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O Brasil é mais racista que os Estados Unidos?

As polícias brasileiras mataram seis vezes mais que a norte-americana em 2019, sendo que 75% das vítimas eram negras. Dados piores refletem encaminhamentos diferentes para a questão racial

Protesto contra violência policial e racismo em São Paulo, em 4 de julho.
Protesto contra violência policial e racismo em São Paulo, em 4 de julho.AMANDA PEROBELLI (Reuters)
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Não. O Brasil não é mais racista que os Estados Unidos. Também não é menos. Na verdade, experiências de racismo não devem ser comparadas de forma quantificável. O essencial é que os dois países possuem um passado de escravidão e são, ainda hoje, estruturalmente racistas. Mas cada sociedade se formou de uma maneira, com valores diferentes. E cada uma tomou caminhos distintos para lidar com a questão racial, produzindo desdobramentos também muito particulares, como apontam a historiadora Luciana Brito, a socióloga Flavia Rios e o advogado e filósofo Silvio Almeida. Hoje, 13% da população dos Estados Unidos é negra. No Brasil, 55%, segundo o IBGE.

Comparações entre os dois países são normais desde pelo menos o século XIX, segundo Rios, mas ganharam força em 2020 por causa do movimento Black Lives Matter. Uma nova onda de protestos começou nos Estados Unidos após o assassinato por estrangulamento de George Floyd por um policial branco, em 25 de maio. O episódio teve impacto nos resultados na corrida eleitoral para a presidência dos Estados Unidos. Enquanto o caso ganhou atenção da imprensa internacional como consequência do racismo, a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil sem que a questão racial seja analisada cotidianamente. A Rede de Observatórios de Segurança Pública analisou mais de 7.000 ações policiais ocorridas em cinco Estados brasileiros entre junho de 2019 e maio de 2020. Em apenas uma notícia sobre essas ações foi encontrada a palavra “negro”.

Uma amostra dessa violência ocorreu poucos dias depois do assassinato de Floyd. Quando as imagens de seu estrangulamento rodavam o mundo, um policial militar de São Paulo chegou a repetir a cena e pisou no pescoço de uma mulher negra em Parelheiros, na zona sul da cidade. “Os policiais que fazem isso e depois ainda voltam para ameaçar a vítima querem dizer para a sociedade brasileira, sobretudo para a comunidade negra, que aqui não vai dar em nada”, explica Brito, professora da Universidade Federal do Recôncavo Baiano. “Ele está contando com a falta de empatia de boa parte da população, mas também com a impunidade do Estado. É aí que entra o racismo estrutural”, acrescenta.

Já nesta quinta-feira, 19 de novembro, véspera do Dia da Consciência Negra, um homem negro ―João Alberto Silveira Freitas, 40 anos― foi espancado até a morte por dois homens brancos em uma unidade do Carrefour em Porto Alegre (RS). A rede lamentou o “inexplicável episódio” e comunicou que rescindiu o contrato com a empresa responsável pela vigilância após o ato criminoso. Um dos autores era segurança do local e o outro um policial militar temporário. A brutal morte de Silveira Freitas causou comoção nas redes sociais nesta sexta.

Sociedades com valores distintos

Para Almeida, se os Estados Unidos pudessem ser retratados com um rosto humano, ele teria uma grande cicatriz, resultado de um “corte civilizatório” importante para a construção do nacionalismo estadounidense. Ele se refere às leis de segregação racial feitas após o fim da escravidão e da Guerra Civil e reconhecidas pela Suprema Corte em 1896. “Na luta pelos direitos civis, eles trataram o corte, mas nunca fizeram uma operação para dizer que esse corte não pode continuar. Desinfeccionaram o corte, mas às vezes ele sangra. Não tiraram a faca de dentro”, explica Almeida, professor do Mackenzie

Brito ressalta, porém, que a sociedade norte-americana foi construída a partir de valores que logo serviram de base para a luta dos movimentos de contestação. “Existe uma forte ideia de direitos civis desde a formulação da Constituição, no final do século XVIII. O movimento dos anos 1960 contra as leis segregacionistas não era apenas antirracista, os afro-americanos estavam reivindicando a participação na vida do país como homens e mulheres dotados de direitos”, explica a historiadora, especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e nos Estados Unidos.

E o Brasil? Além de ter sido o último país das Américas a abolir a escravidão, em 1888, Brito destaca seu passado monárquico. “O país funda as bases de sua sociedade a partir do privilégio. Nem branco nem o preto foram educados como cidadãos dotados de direitos civis. O policial no bairro de elite escuta ‘você sabe com quem está falando?’”.

Se nos Estados Unidos “branco é branco, preto é preto, e a mulata não é a tal”, como diria Caetano Veloso, tanto no Brasil como em outros países latino-americanos a questão racial “envolve a negação frontal do racismo a partir de ideologias que convencionamos chamar de democracia racial ou de embranquecimento”, explica Rios. “Essas duas ideologias conformam uma ideia mais ampla chamada de mestiçagem. Todas as sociedades latino-americanas, cada uma com sua particularidade, têm um padrão de elogio à mestiçagem”, acrescenta.

Em termos legais, significa que os “brasileiros nunca tiveram uma legislação segregacionista”. Em termos práticos, contudo, a segregação racial sempre existiu, seja na proibição de atletas negros em clubes de futebol no início do século XX, seja na perseguição —esta sim institucionalizada durante décadas— da cultura negra e das religiões de matriz africana, seja na falta de políticas públicas que deixaram a população negra abandonada a própria sorte, explica Rios. Nas palavras de Almeida, autor do best seller Racismo estrutural (Editora Polén), “enquanto a civilização como tal se entende nos Estados Unidos a partir de uma faca enfiada e que não pode ser retirada”, no Brasil “alguém está enfiando a faca em você a toda hora, está fazendo você sangrar, enquanto dizem ‘isso é coisa da sua cabeça, não tem faca nenhuma’”.

Quando os protestos pelo assassinato de Floyd explodiram nos Estados Unidos, não foi raro ver nas redes sociais questionamentos —principalmente vindos de pessoas brancas— sobre por que os negros brasileiros não demonstravam revolta similar. Brito cita mais uma vez o histórico de negação do racismo e o mito da democracia racial, que só começou a ser desmontado nos anos de 1970. “As estratégias ficam mais efetivas quando o inimigo é mais claro. Nos Estados Unidos, o trabalhador negro pode ser conservador, pode não ser ativista ou militante, mas quando sofre a discriminação racial, sabe o que aconteceu. Ele teve um letramento da família desde criança”, explica.

Massacre da população negra em números

Os vários indicadores sociais e econômicos —renda, média salarial, média de idade ao morrer, entre outros— mostram que os negros brasileiros estão em desvantagem tanto em relação aos brancos brasileiros quanto em relação aos afro-americanos —os Estados Unidos são a principal potência econômica do planeta, o que por si só também explica uma maior qualidade de vida de sua população. “E, ainda assim, os não brancos norte-americanos são os mais prejudicados economicamente. A pobreza está com eles. A morte na pandemia está com eles, os efeitos da crise de 2008 com eles, eles que perderam as casas, eles foram despejados, estão morando nas ruas, estão nas cadeias”, ressalta Almeida.

Entre os dados, cabe destacar os de segurança pública. Os números indicam que a população negra brasileira sofre um massacre —ou um genocídio, no entendimento do movimento negro— e está em pior situação que os afro-americanos. Ainda assim, em ambos os países os negros têm cerca de três vezes mais chance de morrer nas mãos da polícia que os brancos.

Nos Estados Unidos, os afro-americanos representam 13% de uma população de 333,9 milhões de pessoas, mas são 25% dos mortos pelos agentes policiais. No Brasil, os negros —a soma de pretos e pardos— representam 55% do total de 211 milhões de brasileiros, mas são 75% das vítimas do Estado. Ainda que a população norte-americana seja maior, as polícias estadunidenses mataram 1.099 pessoas em 2019, enquanto que as polícias brasileiras acabaram com a vida de 5.804 pessoas, quase seis vezes mais.

Olhando para as cifras de homicídios, o Estados Unidos registraram 14.123 ocorrências em 2018, de acordo com dados do FBI. Já o Brasil registrou 57.956 óbitos naquele ano, segundo o Atlas da Violência do IPEA. Apesar da brutal diferença numérica, a vulnerabilidade dos negros em ambos os países se faz evidente uma vez. Lá, eles foram 52,4% do total de mortos naquele ano, uma proporção alarmante ao considerar que representam apenas 13% da população norte-americana. Aqui, 75,7% dos assassinados eram negros. Além disso, o número de homicídios de negros brasileiros cresceu 11,5% em onze anos, enquanto o dos demais caiu 13%.

Para entender essas diferenças numéricas, é preciso olhar não apenas para a questão racial em cada país, mas também como se desenvolveram suas respectivas instituições policiais e de Justiça, segundo Rios. “No Brasil, a própria polícia investiga sua ação. Temos uma perícia que não é independente. Todo o processo de organização policial impede que haja uma Justiça efetiva dos agentes de repressão”, exemplifica.

Para Almeida, o Brasil desenvolveu “um aparato de violência altamente repressivo, altamente sofisticado”. O problema, portanto, não é que as instituições funcionem mal, mas sim que funcionem da forma que foram pensadas inicialmente. “O Estado brasileiro é sensacional: consegue ao mesmo tempo criar um aparato de repressão racializado que serve de modelo para outros lugares do mundo em termos de violência, mas que aparece como se racializado não fosse. Isso é genial. Tá pensando que a gente é amador?”, ironiza.

Mestiçagem, colorismo e identidade

Os diferentes encaminhamentos da questão racial também geraram entendimentos distintos sobre o que é ser negro em cada país. De acordo com Brito, ser negro no Brasil tem a ver sobretudo com o fenótipo da pessoa, isto é, a tonalidade de sua cor, a largura de seu nariz, a grossura dos lábios e a textura do cabelo, entre outras características físicas —o que impulsionou o debate sobre o colorismo, um conceito que aborda a hierarquização racial da sociedade brasileira a partir da promoção de seu embraquecimento. Essa subjetividade também faz com que as fronteiras identitárias nem sempre estejam claras —ou, como diria mais uma vez Caetano Veloso, “aqui embaixo a indefinição é o regime”.

Nos Estados Unidos, as características físicas também contam, mas ser negro está relacionado principalmente com a origem da pessoa, segundo Brito. A ideia de nação foi criada a partir do cidadão branco, enquanto que os demais foram deixados de lado do discurso nacional. Assim, a comunidade negra viu a necessidade de se autodenominar afro-americana. “Sendo esses homens e mulheres apátridas, buscam seu pertencimento com o continente africano. Então eles são afro, no sentido de pertencimento nacional, e americanos, com direitos naquele país”, explica a historiadora.

Ela usa como exemplo a senadora Kamala Harris, eleita vice-presidenta pelo partido Democrata. Filha de uma indiana e de um jamaicano, “num bairro de classe média da Bahia ela até poderia ser vista como uma pessoa morena, mulata ou até mesmo branca”, explica Brito. Nos Estados Unidos, prossegue a historiadora, “se ela telefona para a polícia para dizer que o carro foi roubado, o tratamento vai ser diferente apenas por dizer que seu nome é Kamala, não precisam nem ver como ela é”.

De volta ao Brasil, a era Vargas (1930-1945; 1950-1954) consolidou a ideia de que “o povo é misturado e que todos somos brasileiros”, ainda segundo Brito. Ao contrário dos afro-americanos, os negros brasileiros sempre estiveram incluídos no discurso nacional, mesmo que de forma desigual. Nunca houve, portanto, a necessidade de se afirmar como cidadão brasileiro, nem faz sentido a expressão afro-brasileiro. Até porque, por causa da mestiçagem, que no passado chegou a ser promovida como política pública para embranquecer a população, cidadãos considerados brancos podem ser descendentes de africanos escravizados —e é por isso, por exemplo, que as cotas sócio-raciais nas universidades públicas são destinadas para pretos e pardos, e não para afro-descendentes. “Independentemente de se a pessoa é afrodescendente ou não, o que importa no cotidiano são as características físicas. São essas características que, socialmente construídas, podem formar uma imagem de perigo, de ameaça, de desumanidade... São imagens estereotipadas”, explica Rios.

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