“O PM me deu um chute que quebrou minha tíbia. Pisou no meu pescoço e esfregou meu rosto no asfalto”
Dona de bar na zona sul de São Paulo agredida por policiais relata a abordagem e afirma sentir medo. Para tenente-coronel aposentado, a ação, revelada pela TV, foi "repugnante"
A dona de um bar em Parelheiros, na zona sul da cidade de São Paulo, teve a perna quebrada e o pescoço pisado por um policial militar. A abordagem violenta aconteceu no dia 30 de maio, conforme revelado pelo Fantástico, da TV Globo. Passado um mês e meio, a mulher, que é negra, ainda sente medo.
Na tarde desta segunda-feira (13/7), ela conversou com a Ponte sob a condição de anonimato por questões de segurança. A vítima conta que, no dia das agressões, ela nem sequer foi abordada pelos policiais. O que aconteceu, relata, foi que um policial estava dando golpes em um cliente e ela tentou intervir.
Os PMs haviam sido acionados pelo som alto em um carro. Chegaram ao local por volta de 15h30, conforme ela conta. A mulher lembra que o homem se negou a entregar as chaves do carro, o que irritou os policiais, dando início às agressões.
“O rapaz já tinha apanhado bastante, estava caído. Pedi para o PM parar, aí o outro me jogou duas vezes na grade do bar”, conta, citando ter recebido três pancadas antes de ter o pescoço pisado. “Fiquei tonta com os golpes, ele me deu uma rasteira. O chute pegou na canela e quebrou minha tíbia. Quando eu disse isso, ele falou ‘quebrou porra nenhuma’ e pisou no meu pescoço”, relata a mulher.
Traumatizada, diz não lembrar ao certo quanto tempo o PM permaneceu com a bota apoiada em seu pescoço. “Não foi pouco, não. Colocou todo o peso do corpo. Meu rosto esfregou o asfalto enquanto ele me algemava”, explica. Depois, o agente ainda colocou o joelho em seu pescoço e sua costela quando a mulher estava jogada na calçada.
Após a ação, os PMs levaram a mulher ao Pronto Socorro Balneário São José, também na zona sul de São Paulo. Dali, a encaminharam para o 101º DP (Jardim Imbuias), onde ela passou a noite. Os policiais disseram que ela cometeu desacato, agressão e resistência à prisão.
A dona do bar passou por cirurgia para colocar uma haste na tíbia. Está com recomendação de ficar por três meses em repouso. “Tenho má circulação, a recuperação é mais lenta”, explica.
Neste tempo, a mulher conta viver graças à ajuda de familiares e conhecidos por não poder abrir o bar, sua única fonte de sustento. “Toda semana vou no Hospital no Grajaú, fui lá hoje. Está indo devagar, sinto muitas dores. A perna está extremamente inchada”, descreve.
À Ponte revela não saber o que esperar da PM. Por ter bar, explicou ser normal conversar com os policiais que patrulham a área e nunca viveu algo similar. “Os policiais sempre souberam conversar, sempre tratei com respeito. Sempre respeitei a farda. Infelizmente, não vejo mais essa farda com bons olhos”, lamenta.
Pisar no pescoço “é totalmente fora dos limites”
O tenente-coronel aposentado da PM paulista Diógenes Lucca classifica a ação como “repugnante”. Segundo ele, nada justifica a ação dos policiais, mesmo se as pessoas no bar tivessem reagido à abordagem. “Completamente fora do adequado, das práticas policiais. Uma coisa é usar energia, outra é uma coisa brusca como essa. Não é isso que a polícia prega”, afirma.
Lucca cita que há regras de passo a passo de uma abordagem e que pisar no pescoço é “totalmente fora dos limites”. “Não podemos ter ações assim. Se acontece uma tragédia dessa, arrebenta todo mundo. Os bons policiais ficam envergonhados”, define.
Segundo o coronel, o treinamento prometido pelo governador João Doria (PSDB), em resposta a casos recorrentes de mortes e violências da PM, é insuficiente para reparar uma cultura.
“Tem que fazer um trabalho amplo, uma mudança cultural e punir severamente quem age fora das normas. Jamais justificar uma ação. [É preciso] parar de ter apenas o discurso de ‘não compactuamos’. Tem que enfrentar o problema”, afirma.
Por conta dos vídeos da ação, a deputada estadual Erika Hilton (PSOL) cobrou respostas por parte do secretário da Segurança Pública de São Paulo, general João Camilo Pires de Campos (PSDB), e ao comandante da PM, coronel Fernando Alencar.
Segundo ela, o vídeo é a prova de como o racismo institucional do Brasil se reproduz por meio da PM. “Acabamos naturalizando a violência policial como sendo só mais um caso, não um violação de direitos humanos, uma tentativa de homicídio”, relata.
Erika destaca o fato de as vítimas, de forma recorrente, serem negras. “A PM olha o corpo negro como sendo abjeto. Não constrange de ter essas cenas violentas filmadas, como esse caso e tantos outros”, afirma.
A deputada defende o debate de raça e dos direitos humanos como forma de mudar esta polícia “genocida”. “Só vamos frear e acabar com a violência policial quando nós tivermos uma corporação que discuta racismo institucional, reconheça o racismo como modus operandi”.
Outro lado
A Ponte questionou a PM sobre a ação. Em nota, a corporação explicou que os policiais atenderam uma ocorrência de “de desobediência ao isolamento social, devido à covid-19, e, segundo os populares, em um ‘bar’ que estaria aberto, onde estariam pessoas aglomeradas e consumindo bebidas alcoólicas”.
Já a SSP-SP explicou que há um inquérito policial militar investigando a ação dos PMs em Parelheiros. A pasta os afastou do serviço de rua, colocando em serviço administrativo (com salários mantidos) durante o decorrer das investigações.
“A SSP não compactua com desvios de conduta de seus agentes e apura rigorosamente todas as denúncias”, diz a pasta, citando que desde o último dia 1º “policiais militares de todos os níveis hierárquicos participam programa de treinamento, visando a reforçar os conhecimentos e técnicas da instituição”.
A reportagem questionou o Ministério Público sobre o que será feito pelo órgão, responsável pelo controle externo das polícias. Segundo o promotor Arthur Lemos, haverá o acompanhamento da investigação na Corregedoria da Polícia Militar por meio da Promotoria Militar.
Reportagem originalmente publicada no site da Ponte Jornalismo em 13 de julho de 2020.
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