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Ritmo lento na vacinação contra a covid-19 no Brasil favorece novas cepas do vírus

2 milhões de pessoas receberam a primeira dose do imunizante em 14 dias, ritmo inferior a outras campanhas no país. Nesta velocidade, país levaria mais de três anos para completar imunização. Vácuo na coordenação nacional faz Estados agirem de forma desarticulada

Uma idosa faz o formato de um coração com as mãos ao mostrar o atestado de vacinação contra covid-19 em São Paulo.
Uma idosa faz o formato de um coração com as mãos ao mostrar o atestado de vacinação contra covid-19 em São Paulo.Sebastião Moreira (EFE)
Beatriz Jucá

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O Brasil vacinou aproximadamente 2,5 milhão de pessoas contra a covid-19 ao longo de 17 dias. A média até terça-feira (2) era de 147.000 doses aplicadas por dia e com diferenças entre Estados e capitais ―um ritmo considerado lento por especialistas, mesmo diante do problema de escassez de doses que o país enfrenta. Considerando que a ambição é imunizar 90% da população, na atual velocidade o país levaria três anos e meio para concluir o trabalho. Um ponto de comparação apontado por especialistas é o histórico do país, que já conseguiu vacinar em média 1 milhão de pessoas por dia durante a pandemia de H1N1, por exemplo. A atual campanha de imunização enfrenta problemas particulares: há o desafio de realizá-la em uma grave pandemia com tendência de elevação de casos e diante de um quantitativo ainda pequeno de doses disponíveis.

Mesmo assim, o país só aplicou uma pequena parcela das 7,33 milhões de doses que o Ministério da Saúde diz já ter distribuído aos Estados, responsáveis por fazê-las chegar aos municípios. Outras 4,98 milhões estão em trânsito, segundo painel do Governo. A lentidão ―presente também no início da vacinação de outros países― é observada em meio a uma campanha nacional descoordenada, com uma estratégia nacional ainda repleta de lacunas. Estados e municípios passaram a decidir quem priorizariam na vacinação ―o que tem gerado ruídos na ponta diante de gargalos nas diretrizes nacionais. Governadores cobram do Ministério da Saúde um cronograma mais definido com previsão de chegada de novas doses num cenário de escassez global dos imunizantes.

“O nosso ritmo está péssimo. Não conseguimos nem gastar metade das primeiras 6 milhões de doses da Coronavac distribuídas, que são poucas. Teríamos que estar vacinando 1 milhão de pessoas por dia”, avalia a enfermeira e epidemiologista Ethel Maciel, que integrou o grupo de pesquisadores que participou das discussões iniciais de formulação do plano nacional de imunização. Ela diz que é difícil entender a situação, mas acredita que ela pode estar associada ao fato de a população não estar entendendo quando será a sua vez ou pra onde deve se dirigir, já que ainda não há uma campanha de comunicação clara por parte do Ministério da Saúde, responsável por coordenar a imunização no país. “Não há centralidade nem informação clara. Cada Estado está fazendo de uma forma diferente. Nós, que tínhamos orgulho do PNI, estamos começando uma campanha confusa”, afirma.

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O médico sanitarista e advogado Daniel Dourado estima que o país precisará de cerca de 160 milhões de doses para conseguir alguma proteção coletiva e que o ritmo lento de vacinação abre mais margem para o vírus circular. “Estamos muito lentos e em uma corrida contra o vírus. Registramos 60.000 novos casos e mais de 1.000 mortes por dia há semanas”, diz. Ele pondera que o país vacinou 1 milhão de pessoas diariamente em campanhas com um cenário diferente e todas as doses dos grupos prioritários já garantidas. Os Estados estão vacinando à medida que chegam pequenos lotes. “Mesmo assim está muito lento”, opina. O EL PAÍS procurou o Conselho Nacional dos Secretários Estaduais da Saúde para saber quais as dificuldades enfrentadas da ponta para acelerar a vacinação, mas não houve retorno.

O Ministério da Saúde elaborou as primeiras versões da estratégia nacional definindo quatro grupos prioritários, que naturalmente poderiam sofrer modificações conforme a chegada de mais doses. Este planejamento sofreu alterações quando o primeiro lote de 6 milhões de doses da Coronavac foi distribuído, sendo indicado a 34% dos profissionais de saúde, idosos institucionalizados, indígenas e pessoas com deficiência institucionalizadas. Outra atualização, na semana seguinte, incluiu novos grupos entre os prioritários, como por exemplo caminhoneiros, trabalhadores industriais e portuários. Mas já não há definição clara sobre as fases de imunização, ainda que a pasta indique seguir a ordem da lista apresentada. Ao quantificar o total de vacinas da AstraZeneca a serem enviadas aos Estados em uma tabela, porém, o ministério calcula a aplicação delas em 27% dos profissionais de saúde em quase todos eles. Apenas o Amazonas, que está recebendo mais doses diante da gravidade da pandemia, foi orientado a começar a vacinar também idosos com mais de 70 anos. “Essa mudança, sem determinação das fases, é muito ruim e cria coisas sendo feitas de maneira diferente em cada lugar”, aponta Maciel.

O próprio Ministério da Saúde deixou abertas as possibilidades para que os Estados usem os imunizantes conforme suas realidades locais, mas com tantas lacunas o resultado tem sido de estratégias muito diversas. Especialistas apontam que a lógica da campanha de vacinação é priorizar os grupos mais vulneráveis, seja pela elevada possibilidade de se infectar ou pelo risco maior de agravo da doença. É assim que se espera desafogar os sistemas de saúde que já sofrem grande pressão e tentar estancar os elevados índices de 1.000 mortes por dia.

Falta critérios sobre trabalhadores da saúde prioritários

A lógica de priorizar os trabalhadores da saúde é tanto pela alta exposição quanto pela necessidade de reduzir o afastamento deles e manter o atendimento. Mas, sem vacinas suficientes para vacinar todo esse grupo no país, o Ministério da Saúde também não estabeleceu critérios sobre quais profissionais deveriam receber as doses primeiro. Enquanto alguns locais priorizaram os que trabalham diretamente com pacientes com a covid-19, outros ampliaram o leque e estão vacinando também profissionais menos expostos. Isso pode fazer com que profissionais que atuam longe da linha de frente consigam se vacinar antes de trabalhadores de limpeza dos hospitais, por exemplo. “São muitas incertezas. E aí a gente volta para o começo da pandemia, com cada Estado definindo como vai ser [como aconteceu com as medidas restritivas]. Nem aquilo que a gente fazia bem estamos fazendo neste momento”, afirma Maciel.

O Distrito Federal, por exemplo, incluiu todos os funcionários da secretaria da Saúde no grupo prioritário e deixou de fora até os idosos com mais de 85 anos. Em nota à revista Época, a justificativa foi de “assegurar a força de trabalho e diminuir o absenteísmo” quando não haveria doses suficientes para todos os 142.000 idosos com idade acima de 80 anos. Alguns dias depois, decidiu incluir este grupo e agora espera adicionar também os idosos com mais de 75 anos na semana que vem. Alguns Estados, por outro lado, já começam a vacinar um grupo maior de idosos não institucionalizados. O Ceará decidiu usar parte das doses da AstraZeneca para vacinar idosos com mais de 75 anos nesta semana. Pernambuco, por sua vez, começou a vacinar idosos a partir de 85 anos.

Já o Estado de São Paulo afirmou que vai começar a imunizar idosos com mais de 90 anos no próximo dia 8. O Governo paulista também decidiu incluir no seu plano a vacinação de quilombolas, grupo que havia sido incluído nos grupos prioritários em uma primeira versão do PNI, mas foi retirado. A Administração João Doria até quis usar todas as doses disponíveis para vacinar um maior número de pessoas com a Coronavac, mas recuou após o Ministério da Saúde não dar garantias de que receberia mais vacinas. Sobre a lentidão, o Governo paulista diz que “é preciso apoio e agilidade das prefeituras na aplicação das doses e na inserção de dados no Vacivida [sistema com os dados da vacina], para que os dados reais e atualizados possam ser monitorados. Nesse sentido, a pasta prepara resolução para determinar o devido abastecimento da plataforma pela rede de saúde”.

A falta de uma comunicação clara do Governo Federal sobre quem deve ser vacinado neste momento tem gerado muitos ruídos na ponta. Durante os primeiros dias de vacinação, houve uma enxurrada de denúncias de fura-filas. “Falta uma coordenação. E começa a existir mais gente controlando quem pode tomar ou não tomar a vacina do que de fato administrando”, aponta o epidemiologista Paulo Lotufo, professor da Faculdade de Medicina da USP, que também vê um ritmo lento na vacinação brasileira.

No Amazonas, a vacinação chegou a ser interrompida por vários dias em Manaus, após a Justiça exigir critérios claros para o procedimento. Depois, o repasse de novas doses também foi interrompido por conta de suspeitas de fura-fila. O Estado então publicou uma definição mais clara desses grupos: trabalhadores de saúde da área pública e privada, envolvidos diretamente na atenção e referência para os casos suspeitos e confirmados de covid-19, pessoas de 60 anos institucionalizadas, indígenas maiores de 18 anos aldeados, pessoas com deficiência em instituições de longa permanência e idosos de 70 a 74 anos, estes últimos com elevada taxa de mortalidade. O Ministério Público do Amazonas pediu a prisão do prefeito e da secretária de saúde de Manaus ao ver a intenção de fura-filas da vacina na nomeação de dez médicos pouco antes de receberem as doses.

Maciel diz que deixar essas decisões nas mãos dos gestores locais pode trazer prejuízos, ainda que as realidades regionais precisem de fato ser consideradas. Ela cita como exemplo a região Norte do país, que tem uma situação de migração forte e pode precisar de ajustes, além de ter uma grande população indígena. Mas, mesmo assim, ela avalia que o que está acontecendo representa um “vácuo” no PNI. “Quando a gente tem uma estratégia nacional, ela precisa ser semelhante em cada lugar. Claro que pode haver algumas diferenças. Vamos pensar que alguém com mais 60 anos se vacinou e precisou viajar a outro Estado onde este grupo não está sendo vacinado. Pode ter dificuldades de conseguir uma segunda dose”, explica.

Outro problema que a epidemiologista aponta é a ausência de uma campanha de informação à população pelo Governo Federal quando a vacinação já foi iniciada. “Em geral, no mínimo duas semanas antes de uma campanha de imunização já tínhamos uma campanha de informação, explicando onde ir, como fazer. É a primeira vez que começamos uma campanha sem ter informações oficiais. E os Estados estão criando formas de fazer isso porque há um vácuo no PNI”, diz. O Ministério da Saúde prevê em suas notas técnicas uma campanha de informação sobre a importância da vacinação, públicos prioritários, dosagens e locais. Mas diz que está “prevista para iniciar assim que tenhamos a definição das vacinas”.

Na semana passada, governadores subiram o tom e cobraram um cronograma detalhado de vacinação ao Ministério da Saúde, inclusive com a quantidade de doses que planeja comprar e o prazo previsto para entrega. “Caso o Governo não apresente um cronograma que atenda a demanda de imunização dos mais de 220 milhões de brasileiros, os governadores, através do Fórum Nacional de Governadores e do Consórcio Nordeste, irão se movimentar para comprar as doses necessárias”, diz nota enviada pelo governador do Piauí, Welington Dias.

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