90 anos de história do Brasil contados pelo concreto
Exposição 'Infinito Vão', em cartaz em Portugal até abril, reúne as peças mais emblemáticas da arquitetura brasileira
Lúcio Costa se desculpa. Explica em uma carta que não pretendia competir —e diz que, na verdade, não compete. Queria apenas se desvencilhar de uma solução possível, que não foi procurada, mas surgiu, por assim dizer, já pronta. Uma afirmação um tanto poética feita por um urbanista para apresentar sua proposta no concurso que elegeria o melhor projeto para o Plano Piloto de Brasília. Seu objetivo era fazer "uma cidade planejada para o trabalho ordenado e eficiente, mas ao mesmo tempo viva e aprazível, própria ao devaneio e à especulação intelectual, capaz de tornar-se, com o tempo, além de centro de Governo e administração, num foco de cultura dos mais lúcidos e sensíveis." Seu projeto simples, desenhado a lápis, consistia em dois eixos, cruzando-se em ângulo reto, "ou seja, o próprio sinal da cruz". Acabou vencedor. E depois tomou forma com os famosos monumentos desenhados por Oscar Niemeyer.
A carta enviada ao júri era o atestado do nascimento de um Brasil que queria ser moderno, mas que poucos anos depois enfrentaria uma retrógrada ditadura militar. É ela que recebe o visitante na porta da exposição Infinito Vão – 90 anos de arquitetura brasileira, em cartaz até 28 de abril na Casa da Arquitectura de Portugal, em Matosinhos. Num recorrido pelas principais construções do país, ela expõe as linhas de base do Brasil. É a primeira exposição a sair do acervo permanente da Coleção Brasil da Casa, que por dois anos reuniu projetos brasileiros originais, sob curadoria dos arquitetos Fernando Serapião e Guilherme Wisnik auxiliados por um time de arquitetos e estudantes de Recife, São Paulo e Rio. Mas não só isso. "Interessava tudo. A ideia era esgotar o material sobre aqueles trabalhos", explica Wisnik. Formou-se, assim, a mais extensa coletânea sobre arquitetura brasileira fora do Brasil, um período de 90 anos contado com material original de 103 projetos, mais de 4.700 peças físicas e 45.500 peças digitais, entre textos, desenhos, fotos, cartas, anotações, críticas e maquetes fornecidas por 150 doadores —de órgãos públicos às famílias dos arquitetos.
É um caminho que começa em 1928, com a Casa Modernista do russo Gregori Warchavchik, que com suas linhas retas e brancas cravadas na Vila Mariana, em São Paulo, representava um escândalo para Brasil acostumado com o neocolonial. Segue com um fac-símile do poema "Azul e Branco", feito por Vinícius de Moraes para louvar o edifício do Ministério da Educação e Saúde, no Rio, outro dos ícones do modernismo brasileiro, também projetado por Lúcio Costa (1936). De autoria de Costa há ainda uma carta direcionada ao poeta Carlos Drummond de Andrade, que naquele ano de 36 ocupava a chefia de gabinete do ministério —o arquiteto cobrava os pagamentos atrasados dos colaboradores da obra, entre eles o de Niemeyer, "sem [cuja] ajuda não se teria conseguido tão feliz resultado". Há ainda retratos feitos por Warchavchik na década de 1950 que jogam luz na influência estrangeira da arquitetura da época: com os italianos Pietro Maria Bardi e Lina Bo Bardi, o polonês Lucjan Korngold e Rino Levi (um brasileiro que se formou em Roma).
Anos depois, chegam os viadutos, as pontes... os símbolos duros dos anos de ditadura. O andamento heroico e otimista da arquitetura de até então se retrai, destaca Wisnik. E a fotografia de Cristiano Mascaro de 1979 lembra de quando os estudantes da Faculdade de Arquitetura da USP organizaram um ato para receber três de seus professores aposentados forçosamente pelo regime militar. Entre eles, Paulo Mendes da Rocha, que logo depois construiu o Museu Brasileiro da Escultura (MuBe), cujos croquis estão ali expostos. Há algo de mais recente, como o projeto de Eduardo de Almeida para a biblioteca Brasiliana (2013) na USP ou o bloco do hotel onde foram feitas todas as anotações da reunião que deu origem ao prédio do Instituto Moreira Salles, na avenida Paulista (2017).
Um acervo rico, que poderia servir bem ao Brasil, caso o país tivesse por hábito cultivar suas memórias (e não perdê-las em incêndios que demolem prédios —como o edifício Wilton Paes de Almeida, no Largo do Paissandu—e história —como a guardada no Museu Nacional, no Rio). "A gente, como herdeiro de um legado, muitas vezes não sabe onde colocá-lo. Tem uma quantidade enorme de memória e história que vai para o lixo simplesmente porque as pessoas não sabem o que fazer", afirma Ana Wilheim, filha do urbanista Jorge Wilheim, responsável pelo projeto do Parque Anhembi, em São Paulo. Ela doou para a Casa da Arquitectura os originais do centro de eventos, um prédio que neste momento sofre a ameaça da demolição, por ser parte de um projeto de privatização da Prefeitura de São Paulo. Nuno Sampaio, diretor executivo da Casa, e idealizador do acervo explica: "Nosso objetivo era fazer com que a própria sociedade brasileira entenda que possui arquitetos que precisam ser valorizados." Digitalizado, todo o acervo ficará disponível na internet. Os originais, no entanto, ficarão guardados do outro lado do oceano.
A jornalista viajou a convite da Casa da Arquitectura.
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.