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Coluna
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Identitarismo branco

Demorou muito tempo até que eu percebesse o quanto a pretensa especificidade da filosofia ocidental era um dos mais brutais dispositivos coloniais já inventados

Estátua de Voltaire, filósofo iluminista, atacada com tinta vermelha em Paris, em 22 de junho.
Estátua de Voltaire, filósofo iluminista, atacada com tinta vermelha em Paris, em 22 de junho.GONZALO FUENTES (Reuters)
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A noção de “identidade” conseguiu colocar-se no centro dos embates políticos de nossa época. Ela trouxe novos problemas e novas sensibilidades com as quais precisaremos lidar no interior das lutas sociais contemporâneas por reconhecimento. Para ela, convergem questões práticas e teóricas complexas que concernem a integralidades dos sujeitos, pois tocam a gramática social naquilo que ela tem de mais estruturador, a saber, em suas dinâmicas de relação e de unidade.

Muitos utilizam “identidade” para desqualificar lutas que questionam práticas seculares de exclusão naturalizadas sob as vestes de discursos universalistas. Assim, na perspectiva desses críticos, as lutas ligadas a movimentos feministas, negros, LGBT+ seriam em larga medida “identitárias” porque visariam, na verdade, criar uma nova geografia estanque de lugares de poder. Lugares esses indexados por identidades específicas.

Muitos dos sujeitos organicamente vinculados a tais lutas lembram, no entanto, que até para não cristão vale o dito do Evangelho: “Tira primeiro a trave do teu olho, e então poderás ver com clareza para tirar o cisco do olho de teu irmão”. Ou seja, antes de acusar qualquer um de regressão identitária seria o caso de começar por se perguntar sobre o identitarismo naturalizado pela hegemonia de uma história violenta de conquistas e sujeição operada, majoritariamente, por brancos europeus.

Essa colocação é astuta e irrefutável. Ela não afirma que a naturalização de identidades e suas fronteiras é o horizonte efetivo das lutas que nos atravessam, mas que falar em qualquer experiência de universalidade concreta está interditada até que o foco mais forte de identidade seja deposto, e esse foco encontra-se normalmente do lado dos que atacam certas lutas sociais por serem “identitárias”.

Se me permitem, gostaria de usar a primeira pessoa do singular para descrever um aspecto desse problema, pois há vários outros que deverão ser acrescidos. Quando ainda era estudante de filosofia, lembro de um colega perguntar a um professor sobre a razão pela qual não estudaríamos, em nosso curso, filosofia chinesa, indiana, africana, entre outros. “Simplesmente porque não há”, foi a resposta. Em todo lugar que não tivesse sido marcado pelo “milagre grego” o que haveria era a prevalência do mito. Razão, logos, era uma invenção grega que nos havia salvo, “nós, os ocidentais”, da cegueira do pensamento mítico e de seus limites à autorreflexão.

Essa razão, esse logos seria não apenas uma capacidade argumentativa de dar e reconhecer razões, mas uma forma de vida capaz de racionalizar processos sociais em direção à realização de uma sociedade livre composta por sujeitos autônomos (“autonomia”: mais uma invenção pretensamente grega). Assim, não apenas a razão seria o presente do ocidente ao mundo, mas também a liberdade.

Demorou muito tempo até que eu fosse capaz de perceber o quanto essa pretensa especificidade da filosofia no ocidente era um dos mais brutais dispositivos coloniais já inventados, era o núcleo de um dos mais resilientes processos identitários que conhecemos. Pois, se a Europa com sua matriz grega era um mar de filosofia cercada de mito por todos os lados, então qual destino teríamos todos a não ser querermos nos tornar “bons europeus” e a abraçar os processos de “modernização” que começaram em seu solo, a nos abrirmos à “maturidade” de sua forma de vida? Outras formas de pensamento poderiam nos oferecer belos mitos, ensinamentos morais edificantes, mas muito pouco a respeito de processos concretos de emancipação e interação racional com o mundo.

Mas, se assim fosse, havia uma conta que teimava em não fechar. Quando chegaram à América, vários jesuítas ficaram estarrecidos com o que encontraram entre vários povos ameríndios. Não foi canibalismo ou a pretensa selvageria que os estarreceram. Deixemos falar um desses jesuítas, que escreveu em 1642 sobre um povo que habitava o atual Quebec: “Os Neskapi imaginam que eles devem, por direito de nascimento, gozar da liberdade dos burros selvagens, sem respeitar a quem quer que seja, salvo quando sintam vontade. Eles me criticaram cem vezes por termos medo de nossos capitães, enquanto eles riem e zombam dos seus. Toda a autoridade de seus chefes está no domínio da língua, pois eles são potentes na medida em que são eloquentes, e mesmo se eles morrem de falar, eles só serão obedecidos se agradarem aos selvagens”. Povos sem medo, cujas relações a autoridades se fundam na eloquência, ou seja, na capacidade contínua de argumentação racional e persuasão. Não era estranho encontrar gente como o padre Lallemant em 1644, dizendo a respeito dos Wendats do Quebec: “Não creio que existam pessoas sobre a terra mais livres que eles”. Sua capacidade de argumentação, diz o padre, era maior do que a de um francês médio, já que eles viviam em sociedades nas quais o poder precisa a todo momento dar e reconhecer razões para agir. Era isso que efetivamente estarreciam os jesuítas, a saber, a descoberta de que eles eram mais livres do que “nós”.

Ou seja, quando alguém como Thomas Hobbes dizia, na mesma época, que no estado de natureza encontrávamos “o homem como lobo do homem”, para completar lembrando: “os povos selvagens de muitos lugares da América, com exceção do governo de pequenas famílias, cuja concórdia depende da concupiscência natural, não possuem nenhuma espécie de governo, e vivem nos nossos dias daquela maneira brutal que antes referi”, isso só se sustentava como, digamos, uma “fake news”. Bastava ler o padre Lallemant. E quando o “tolerante” Locke dizia que, mesmo sendo livres, faltava a esses povos segurança porque lhes faltavam Estado e outras instituições políticas nossas, alguém deveria ter lembrando a Locke que termos como “estado”, “nação”, “povo” só tem algum sentido quando nos perguntamos contra quem eles são mobilizados.

Em suma, todos esses dispositivos de pensamento eram peças de um profundo identitarismo branco que visava não apenas jogar na invisibilidade formas outras de vida, mas principalmente impedir que essa experiência de descentramento produzida pelo contato com a alteridade implicasse um processo efetivo de transformação. O pretenso universalismo dessas formas de pensar era, na verdade, um sistema defensivo contra a força de descentramento própria a um mundo em expansão potenciał.

Lembrar desses momentos da filosofia ocidental é apenas uma forma de insistir como a universalidade efetiva nunca existiu e como tudo feito em seu nome foi marcado pelo saque e pelo roubo. Foi apenas quando ela se voltou contra si mesma e contra os horizontes sociais que a produziram que a experiência ocidental do pensamento esteve a altura de seu objeto. Mas, fora desses momentos, processos de segregação e silenciamento foram a verdadeira norma.

Não haveria outra forma de terminar esse artigo que não se lembrando de um dos maiores acontecimentos históricos que conhecemos, a saber, a revolução haitiana que se inicia em 1791. Ela marca a luta de libertação daqueles que até então tinham sido colocados na condição de “coisas”, de “escravos” pelo poder colonial. Em 1804, quando a libertação estava consolidada, os haitianos promulgam uma impressionante constituição. Vale a pena lembrar aqui dos artigos 12, 13 e 14. O primeiro afirma: “Nenhum branco, independente de sua nação, colocará o pé neste território a título de senhor ou proprietário, e não poderá no futuro adquirir propriedade alguma”. Mas o artigo 13 produz uma especificação: “O artigo precedente não tem efeito algum para as mulheres brancas naturalizadas haitianas pelo Governo, nem para as crianças nascidas ou a nascer delas. Estão ainda compreendidos neste presente artigo, os alemães e poloneses naturalizados pelo Governo”.

De fato, ao tentar reescravizar os haitianos, Napoleão enviou tropas nas quais havia uma legião de 5.200 poloneses. Ao chegar no campo de batalha, eles descobriram que não se tratava de uma revolta de prisioneiros, como os franceses haviam lhes contado, mas uma insurreição pela liberdade. Muitos soldados então desertaram e começaram a lutar ao lado dos haitianos. Eles foram para o Haiti acreditando que estavam a defender os “ideais iluministas”, mas logo compreenderam que tais ideias estavam, de fato, do outro lado do campo de batalha.

Daí o sentido do artigo 14 da Constituição haitiana: “Toda acepção de cor dentre as crianças de uma mesma família, cujo chefe de Estado é o pai, deve necessariamente cessar. Os haitianos serão conhecidos apenas através da denominação genérica de Pretos”. Ou seja, a extrema inteligência política dos haitianos lhes permitiu fazer de um termo até então usado como marca de exclusão o nome de uma verdadeira universalidade por vir. O nome de algo que indica o vetor efetivo de uma sociedade em revolução. Para os haitianos, pretos serão também aqueles que lutaram a seu lado por uma sociedade radicalmente livre e igualitária, que não querem mais defender essa sociedade marcada pela espoliação, silenciamento e segregação, mesmo que eles sejam brancos como um polonês.

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