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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

A farsa sobre a polícia não poder entrar nas favelas

A decisão liminar do STF de suspender as operações nas comunidades permite que o Estado e a sociedade possam repensar a segurança pública

Marca de tiro no morro de São Carlos, no Rio de Janeiro, durante operação contra traficantes na semana passada.
Marca de tiro no morro de São Carlos, no Rio de Janeiro, durante operação contra traficantes na semana passada.RICARDO MORAES (Reuters)
Instituições 'amici curiae' de ação no STF*
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Nos últimos dias, temos ouvido de forma recorrente o discurso de que a polícia do Rio de Janeiro não pode agir diante da violência na cidade porque foi impedida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) de “entrar nas favelas”, a partir do acolhimento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, a chamada ADPF 635. Essa é uma afirmação duplamente falsa! Alguns esclarecimentos sobre essa ação precisam, portanto, ser feitos.

A afirmativa é falsa, primeiro, porque identifica e reduz as favelas e seus moradores ao crime e, ao mesmo tempo, entende as ações policiais —que mataram, só no ano passado, pelo menos 1.814 pessoas— como necessárias e inevitáveis. Em segundo lugar, há clara intenção de desacreditar a determinação da Suprema Corte, fazendo um perigoso jogo de chantagem para colocar a população contra a decisão que julgou a ADPF 635.

O fato é que a decisão liminar do STF de suspender as operações policiais nas favelas durante o período da pandemia da covid-19 já surtiu efeitos: houve uma diminuição de mortes da ordem de 73% em junho deste ano em comparação com o mesmo período de 2019. Ao mesmo tempo, houve redução expressiva dos crimes contra o patrimônio (39%) e contra a vida (47%) em toda a Região Metropolitana do Estado. Esses dados são fundamentais, pois significa a preservação de vidas, principalmente de pessoas negras e pobres, as maiores vítimas da política atual de segurança do Governo do Estado do Rio de Janeiro, que, desde o início, apostou na violência e na eliminação de pessoas como forma de política de governo. É de Wilson Witzelgovernador afastado— a frase “atirar na cabecinha”, vale lembrar.

O STF manteve as prerrogativas do Governo do Estado para cumprir seu dever de garantir a segurança de todos os cidadãos do Rio de Janeiro. O que não se admite mais é a utilização do aparato de segurança contra a população pobre e negra das favelas e toda a violência decorrente das operações policiais.

Por isso, mais uma vez, é preciso enfatizar que não cabe a narrativa feita por alguns setores da sociedade, como por parte da grande mídia, do Governo e dos órgãos do aparato da segurança pública, de que estariam impedidos de garantir a segurança no estado em função da ADPF. Quem leu o texto da sentença do STF sabe que lá está colocada a possibilidade de se fazer operações policiais em casos excepcionais, desde que devidamente justificadas ao Ministério Público. O que espanta aqui é o fato de que essa medida dependa de uma sentença judicial provocada por intensa mobilização da sociedade, em especial dos moradores das favelas.

O artigo 144 da Constituição Federal diz que é dever do Estado garantir a segurança e preservar a vida dos cidadãos, e é justamente esse preceito legal que precisa ser obedecido pelo governador e suas polícias. A questão central é que o modelo de segurança pública, hoje subordinada à ideia de enfrentamento armado e violência excessiva das forças policiais, descumpre o que manda a Constituição.

Por isso, é urgente a criação de outra política de segurança pública para o Rio de Janeiro. Ela deve estar baseada no uso da inteligência, no respeito às leis, na garantia da vida de todos os cidadãos e no exercício democrático do controle e fiscalização das ações policiais por parte do Ministério Público, da Defensoria Pública e da sociedade.

Nesse sentido, a decisão liminar do STF, ao refrear as ações violentas da polícia durante a pandemia, é importante porque permite que o Estado e a sociedade possam repensar a segurança pública, pondo em xeque a ideia de que não há alternativas ao enfrentamento da violência para além do uso de mais violência. A drástica diminuição no número de mortes e de feridos, desde que a polícia foi obrigada a seguir novos protocolos de segurança e a restringir suas operações, prova que é possível construir outro modelo de segurança pública.

*Redes da Maré, Casa Fluminens, Anistia Internacional, Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec), Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni/UFF), Coletivo Papo Reto, Conectas Direitos Humanos, Coletivo Fala Akari, Centro de Justiça e Direito Internacional (CEJIL), Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial, Instituto de Estudos da Religião (ISER), Instituto Marielle Franco, Justiça Global, Maré Vive, Movimento Mães de Manguinhos, Movimento Negro Unificado, Observatório de Favelas, Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, Frente de Juristas Negras e Negros (FJUNN), Comissão de Segurança Pública da OAB-RJ e Rede Fluminense de Pesquisas sobre Violência, Segurança Pública e Direitos Humanos

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