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A memória de Santos Dumont pede socorro

Acumulando dívidas e sem dinheiro para reforma, Casa de Cabangu, tributo ao maior inventor brasileiro na Serra da Mantiqueira, tenta evitar o destino do Museu Nacional

Casa de Cabangu, em Santos Dumont, na Zona da Mata mineira.
Casa de Cabangu, em Santos Dumont, na Zona da Mata mineira.B.P.

Tudo na cidade com menos de 50.000 habitantes, na Zona da Mata mineira, remete à figura que, de tão célebre, serviu para rebatizá-la. Pelas ruas, as alusões surgem a cada passo. Uma escola chamada Santos Dumont, o hotel 14-bis ou a pizzaria Demoiselle, em referência ao melhor avião já projetado pelo inventor. Na praça central, uma réplica da Torre Eiffel, contornada pelo aviador em um dirigível no fim do século XIX, um busto e uma estátua do filho ilustre. Mas seu cartão postal é a Casa de Cabangu, encravada no alto da Serra da Mantiqueira, onde Alberto Santos Dumont nasceu e viveu como fazendeiro. Transformada em museu, a casa sofre com a falta de recursos para sua conservação. “Além da memória de um dos nomes mais importantes da aviação mundial, temos aqui uma parte valiosa da história do Brasil que corremos o risco de perder”, diz Mônica Castello Branco, diretora da fundação que cuida do museu, ao apresentar o acervo.

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Sai ano, entra ano, muda o partido ou a administração de governos, o Cabangu segue espelhando o descaso que acomete a maioria dos museus brasileiros. Em tempos de crise econômica, então, cultura se torna item supérfluo no orçamento. Sem dinheiro em caixa, a Casa Natal de Santos Dumont já fechou as portas por duas vezes em menos de 12 meses. A última delas no começo de janeiro. Por dívidas trabalhistas acima de 150.000 reais com seus quatro funcionários, o museu ficou dois dias fechado. Só reabriu após a prefeitura de Santos Dumont se comprometer a regularizar os repasses mensais, que acumulam mais de um semestre em atraso, até fevereiro. “Por causa da crise no Governo, não tivemos mais condições de pagar a subvenção ao museu”, afirma o secretário de administração da cidade, José Geraldo de Almeida, referindo-se ao débito superior a 13 milhões de reais do estado com o município.

O museu é gerido por três partes. Além da Fundação Casa de Cabangu e da Prefeitura, que por meio de um convênio destina 12.000 reais por mês, a Escola de Cadetes da Aeronáutica (EPCAR) é responsável pela segurança e manutenção da área externa. Também enfrentando cortes orçamentários, a EPCAR reduziu de quatro para três o número de capinas que realiza todo ano no espaço. O mato alto praticamente devora a entrada da casa. Um enorme painel com a foto de Santos Dumont montado a cavalo é corroído por maritacas que se aninham no telhado. Uma infestação de mangavas, espécie de abelha peluda que perfura madeiras, obrigou a interdição de três pavilhões do parque, incluindo a praça de alimentação e recreação. Infiltrações e vazamentos já danificaram os livros de aviação da biblioteca. Há fiação exposta nos oito cômodos, com risco iminente de curto-circuito. “Não podemos deixar que aconteça a mesma tragédia do Museu Nacional”, adverte Mônica ao lembrar o incêndio que destruiu o maior museu de história natural da América Latina, no Rio de Janeiro.

Em outubro, o museu promoveu um financiamento coletivo para bancar salários atrasados dos funcionários e reparos mais urgentes na estrutura da casa. Apesar da mobilização pela cidade, apenas 7.000 reais foram arrecadados, menos de 3% da meta. “Tivemos o apoio de muitos, a crítica de alguns e a ajuda de poucos”, resume o presidente da fundação, Tomas Castello Branco. A receita com visitantes, que variam entre 800 e 1.500 por mês, é irrisória, já que a Casa cobra 2 reais pela visita somente aos sábados e domingos. Há pouca informação disponível sobre a localização e o horário de funcionamento para o público. Por falta de verba para manter o serviço de hospedagem na internet, o site do museu está fora do ar há pelo menos dois anos.

Repouso entre turbulências

Oswaldo Henrique Castello Branco dá nome à rodovia de 16 quilômetros que liga a área urbana de Santos Dumont à Casa de Cabangu. Em julho de 1932, dois dias depois da morte do brasileiro mundialmente conhecido como patrono da aviação, o jornalista e historiador esteve em sua antiga casa para recolher pertences que, mais tarde, dariam origem ao museu – só foi inaugurado em 1973. Foi por iniciativa de Oswaldo que, ainda em julho de 32, um decreto estadual mudou o nome da cidade de Palmyra para Santos Dumont em sua homenagem. Acostumados às batalhas travadas pelo pai no esforço de preservar a memória do aviador, os irmãos Tomas e Mônica se apegam ao vínculo familiar com a história do museu para não esmorecer diante da rotina de penúria financeira.

Réplica do avião 14-bis exposta no museu de Santos Dumont.
Réplica do avião 14-bis exposta no museu de Santos Dumont.B.P.

Mônica, 78 anos, começou a frequentar a casa ainda adolescente. Recorda-se não só da inauguração, celebrada no centenário de nascimento de Dumont, como também das comitivas de intelectuais e autoridades que se juntaram à força-tarefa para transformar o espaço em museu. Oswaldo morreu em 1995, mas legou à família a resiliência de lutar pelo maior patrimônio cultural da cidade. “Apesar dos obstáculos, cuidamos de tudo com muito amor”, conta Mônica. Embora reverências e objetos do inventor estejam espalhados pelo mundo inteiro, como uma estátua condecorativa em Saint-Cloud, na França, e “A Encantada”, casa onde morou em Petrópolis, também convertida em museu, Cabangu reúne a mais completa coleção sobre a obra de Alberto Santos Dumont.

Entre as relíquias conservadas a duras penas estão móveis idealizados pelo inventor, a engenhoca do chuveiro de água aquecida e um lago com chafariz operado por gravidade que ele projetou. Roupas, chapéus e talheres usados pelo antigo dono da casa também integram o acervo. O busto do lado de fora esclarece porque ele assinava “Santos=Dumont”. Com nacionalidade franco-brasileira, o sinal de = era a mostra de que valorizava igualmente suas raízes. As correspondências trocadas com o caseiro que cuidava da propriedade enquanto ele viajava para provar seus experimentos revelam uma faceta pouco conhecida de Santos Dumont: a de fazendeiro, preocupado com cada mínimo detalhe, do funcionamento da roda d’água à produção de leite do gado holandês.

Seu pai, o engenheiro Henrique Dumont, havia ocupado a casa no período em que ajudou a construir a ferrovia Dom Pedro II, que até hoje passa em frente ao terreno. Santos Dumont, porém, viveu apenas dois anos da infância no lugar, já que a família se mudou para o interior do Rio de Janeiro após o término da estrada de ferro. Só voltou à casa natal em 1918, quando o Governo federal, autorizado pelo Congresso, doou-lhe as terras em reconhecimento pelos seus trabalhos. Atualmente, no museu, estão depositadas as cinzas de Anésia Pinheiro Machado, primeira mulher a voar no Brasil e premiada por Dumont pelo feito que se tornou um símbolo de orgulho do movimento feminista.

A Casa de Cabangu ainda abriga réplicas dos principais aviões de Santos Dumont, Demoiselle e 14-bis. Detalhes e informações de jornais especializados explicam por que o brasileiro é considerado o pai da aviação, apesar de, três anos antes do voo com o 14-bis, em outubro de 1906, os irmãos Wright tivessem voado em seu Flyer nos Estados Unidos. As singularidades do invento de Dumont, no entanto, saltam aos olhos. O 14-bis foi pioneiro ao apresentar o conceito dos ailerons, com os quais o aviador podia controlar a inclinação lateral do avião por cordas amarradas aos ombros, e o trem de pouso, que, ao contrário do Flyer, propulsado aos céus por uma catapulta, permitia a decolagem sem auxílio externo. Além disso, a exibição de Santos Dumont nos campos de Bagatelle, em Paris, ficou marcada como o primeiro voo documentado de um aparato mais pesado que o ar.

Instalado na Serra da Mantiqueira, Dumont, que àquela altura sofria de esclerose múltipla, encarava a lida na fazenda como um refúgio para se livrar da depressão. Ou, como ele mesmo dizia, uma forma de “tratamento para os meus pobres nervos”. Em fevereiro de 1926, já afastado de Cabangu e sentindo-se culpado por ter sugerido, logo no começo do século, seu maior invento como arsenal para o exército francês, escreveu ao embaixador brasileiro na Sociedade das Nações, Afrânio Melo Franco, baseado em Genebra, para que abolisse a utilização de aviões como armas de guerra. A proposta nunca chegou a ser apresentada ao conselho, já que uma crise diplomática culminou com a saída do Brasil da cúpula.

Mônica Castello Branco, diretora da Fundação Casa de Cabangu.
Mônica Castello Branco, diretora da Fundação Casa de Cabangu.B.P.

No mesmo ano, ele também rejeitou a proposta de um senador para que fosse nomeado general das Forças Armadas. A desilusão de constatar que esquadrilhas atiravam bombas pelo ar na Primeira Guerra Mundial aprofundou seu quadro depressivo. Suicidou-se aos 59 anos em um hotel no Guarujá durante a Revolução Constitucionalista de 1932. Uma das versões para sua morte sugere que ele se desesperou ao saber que aviões do Governo central haviam bombardeado o Campo de Marte, na capital paulista.

Muitas das cartas de Santos Dumont, inclusive a remetida ao embaixador Afrânio Melo Franco, estão em posse da Fundação Casa de Cabangu, mas não podem ser expostas porque o museu não tem dinheiro para restaurar e emoldurá-las. As dívidas impedem que a instituição disponha da Certidão Negativa de Débitos necessária para captação de recursos via lei de incentivo à cultura. Um projeto de reforma da casa, orçado em 12 milhões de reais, foi apresentado pela prefeitura ao Governo de Michel Temer. Nunca saiu do papel.

Sem ações de divulgação dentro e fora de Minas Gerais, as visitas têm se resumido basicamente a excursões de escolas da região e aos poucos turistas que se dão conta de estarem na cidade do maior aviador de todos os tempos. “Conservar o museu é um ato de resistência”, diz Mônica Castello Branco, limpando a poeira de um dos retratos de Santos Dumont na parede da sala. “Se as pessoas tivessem noção do tamanho desse homem na história, não estaríamos nesta situação.”

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