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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Ganhar a vida, perder a liberdade

No Rio, 84% dos adolescentes cumprindo medida de internação por tráfico se declaram pardos ou pretos. O que a sociedade ganha com essa forma (mal) disfarçada de encarceramento?

Manifestante em protesto com o racismo e a violência policial no Rio, em 31 de maio.
Manifestante em protesto com o racismo e a violência policial no Rio, em 31 de maio.PILAR OLIVARES (Reuters)
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O assassinato do afroamericano George Floyd por um policial branco em Minneapolis, nos Estados Unidos, resultou em uma onda de protestos antirracistas que se espalhou mundo afora, inclusive no Brasil. Lá como cá, os aspectos mais visíveis do racismo estrutural, traço marcante e constituinte das nossas histórias, transparecem na letalidade policial e no encarceramento em massa, problemas denunciados nessas manifestações como entraves agudos à democracia e ao exercício da cidadania. A advogada e ativista estadunidense Michelle Alexander argumenta que, sob a justificativa da “guerra às drogas”, as prisões se tornaram a mais recente forma de controle social da população negra naquele país.

No Brasil, e em especial no Rio de Janeiro, a “guerra às drogas” também funciona para legitimar a morte de jovens negros e pobres pela polícia, além de justificar seu encarceramento em proporções absolutamente desiguais, se considerados negros e brancos e seu tamanho na população. Essa faceta cruel do racismo se repete ainda no sistema socioeducativo fluminense, uma réplica do sistema prisional.

Uma pesquisa recém lançada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) sobre as relações entre tráfico, trabalho e o sistema socioeducativo na cidade do Rio de Janeiro revelou que, entre os adolescentes cumprindo medida de internação por tráfico na capital, 84% se declaram pardos ou pretos, proporção que ultrapassa em 30% o percentual de autodeclarados pretos e pardos na população fluminense em 2018 (54%), segundo dados do IBGE.

Na capital fluminense, cerca de 22% dos jovens privados de liberdade cumprem medida de internação por atos infracionais relacionados ao tráfico de drogas, o que, em si, é absolutamente preocupante, na medida em que esse tipo de infração é considerada leve de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, que está completando 30 anos, e não deve resultar em privação da liberdade. Mais grave ainda é a constatação de que o sistema socioeducativo é uma máquina perversa de violação de direitos na qual maus-tratos, privação do acesso a itens básicos de higiene, superlotação, falta de estudo e lazer fazem parte do cotidiano.

A história dos cem adolescentes entrevistados nessa pesquisa, acusados de tráfico de drogas, é a história de um ciclo vicioso de violência, arbítrio e falta de oportunidades. De acordo com os dados do CESeC, 59% desses jovens afirmaram ter algum familiar preso e 39% já tiveram algum parente assassinado —a maioria pela polícia ou pela milícia—. A pesquisa mostra que esses jovens começam a trabalhar muito cedo —mais da metade com menos de 14 anos— em bicos mal remunerados e com longas jornadas, tendo a vida escolar absolutamente prejudicada.

São jovens que crescem em meio a fuzis e corpos sem vida e acabam encontrando oportunidades em um comércio perigoso, mas sempre de portas abertas àqueles que necessitam sustentar a si próprios e à família. Elencado como uma das piores formas de trabalho infantil pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), o tráfico de drogas, segundo mostrou a pesquisa do CESeC, impõe a esses jovens uma jornada de trabalho de 12 horas por dia, em média, com remuneração de três a dez reais por hora: são jovens que estão vendendo não sua força de trabalho, mas sua energia vital que vai acabar por levá-los à morte ou a prisão, como adultos. E, mais grave ainda, os dados revelam que a grande maioria dos adolescentes acusados de tráfico de drogas entrou num sistema que se diz “socioeducativo” sem ter cometido qualquer ato de violência propriamente dito.

Mais vítimas que algozes, esses jovens acabam privados da liberdade em unidades onde se reafirma sua condição supostamente “marginal”. Separados por facções, lá encontram a superlotação, o ócio, a violência e o desprezo. São formados pelo próprio Estado em uma carreira criminal que, cedo ou tarde, encontra eco no homicídio praticado por policiais, milicianos, justiceiros e rivais, ou nas cadeias do sistema penitenciário, logo que cruzam a linha da maioridade.

Se considerarmos um sistema que devia cumprir funções “socieducativas”, mas que se exime de tal responsabilidade, cabem as seguintes perguntas: para que, então, serve esse sistema? O que justifica, efetivamente, a internação de adolescentes, na maioria sem histórico de violências ou de graves ameaças a terceiros? O que os adolescentes —e a sociedade como um todo— ganham com essa forma (mal) disfarçada de encarceramento? Que espécie de segurança pública governantes, policiais, promotores e juízes acreditam construir quando despejam centenas de jovens em unidades que reforçam a linguagem da violência e do crime, em vez de oferecer caminhos alternativos para superá-la? O que se espera que esses adolescentes levem como exemplo para a vida depois de passarem meses, até anos, enclausurados em unidades onde a lei é sistematicamente violada e onde direitos mínimos, como educação e saúde, são sonegados?

Não há outra conclusão possível senão a de que este é um projeto —muito bem sucedido— de extermínio da juventude negra em suas mais variadas formas. Falar em “socioeducação” e ao mesmo tempo admitir a existência desses verdadeiros presídios juvenis significa aceitar que a Constituição Federal e o ECA são letra morta. E que não são só os adolescentes internados, mas também as instituições estatais, que estão “em conflito com a lei”.

Diogo Lyra é doutor em Sociologia pelo Iuperj. Julita Lemgruber é socióloga, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) e ex-diretora-geral do Departamento do Sistema Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro. Paula Napolião é pesquisadora do CESeC e doutoranda em Antropologia pela UFRJ.

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