado por ele na novela A lei do amor. Na época, a TV, ao contrário do caso Waack, limitou-se a afirmar que estava apurando o caso para “tomar as medidas necessárias”. Somente cinco dias depois da publicação do texto, pressionada até mesmo por mulheres que compõem seu quadro de funcionários e se engajaram na campanha “Mexeu com uma, mexeu com todas”, a emissora decidiu afastar Mayer, que, desde então, segue longe das telas.

Para o historiador Luiz Carlos Ribeiro, da Universidade Federal do Paraná, ofensas racistas como a do apresentador global sempre foram naturalizadas e assimiladas com normalidade pela sociedade brasileira. Por isso, ele interpreta a rápida tomada de posição da Globo diante da repercussão do vídeo como um avanço, independentemente de eventuais outras sanções que Waack possa sofrer da empresa. “O racismo no Brasil se manifesta em forma de brincadeira, um jeito peculiar e natural de preconceito. Ao mesmo tempo em que esse caso [do William Waack] reforça a existência do racismo velado, também ajuda a desnudar o cinismo e a hipocrisia em torno da questão racial. Mas é preciso reconhecer que, nos últimos anos, a Globo desempenha um papel pedagógico importante ao abordar o racismo em sua grade de programação. A decisão da emissora, que não foi condescendente com o apresentador, aponta a direção que ela pretende continuar seguindo”, afirma Ribeiro.

Produções recentes da teledramaturgia global têm dedicado mais espaço não só para a discussão do racismo, como também para protagonistas negros. A atual novela das 21h, O outro lado do paraíso, por exemplo, retrata a revolta de uma das vilãs, branca e de classe alta, ao descobrir o relacionamento do filho com uma empregada doméstica negra. “Deus me livre, já imaginou eu com um neto preto?” foi uma das ofensas proferidas pela personagem racista no capítulo desta quarta, mesmo dia em que o vídeo de Waack se espalhou pela internet. O seriado Malhação, que nesta temporada carrega o lema “Viva a diferença”, já tratou de discriminação até em abordagem policial – episódio que gerou nota de repúdio da Polícia Militar de São Paulo. Em 2016, a série teve sua primeira protagonista negra, mas recebeu críticas pelo fato de retratar a garota como uma faxineira. Tanto que, para a temporada deste ano, Malhação passou a contar com uma roteirista e mais atores negros em posições de destaque na trama.

“Por muito tempo, a Globo reproduziu o padrão racial de branquitude vigente na sociedade brasileira”, afirma Sílvio Luiz de Almeida, doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP e presidente do Instituto Luiz Gama, que promove direitos de negros e minorias. “Apesar de ter mudado um pouco a postura em suas novelas, a emissora ainda representa o negro como um subordinado. Jornalistas e apresentadores negros são minoria. Portanto, esse caso do William Waack deixa uma grande questão: será que daqui para frente a Globo vai promover, de fato, um debate qualificado sobre o racismo subterrâneo, que está longe de aparecer na novela e nos telejornais?”

Entre os princípios editoriais que abrangem todos os canais de jornalismo do grupo, consta o artigo em que “as Organizações Globo repudiam todas as formas de preconceito, e seus veículos devem se esforçar para assim ser percebidos”. Em 2015, Maria Júlia Coutinho, primeira negra a assumir a nobre função de apresentadora da previsão do tempo no Jornal Nacional, sofreu ofensas racistas em uma publicação da emissora no Facebook. Maju, como é conhecida a jornalista, recebeu imediatamente a solidariedade de colegas da casa, incluindo os companheiros de bancada William Bonner e Renata Vasconcelos, que aderiram à campanha “Somos todos Maju”.

William Bonner e Renata Vasconcelos se solidarizaram com Maju em 2015.
William Bonner e Renata Vasconcelos se solidarizaram com Maju em 2015.

Não somos racistas?

Como não foi direcionado a um alvo específico, o deboche racista de William Waack não configura em princípio uma injúria racial. Porém, para Sílvio Luiz de Almeida, o vídeo tem elementos para embasar uma ação judicial contra o apresentador. “Por seu cunho genérico, a piada pode ser enquadrada como crime de racismo, já que ofende a todas as pessoas negras. Cabe uma ação do Ministério Público, ainda que de caráter cível, para que esse tipo de conduta deixe de ser encarado como normal”, avalia o jurista, que ainda analisa a postura da Globo sob a perspectiva do livro Não somos racistas. Lançada em 2006 por Ali Kamel, diretor de jornalismo da emissora e chefe de Waack, a obra critica a adoção da política de cotas raciais no Brasil por entender que a discriminação no país é social, e não com base na cor da pele. “A Globo agora enxerga de perto a contradição das ideias difundidas pelo livro do Kamel. O racismo está presente não só na sociedade brasileira, mas também dentro da própria emissora, que, como formadora de opinião, tem grande responsabilidade na manutenção de comportamentos racistas no Brasil”, diz Almeida.

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